Como potencializar a recomposição da aprendizagem pós-pandemia
Considerar os aprendizados que ocorreram na pandemia, reorganizar as redes de ensino e entender que não estamos em uma corrida são algumas das bases desse processo para o Cenpec; saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
Os dados do Ideb 2021 mostram que houve uma queda no nível de aprendizagem das(os) estudantes, como consequência dos dois anos de ensino remoto devido à pandemia. A divulgação não pegou ninguém de surpresa, à medida que outras avaliações e pesquisas já têm mostrado resultados semelhantes e preocupantes como os do Saeb.
Ainda que a maioria das(os) especialistas já esperassem essa queda, a interpretação desses dados têm variado bastante: há aquelas(es) que acreditam que essas ditas perdas de aprendizagem são enormes e irreparáveis, e outras(os) que rechaçam esse discurso. Helena Singer, vice-presidente da Ashoka América Latina, é uma delas:
Foto: Joice Aguiar
O ser humano não perde aprendizagem. Isso só acontece na demência. Estamos aprendendo o tempo todo e, portanto, as crianças, os adolescentes, os jovens, os adultos aprenderam sim e muito durante a pandemia”.
Helena Singer
Como um vírus se comporta, como as vacinas funcionam, como atravessar o luto, por que as máscaras nos protegem, quais os impactos desse uso para o meio ambiente, quais informações são confiáveis e quais não, como brincar sozinho em casa… todo mundo se deparou com uma ou mais dessas situações e assuntos nos últimos dois anos e com certeza aprendeu algo com elas. São, portanto, aprendizados que ocorreram fora da escola, durante o período de ensino remoto.
Mas isso não quer dizer que a escola não faça falta — muito pelo contrário.
Sem a escola, os estudantes não tiveram a oportunidade de consolidar todos esses conhecimentos a partir de processos de sistematização, que são próprios da instituição de ensino. Mais do que isso, não puderam refletir coletivamente sobre esses diferentes assuntos e compartilhar suas aprendizagens, angústias, medos e inseguranças. Sem a escola, não temos consciência da nossa aprendizagem”, explica.
Helena Singer, vice-presidente da Ashoka América Latina
O discurso importa — e leva à ação
Trabalhando com a recomposição de aprendizagem com diferentes redes de ensino em projetos distintos — como o Programa Impulsionar e o Apoio Pedagógico Complementar —, a equipe do Cenpec tem percebido que, para além de desconsiderar os acúmulos das(os) estudantes durante a pandemia, o discurso de uma perda de aprendizagem irreparável não é produtivo, ou seja, ele não gera ação entre as(os) professoras(es), técnicas(os) e gestores(as) de ensino, e desestabiliza ainda mais as(os) estudantes. É o que explica Lilian L’ Abbate Kelian, coordenadora de programas e projetos no Cenpec:
Foto: acervo pessoal
Imagina ser um aluno que estava super ansioso para voltar à escola, feliz em rever os amigos e estar nesse espaço, e a direção e as(os) professoras(es) chegam falando que ele está atrasado, que ele está ficando para trás. Isso gera um desespero não só nele, mas também nas(os) próprias(os) profissionais.
Mesmo que estejam aquém das expectativas de aprendizagem para o ano que estão, as(os) alunas(os) não vão produzir a partir desse discurso. Ele é esterilizante e pedagogicamente adverso”.
Lilian L’ Abbate Kelian
Assim, o ponto de partida para pensar e planejar a recomposição de aprendizagem deve ser outro, como diz Érica Catalani, coordenadora de programas e projetos no Cenpec: “Não devemos focar única e exclusivamente no que faltou, naquilo que eles não aprenderam e deveriam ter aprendido”.
Afinal, o que as crianças aprenderam? O que elas já sabem?
Incluir essas duas perguntas como norte no planejamento das ações pedagógicas é fundamental para garantir um processo mais efetivo. E não é nenhuma novidade que todos possuem saberes próprios, como prega a pedagogia freiriana.
Foto: acervo pessoal
A aprendizagem significativa ocorre quando a criança é instigada para um conhecimento novo, mas que tenha relação com o que ela já sabe, com o que ela conhece e vivencia. Quando a aprendizagem acontece nesse limiar, a criança se engaja mais. Nesse movimento em que queremos que a aprendizagem ocorra de forma mais acelerada, considerar esses conhecimentos é imprescindível”, explica.
Érica Catalani, coordenadora de programas e projetos no Cenpec
Partindo desse princípio, a recomposição das aprendizagens deve ser planejado para estimular a escuta e a valorização dos saberes dos estudantes e a organização e construção dos conhecimentos prévios que ajudam a desenvolver competências e habilidades relativas ao atual ano escolar da(o) estudante, impulsionando o aprendizado, e não olhando para trás — como costuma acontecer numa recuperação, por exemplo.
“Se eu tenho um aluno que está no 8o ano e ainda tem dificuldades de aprendizagem relativas à alfabetização, eu posso utilizar o contraturno para retomar com ele esses conteúdos, mas relacionando-os com o que ele está aprendendo no 8o ano. Caso contrário, ele nunca vai se sentir de fato desafiado, nem participar ativamente de uma atividade da aula em que estejam sendo discutidas outras questões que não alfabetização”, diz Érica.
Avaliações processuais e diagnósticos constantes devem dar a base para a identificação das lacunas e o planejamento dos apoios necessários e dos suportes (ou andaimes) que serão necessários prover às(aos) estudantes que estiverem com dificuldades de aprendizagem.
Tanto Lilian quanto Érica identificam como um dos principais desafios da recomposição das aprendizagens a questão da priorização curricular. Afinal, para saber o que espera-se que a(o) estudante aprenda em cada ano escolar e quais conhecimentos precisam ser mobilizados para que esse aprendizado ocorra é preciso estar apropriado da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“A pandemia desorganizou e interrompeu a implantação da BNCC por bastante tempo. Se antes professores já não estavam acostumados com ela, agora muito menos. E, para saber o que priorizar do currículo, é preciso conhecê-lo muito bem”, explica Lilian.
“Trabalhar com crianças em diferentes níveis de aprendizagem não é algo novo, ainda que tenha se intensificado com a pandemia. No cenário atual, soma-se a isso a questão do desenvolvimento de competências e habilidades, proposto na BNCC, e que, para muitas(os) professoras(es), é um desafio enorme, pois estavam habituados com o foco do ensino somente nos conteúdos”, alerta Érica.
Recomposição curricular que enfrenta as desigualdades
Ao olhar para os conhecimentos e as vivências das(os) estudantes e não segregar as(os) estudantes com mais dificuldade, estigmatizando-as(os), essa recomposição de aprendizagens contribui também para um combate às desigualdades educacionais.
Falamos muito que a pandemia acirrou as desigualdades, mas é preciso olhar para as suas origens e como a escola pode interferir nelas. É comum o discurso que como são mais pobres, mais vulneráveis, os alunos não aprendem tanto, a escola não pode fazer nada. Mas é justamente o contrário: não podemos culpabilizar os estudantes por uma situação de vulnerabilidade que ele ou a sua família não escolheram estar e a escola pode sim atuar para que as desigualdades sociais não se reflitam dentro dela”, diz.
Lilian L’ Abbate Kelian, técnica de programas e projetos no Cenpec
Proporcionar formação continuada sistêmica das(os) educadoras(es), rever os materiais didáticos, adaptar o currículo, planejar reagrupamentos ou outras enturmações para potencializar aprendizagens, analisar dados das avaliações diagnósticas à luz de marcadores sociais (gênero, raça/cor, sexo), garantir conectividade a todos e todas, ter uma escuta ativa de toda a comunidade escolar são algumas das medidas que a gestão escolar e a gestão educacional podem realizar dentro de suas instituições para não fomentar as desigualdades.
Lilian reforça que é preciso deslocar, portanto, o olhar da(o) estudante como aquela(o) que estava desorganizada(o) ou perdida(o) para as redes de ensino:
“São as redes que ficaram desorganizadas com a pandemia e que, na maioria dos casos, não conseguiram oferecer o ensino de forma adequada a todos e todas. Não houve coordenação nacional ou política pública para apoiá-las nesse período e por isso estamos tendo que lidar com essas consequências hoje. Mas todos — professoras(es), estudantes, famílias, redes — são sujeitos potentes e podem, portanto, agir para garantir o direito de aprendizagem dos estudantes”.
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