Especial Milton Santos

A nova geografia de Milton Santos e seu legado para a educação

 

No dia 24 de junho de 2001, morria um dos maiores intelectuais do Brasil e do mundo. Ao longo de seus 75 anos de vida, o baiano Milton Almeida dos Santos, natural de Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, deixou um legado de mais de 40 livros e centenas de artigos em que se debruça sobre o território, a globalização, as relações entre o espaço geográfico e as socioeconômicas e culturais historicamente construídas, entre muitos outros conceitos e reflexões que modificaram a ciência geográfica até então desenvolvida no Brasil e no mundo.

Intelectual de grande prestígio e influência internacional, Milton Santos também foi um defensor da democracia e um crítico incansável das desigualdades presentes em nossa sociedade. Seus estudos traçaram um diálogo intenso entre a geografia e outras áreas do conhecimento, principalmente a história, a sociologia e a filosofia. Dessa forma, ampliou a capacidade da geografia observar, compreender e explicar eventos e situações que dizem respeito ao espaço mas que não se limitam a sua esfera física.

Reconhecido como criador de uma nova geografia, seus estudos tecem uma relação indissociável entre teoria e empiria (prática). Para Milton Santos, a teoria geográfica deve refletir sobre a realidade concreta dos países subdesenvolvidos. No entanto, essa realidade concreta apenas se revela por meio da teoria. Trata-se, assim, de dois campos que devem estar em constante diálogo no fazer da ciência geográfica.

Milton servidor público e jornalista

Além de sua atuação como professor e pesquisador universitário, Milton Santos se destacou pela postura engajada, tanto à frente do jornal baiano A Tarde, em que foi jornalista e redator durante 10 anos, entre 1954 e 1964, como em cargos públicos, ao presidir a Fundação Comissão de Planejamento Econômico da Bahia, entre 1962 e 1964, por exemplo.

No jornalismo, Milton Santos apresentou críticas sociais incisivas, entre elas a denúncia a situação precária dos trabalhadores rurais locais. Algumas de suas ideias são consideradas avançadas até hoje. É o caso do imposto sobre fortunas proposto como forma de enfrentamento ao cenário de profundas desigualdades socioeconômicas presentes no Brasil.

Após o golpe militar de 1964, esses posicionamentos, considerados subversivos, o fizeram perder o cargo de professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ficar preso por 60 dias no quartel de Cabula, em Salvador, de onde foi liberado ao sofrer um pré-infarto e um derrame facial. Após sua libertação, o quadro político brasileiro na época o obrigou a se exilar no exterior, onde já tinha diversos convites para lecionar e desenvolver pesquisas acadêmicas.

Milton educador

Para a educação, a contribuição de Milton Santos é fundamental. Por muito tempo, o estudo da geografia se limitava à memorização de nomes de localidades, rios, dados estatísticos e à explicação isolada de fenômenos naturais. A partir da obra de Milton Santos, entender como, ao longo da história e em nosso cotidiano, as relações sociais atuam no espaço geográfico, e vice-versa, se tornou fundamental para compreender a complexidade do mundo em que vivemos.

Nesta pequena homenagem a Milton Santos, trazemos as vozes de quatro educadores geógrafos e comentamos algumas das inúmeras contribuições deste intelectual que tão bem manifesta em sua trajetória o árduo e essencial papel da educação: pesquisar e analisar com rigor seu objeto de estudo, construir conhecimentos de forma crítica e dialógica, posicionando-se como sujeito atuante na sociedade.

 

Um intelectual a serviço do Brasil: entrevista com a educadora Regina Estima

 

Uma das pessoas com quem conversamos foi a educadora Regina Estima. Geógrafa de formação, Regina tem vasta experiência em gestão de projetos educacionais e formação de professores. Regina atuou junto a Paulo Freire durante sua gestão na Secretaria de Educação Municipal de São Paulo. Assessora do CENPEC Educação, atualmente desenvolve trabalhos relacionados à equidade de gênero e raça.

 

Portal CENPEC: Você poderia me contar como se deu o seu encontro com Milton Santos, em que época da sua vida você o descobriu?

Regina Estima: Fiz o curso de graduação de geografia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) na época da ditadura (entre 1972 e 1976). Naquele tempo a geografia sofria de uma crise de identidade: seria uma ciência humana ou uma ciência exata mais ligada a área das geociências? Essa questão atravessou nossa formação: não sabíamos exatamente se era legítima ou pretexto para dissimular a censura e repressão que tomava conta dos ambientes universitários naquele momento, em virtude dos desmandos do regime militar instalado no Brasil desde o golpe de 1964.

 

 Como a geografia foi um conhecimento inerente às estratégias dos militares, sempre serviu principalmente para fazer a guerra, sendo assim, carecia de corpo teórico que a definisse como ciência. A ausência de muitos professores exilados e arbitrariamente aposentados pelo Ato Institucional n° 5 (1968), trouxe grande prejuízo para a universidade e para os cursos ministrados. Apesar de Milton Santos estar exilado nessa época, nós geógrafos organizados na Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB), quase de forma clandestina, realizamos encontros e fazíamos estudos baseados nos estudos do professor Milton, que ganhava celebridade como geógrafo na Europa e África, por construir uma teoria até então inédita na ciência geográfica”

 

Em 1977, com a anistia, Milton Santos volta ao Brasil e vem para USP como professor concursado. Assisti a aulas como observadora, assim como participei de palestras e encontros com ele na gestão de Paulo Freire como secretário da educação no município de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (1989-1992). Pude compreender por essa convivência que ele trazia para a geografia no Brasil uma série de conceitos e categorias de análise que foi imprimindo consistência no corpo teórico da ciência geográfica latino-americana.

Portal CENPEC: Um brasileiro nascido no início do século XX, no interior da Bahia, negro e pobre, que constrói um legado de extrema importância política e cultural mundial. Comente a trajetória de Milton.

Regina Estima: O professor Milton teve uma trajetória lindíssima tanto no Brasil como mundo afora. Ele se firmou no campo acadêmico por sua alta capacidade de estudo e análise crítica das realidades locais e globais. Se olharmos sua biografia, vemos que poucos intelectuais no Brasil têm a capacidade de produção intelectual como a de Milton Santos. Coerente e engajado, deixou um legado importante para o mundo acadêmico, onde atuou com aulas, pesquisas e orientação mesmo após sua aposentadoria até o último ano de sua existência. Dessa forma, ele superou as barreiras impostas por sua origem social e étnica, enfrentando com galhardia os obstáculos que o racismo brasileiro impõe aos negros.

Portal CENPEC: Como a obra de Milton Santos ajudou na sua formação e no exercício de sua cidadania?

Regina Estima: Podemos falar em uma geografia antes e outra depois de Milton Santos. Ler sua obra, de forma clandestina durante a ditadura, como fiz, me possibilitou descortinar um conhecimento de mundo cheio de sentido para o cidadão comum. Seus livros traziam análises complexas mas cheias de significado para quem almejava conhecer a realidade e se engajar em lutas contra a ditadura. Muitos discordam de sua concepção, mas são raros os que negam sua importância como intelectual de prestígio internacional.

Portal CENPEC: Qual a importância de Milton Santos para a formação de professores?

Regina Estima: O trabalho e o legado de Milton Santos trouxeram grandes contribuições tanto para professores, como para qualquer trabalhador da área social no Brasil, na América Latina e no mundo que pretende conhecer e analisar a realidade onde vive e atua.

Portal CENPEC: Quais as contribuições desse autor para a geografia?

Regina Estima: Aqui vai uma visão bem subjetiva: a geografia pode ser ensinada e compreendida somente como uma técnica para conhecer a natureza ou as paisagens urbanas. Pode-se utilizar de várias ferramentas trazidas da cartografia, da geologia, da biologia etc. Isso é uma visão de geografia que via de regra não considera a relação da sociedade na organização dos espaços.

Milton Santos traz para a geografia teoria e método com análises requintadas e com conceitos específicos, como: espaço geográfico, território e todo um arcabouço teórico que eleva a geografia a condição de ciência.

Sua graduação na área do Direito – somente na pós-graduação é que opta pela geografia – possibilitou que ele trouxesse para a geografia uma visão de cidadania engajada, presente em obras como o Espaço cidadão (1987).

Portal CENPEC: Por que Milton se preocupava com a globalização? Em entrevista ao El Pais, ele disse: “Há uma espécie de revanche do terceiro mundo na Europa, você nos colonizaram, agora nós os colonizamos“. Poderia comentar essa frase?

Regina Estima: O professor Milton não fazia geografia sem os referenciais históricos de cada espaço geográfico. A globalização foi objeto de seus estudos, já que era um fenômeno que historicamente assolou os países colonizados. Para ele, a globalização só foi assumindo novas roupagens desde o século XVI até o século XX , no caso do Brasil e demais países da América Latina, quando se consolida em nova configuração, produzindo o acirramento da concentração da renda e poder nas mãos das grandes corporações, deixando à deriva os estados nacionais e suas nações. Milton Santos deixou uma vasta obra teórica sobre temas relacionados à urbanização no terceiro mundo e à condição dos cidadãos na era da globalização.

Portal CENPEC: Quase duas décadas após a morte de Milton Santos, qual a maior falta que ele faz para a sociedade brasileira hoje?

Regina Estima: Temos hoje quase uma total ausência de intelectuais engajados e críticos para a produção de análises importantes à compreensão do mundo complexo em que vivemos. Ficamos à mercê da grande mídia e das redes sociais com suas contradições.

 Milton Santos tinha consciência que esta era a função do intelectual nas sociedades modernas. No entanto, sua vasta obra se mantém presente e atual, assim como seu exemplo e sua conduta impecável a serviço do Brasil deixaram marcas. Milton foi responsável pela renovação teórica da geografia em nosso país e no mundo.”

 

Linha do tempo

Clique nas setas laterais para seguir a cronologia da vida de Milton Santos.

 

O ensino de geografia para além da memorização: conversa com Murilo Vogt Rossi

 

A obra de Milton Santos marcou e marca a formação de diversas gerações de geógrafos no Brasil e no mundo. É o que conta o professor e pesquisador Murilo Vogt Rossi, bacharel, licenciado e mestre em geografia pela USP, com ênfase no ensino de geografia e currículo escolar. Atualmente é doutorando na Universidade Federal da Paraíba, com foco em cartografia escolar.

Murilo conta ter conhecido nosso homenageado na década de 1990, quando era estudante universitário. Embora não tivesse aulas com Santos, que não lecionava mais na graduação, teve a oportunidade de conversar e até trabalhar em um de seus últimos livros, O Brasil: território e sociedade no início do século XXI (2001), escrito em coautoria com Maria Laura Silveira.

 

Portal CENPEC: Como a obra de Milton Santos está presente em sua formação como geógrafo?

Murilo Vogt Rossi: A geografia sempre teve dificuldade de se afirmar como ciência perante ela mesma e perante outras áreas, principalmente nas ciências humanas da própria USP. Havia uma necessidade de se construir e provar que temos um objeto de estudo sim, que é o espaço geográfico. E isso não é e não foi fácil. Talvez o professor Milton seja o precursor em consolidar a geografia como uma ciência nata, com seus objetivos, métodos, suas categorias de análise, seus conceitos, seu objeto de estudo… Isso está disponível para todos, com sua vasta obra, da qual destaco aqui A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção‎ (1996). Milton me fez abrir os olhos para além de uma Geografia colocada como “acessório” de outras áreas da ciências humanas. Mostrou que a geografia não é dividida entre física e humana, e sim uma só. Que a geografia não é uma metodologia de memorização e descrição simplesmente.Isso me entusiasmou e me entusiasma até hoje.

Portal CENPEC: Por que se diz que Milton Santos inaugurou a nova geografia?

Murilo Vogt Rossi: O professor Milton era um estudioso muito aplicado. O leitor de suas obras observará sempre um trabalho incansável de se mostrar e consolidar a geografia como uma ciência. Ele lia de tudo; ele insistia que só conseguiríamos alcançar uma geografia como ciência estudando filosofia. A geografia é o que é hoje devido aos seus estudos. Algumas de suas contribuições que mudaram a geografia: o espaço geográfico não é um palco físico sobre o qual as pessoas se sociabilizam, mas a sociedade é o espaço, e ambos são indissociáveis.; a descrição em geografia é essencial, mas não um fim em si mesmo. A pesquisa e o estudo em geografia não são memorização, mas sim investigação e análise de seus fenômenos.

Portal CENPEC: Qual é a relação de Milton com a globalização? Qual é a importância dessa investigação sobre esse tema?

Murilo Vogt Rossi: É importante contextualizar o momento em que esse autor escreveu sobre a globalização: uma época de mudanças significativas na sociedade mundial com o advento e início da difusão da internet. Ainda era uma época pré-google e facebook, por exemplo. É uma transição histórica que acontece talvez de milênio em milênio.

Sem dúvida, seus estudos sobre território reverberariam e muito na questão da globalização, impulsionados pelo modismo do tema na época e pelo rápido desenvolvimento das telecomunicações. De repente, podíamos mandar um arquivo instantaneamente a qualquer lugar do mundo

 Como a geografia já presenciava uma transição – desde a década de 1970 – entre uma geografia clássica para uma geografia crítica, Milton Santos já especulava sobre as mudanças da sociedade no capitalismo. Como as informações se tornam instantânea, é necessária uma análise mais acurada do processo socioespacial no planeta. O mundo estava se aproximando e ao mesmo tempo se distanciando (talvez pela desigualdade social crescente e a falta de acesso aos meios de comunicação novos até então de grande parte da população mundial). Dessa forma, não havia mais como desenvolver análises isoladas da técnica, da informação e da ciência, pois se trata de fenômenos complementares. Daí o conceito cunhado por Milton Santos que tornou muito conhecido pelo mundo afora: o meio técnico-científico-informacional. Para ele, a globalização deveria ser analisada com base nesse conceito e de uma forma dialética no seio do desenvolvimento capitalista desigual.”

 

Portal CENPEC: Qual a maior falta que ele faz para a sociedade brasileira hoje?

Murilo Vogt Rossi: Milton Santos foi um acadêmico, sua forma de contribuir com a sociedade foi por meio de pesquisas e análises sobre a realidade. Talvez a maior ausência são as contribuições que ele poderia nos dar num momento tão difícil em nosso país. E não estou falando só de governo ou poder político, mas da sociedade como um todo. Temos que ler suas obras, retornar a seus clássicos e construir meios para isso, pois alguns de seus livros são densos, carecem de mediação para o leitor não especializado aproveitar seu conteúdo de forma mais ampla.

Portal CENPEC: Qual a importância de Milton Santos na formação de professores?

Murilo Vogt Rossi: Milton Santos nunca trabalhou diretamente com a temática do ensino de geografia, mas contribuiu muito com ela. O movimento de contestação da geografia clássica (estritamente descritiva, fragmentada e mnemônica), chamada de geografia crítica ou mesmo radical que pregava uma geografia mais analítica, com um teor crítico social, não fragmentada e que ia além da memorização, tem Milton Santos entre seus grandes precursores. Muitas de suas obras abordam isso, entre as quais destaco Por uma geografia nova (1978). Esse ainda é um desafio na formação de professores e na prática de ensino de Geografia nas escolas. Mas seu legado se tornou referência na legislação educacional, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a própria Base Nacional Curricular Comum (BNCC), assim como os currículos regionais e locais, e o livros didáticos de Ciências Humanas.

 

Território, lugar e mundo na era do “globalitarismo”

 

A teoria de Milton Santos se baseia em pesquisas sobre a formação socioespacial do território, em que o processo histórico e as relações geopolíticas são fatores centrais.

Crítico contundente da globalização estabelecida por meio da exploração dos países pobres pelos ricos, aprofundando ainda mais o abismo e a desigualdade em nível internacional, o que chamava de “globalitarismo”, o autor se propunha a refletir sobre uma outra globalização. Para isso, desenvolveu uma nova leitura sobre dois conceitos clássicos da Geografia: território e lugar.

 

Território: categoria integradora e mediadora entre o mundo e a sociedade nacional e local. Para o autor, o território é uma “totalidade dinâmica, produto das múltiplas totalizações a que está submetido o processo da história, a cada instante” (SANTOS e outros, 1994).

 

Lugar: ao mesmo tempo o espaço palpável, que recebe os impactos do mundo, e também o espaço da existência e da coexistência cotidiana. “No lugar reside a única possibilidade de resistência aos processos perversos do mundo, dada a possibilidade real e efetiva da comunicação, da troca de informação e da construção política” (SANTOS e outros, 1994).

 

Mundo: “conjunto de possibilidades, cuja efetivação depende das oportunidades oferecidas pelos lugares. (…) o ‘Mundo’ necessita da mediação dos lugares, segundo as virtualidades destes para usos específicos. Num dado momento, o ‘Mundo’ escolhe alguns lugares e rejeita outros e, nesse movimento, modifica o conjunto dos lugares, o espaço como um todo. É o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realização mais eficaz. Para se tornar espaço, o Mundo depende das virtualidades do Lugar” (SANTOS, 1996).

 

Territorialidade: ideia que “se estende aos próprios animais, como sinônimo de área de vivência e de reprodução”. Já a territorialidade humana “pressupõe também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que, entre os seres vivos, é privilégio do homem” (SANTOS e SILVEIRA, 2001).

 

Paisagem: “Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem […]. Não apenas formada de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc.” (SANTOS, 1998).

 

 

O meio técnico-científico-informacional

 

O lugar, onde acontecem as relações cotidianas entre as pessoas, é “a sede dessa resistência da sociedade civil”. Para Milton Santos, ampliar essa resistência às esferas mais altas de um conhecimento sistemático da realidade, o que só é possível mediante a análise do território. O geógrafo ressalta que é essencial “rever a realidade de dentro”, articulando esses diferentes olhares sobre o espaço, a sociedade e seu momento histórico. Esse entendimento é fundamental para afastar “o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro”. Dessa forma, Milton nos convida a pensar em novas relações horizontais com base no território, por meio da construção de uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade” (SANTOS, 1994).

Por outra globalização

Uma das primeiras ocorrências da expressão “meio técnico-científico” está no livro Espaço & método, de 1985, quando o discurso da globalização ainda não havia se popularizado. Já em 2001, na obra O Brasil: território e sociedade no Início do século XXI, esse conceito é utilizado para uma análise da formação, do desenvolvimento e estado atual do território brasileiro.

Milton Santos define cinco períodos de desenvolvimento dos sistemas socioeconômicos ao longo da história de formação do capitalismo:

  1. Período do comércio em grande escala (final do século XV até 1620);
  2. O período manufatureiro (1620 – 1750);
  3. O período da revolução industrial (1750-1870);
  4. O período industrial (1870 – 1945);
  5. O período tecnológico (2a Guerra Mundial até hoje) (SANTOS, 1997).

Durante o quinto período, que se inicia no fim da Segunda Guerra mundial e abrange a época atual, se constitui o meio técnico-científico. Esse período distingue-se dos demais pelas rápidas transformações do território pela crescente incorporação de novos capitais (fábricas, ferrovias, estradas, portos, aeroportos…), a entrada e disseminação das novas tecnologias de comunicação e informação, entre outros fatores.

 A tecnologia da comunicação permite inovações que aparecem, não apenas juntas e associadas, mas também para serem propagadas em conjunto. Isto é peculiar à natureza do sistema, em oposição ao que sucedia anteriormente, quando a propagação de diferentes variáveis não era necessariamente acelerada” (SANTOS, 1997).”

 Esta instantaneidade e universalidade na propagação de certas modernizações desmantela a organização do espaço anterior. Constitui, sobretudo, um fator de dispersão que se opõe de uma forma muito clara aos fatores de concentração conhecidos nos períodos anteriores” (SANTOS, 1997).”

 

Tecnologia, a ciência das técnicas

Para o autor, a interdependência entre tecnologia e ciência, que se dá com o “desenvolvimento da ciência das técnicas, isto é, da tecnologia, e, desse modo, com a possibilidade de aplicar a ciência ao processo produtivo” (SANTOS, 1997), caracteriza a passagem do meio técnico (vigente até o quarto período) para o meio técnico-científico, criando a possibilidade de um novo espaço: o meio técnico-científico-informacional.

Compreender o processo de criação e transformação tecnológica é fundamental para se compreender o território, afirma Milton Santos:

 A técnica é tempo congelado e revela uma história (1997). A transformação dos espaços pela tecnologia responde sobretudo aos interesses hegemônicos da economia, da política e da sociedade e rapidamente se propaga pelas novas correntes mundiais. “O meio técnico-científico-informacional é a cara geográfica da globalização” (SANTOS, 1997).”

Um intelectual negro entre brancos

 

Além das ideias inovadoras, Milton Santos se destaca também por ser homem negro em uma intelectualidade formada predominantemente por pessoas brancas, num país que ainda hoje apresenta índices acentuados de desigualdade étnico-racial.

 

A desigualdade em números

  • A taxa de analfabetismo é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%) do que entre brancos (4,2%).
  • A porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que tem ensino superior completo é de 22,9%. É mais que o dobro da porcentagem de pretos e pardos com diploma: 9,3%.
  • Já a média de anos de estudo entre pessoas de 15 anos ou mais é de 8,7 anos para pretos e pardos é de 10,3 anos para brancos.

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

 

Apesar de não ser um tema central em sua obra, a questão racial ocupou as preocupações do geógrafo. Em uma de suas raras palestras gravadas em vídeo, Milton declarou que “a luta dos negros só pode ter eficácia se forem envolvidos todos os brasileiros: Não cabe só aos negros fazer essa luta. Ela tem que ser feita sobretudo por todos”.

 

 

Olhares sobre o autor de uma nova geografia

 

Conheci o Milton Santos em novembro de 1986, quando eu tinha uns 19 anos. Foi em um evento no Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), promovido na semana da consciência negra. Mas somente uns anos depois, quando ingressei no curso de geografia, que tive a oportunidade de reconhecer a sua grandiosidade. Não há entre suas publicações livros específicos para o ensino da geografia, porém foi imensa a sua contribuição para pensar que as aulas vão muito além de pedir que os alunos memorizem os afluentes da margem esquerda e direita do rio Amazonas.

Milton Santos trouxe a discussão de que o espaço é fruto da relação entre sociedade e natureza, ele nos ajudou a compreender a sua organização como uma consequência de uma sociedade ativa. O grande desafio do ensino de Geografia é levar os alunos à tomada de consciência de que o mundo onde vivemos está em constante transformação e nós somos parte ativa dessas mudanças. Prepará-los para analisar e atuar criticamente neste mundo complexo, tendo em vista buscar viver em um lugar melhor e possível para o ambiente e para as sociedades é nossa grande função. Agradeço Milton Santos por dar a luz essa discussão tão pertinente.

Renata Del Monaco, geógrafa formada pela Universidade de São Paulo, professora de geografia e formadora de professores, autora de materiais didáticos e de cursos EAD e a distância.

 

A missão do geógrafo no terceiro mundo

 

A obra do professor doutor Milton Santos sempre esteve presente em minha formação acadêmica, inicialmente marcada pelo livro/manifesto Por uma geografia nova, em que anuncia uma epistemologia que vai além da teoria eurocêntrica clássica, conduzindo a pensamentos induzidos pelas realidades vivenciadas nas periferias do sistema de produção capitalista. Foi ele quem teorizou sobre o meio técnico-científico-informacional, fase em que a tecnologia se renova em nome de negociações em tempo real entre Estados, multinacionais e cidades globais e onde espaços seletivos são criados para sediar o capital e facilitar sua circulação.

Para Milton Santos, o geógrafo no terceiro mundo deve refletir sobre questões pertinentes à realidade desde a periferia de um sistema imperialista e altamente segregador. Assim, em vez de salientar conceitos desenvolvidos apenas para compreender o sistema de produção, nos lança o olhar ao vivido, ao cotidiano, e às peculiaridades de novas territorialidades que se mostram como “pontos de fuga” à alienação e exploração capitalistas.

Meu trabalho docente congrega a teoria de dois autores principais, Milton Santos e Paulo Freire. Na obra de Milton Santos, observamos a maneira de se ver o “espaço como acumulação desigual de tempos”, a apropriação do espaço se dá a cada momento, daí a simultaneidade espaço-temporal, em que a cada ação provocamos e ressignificamos os territórios. Paulo Freire afirma que “o mundo não é, o mundo está sendo”, nos traz uma ontologia do “sendo humano(a)”, por isso a humanidade e sua maneira de vivenciar e transformar sua realidade é sempre um processo inacabado, suscetível de (re)leituras que nos apresenta novos paradigmas, aprendizagens e conhecimento acerca do vivido.

Ambos os autores dialogam com uma educação em construção, gerando aprendizados e conhecimentos por meio da realização e da visão de mundo dos agentes de sua própria aprendizagem e geração de conhecimento pessoal, coletivo e em sociedade.

Erenay Martins Maciel Tupinambá, geógrafa e mestre em educação pela Universidade de São Paulo, estudiosa das culturas afro-brasileiras, e professora de geografia da rede municipal de São Paulo.

 

 

Créditos

Pesquisa: Caia Amoroso e Tamara Castro
Texto: Tamara Castro
Produção e web design: Marco Antonio Vieira
Entrevistados:

  • Erenay Martins Maciel Tupinambá
  • Murilo Vogt Rossi
  • Regina Estima
  • Renata Del Mônaco