Alfabetização e letramento indígena

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Alfabetização e letramento indígena

Quais são as especificidades do ensino e aprendizagem da língua escrita na educação indígena? Confira entrevista com Josélia Gomes Neves. Publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec) em 2015

Por Mônica Cardoso

No Brasil, durante séculos, a cultura dominante, de raiz europeia, se impôs sobre outras culturas, entre elas as indígenas. Ao longo de nossa colonização, os povos que aqui viviam antes da chegada das naus portuguesas tiveram seus costumes, crenças, histórias e idiomas desvalorizados. Junto à tomada violenta das terras que habitavam e ao massacre de centenas de povos, estima-se que muitos idiomas indígenas tenham se perdido sem deixar registros. Com o objetivo de incorporar os povos indígenas à “civilização”, políticas governamentais, desde o século XVIII, chegaram a proibir que eles se expressassem em seus idiomas maternos. O mesmo processo acontecia na catequese ou evangelização desses povos.

Historicamente, a escolarização indígena funcionou como um instrumento de expropriação cultural. Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), por exemplo, instituiu-se o ensino obrigatório da língua portuguesa nas escolas, inclusive com a proibição do uso oral de quaisquer outros idiomas. Um novo paradigma emergiu quando, embora estabelecendo a língua portuguesa como idioma oficial, a Constituição Federal de 1988 reconheceu aos povos indígenas o direito às suas línguas, inclusive no âmbito escolar.

Foto: Jana Pessôa/Governo do Mato Grosso (reprodução)

Dez anos depois, em 1998, o Ministério da Educação (MEC) aprovou o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), que se baseia no respeito à diversidade cultural e linguística. Nesse contexto, a alfabetização e o letramento desses povos ganharam uma perspectiva intercultural, em que os indígenas, a fim de preservar, valorizar e difundir suas raízes culturais, adquirem embasamento para exercer papel protagonista na cultura escrita.

Para falar do ensino-aprendizagem da língua escrita pelos povos indígenas, em um cenário de mudanças na comunicação advindas com a tecnologia, conversamos com a professora Josélia Gomes Neves, líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA), na Universidade Federal de Rondônia (Unir). Confira a entrevista a seguir!

Josélia Gomes Neves – Alfabetização e letramento em contextos indígenas

Foto: Josélia Gomes Neves (reprodução)

Cenpec: Qual a importância do letramento nas escolas indígenas?

Josélia Gomes Neves: Do ponto de vista da prática social, a relação pós-contato com a cultura majoritária impôs para as sociedades de tradição oral, como as indígenas, a necessidade da aquisição e apropriação da cultura escrita, principalmente na época atual da informação e do conhecimento. Os indígenas já perceberam que, para se relacionar e viver melhor, eles precisam falar, ler e escrever, sobretudo a língua do “outro”, o português. Mesmo os povos indígenas de Rondônia, que vivem a maior parte do tempo em terras indígenas, onde falam língua indígena, precisam resolver uma série de questões na cidade, onde é preciso mobilizar a fala, a escrita, a leitura ou todas simultaneamente.

Nesse contexto, a escola cumpre um papel importante, que é possibilitar a aquisição da linguagem oral e escrita, tanto a materna como a portuguesa.

A língua nas margens: multilinguismo e letramento indígena – navegue pelo especial multimídia.

Cenpec: A oralidade tem papel relevante na cultura indígena. Como articular essa dimensão ao letramento?

🗣Josélia: A relação entre a oralidade e a escrita na escola se manifesta de várias formas. No clássico modelo de fonetização, percebemos que as crianças, da alfabetização inicial aos anos posteriores do ensino fundamental, tanto na língua materna como no português, se apoiam na fala para escrever as palavras.

Festa Gavião, Aldeia Ikolen, na Terra Indígena Igarapé Lourdes (RO), 2005. Foto; Josélia Gomes Neves (reprodução)

Outra situação é que, como a língua de instrução nas escolas das aldeias é a indígena, a oralidade tem importância central para a compreensão do assunto, e isso repercute na escrita.

Além disso, temos as narrativas transmitidas pelas sabedoras e sabedores indígenas, que são membros mais idosos da comunidade. Elas(es) detêm diferentes tipos de conhecimento e, com a instalação das escolas indígenas nas aldeias, cumprem o papel de bibliotecas orais, pois contribuem com informações sobre o modo de vida do povo, o que auxilia na compreensão da realidade atual. Em Rondônia, a Lei Complementar 578/2010 prevê no plano de carreira a inserção das(os) sabedoras(es), dando-lhes status de professor nível especial. Recentemente, ocorreu um concurso público e várias(os) delas(es) foram aprovadas(os). Por conta disso, elas(es) têm um papel institucional nas escolas indígenas, atestando o espaço significativo da oralidade.

Cenpec: Como os povos indígenas estão se apropriando da escrita?

🗣 Josélia: Embora a prática social nas sociedades indígenas ainda seja marcada pela fala, principalmente entre as(os) mais velhas(os), a geração jovem pensa e registra em diferentes suportes, como o papel, o monitor do celular e o do computador – tanto em português como em língua materna.

Troca de mensagens pelo celular entre indígenas da língua Suruí Paiter: o uso da escrita além do papel e do contexto urbano. Foto: Naraykopega Suruí

Penso que, com a inserção da internet nas áreas indígenas para comunicação a distância entre as aldeias, serão bastante utilizadas as mensagens de texto e de voz em aplicativos do tipo WhatsApp, assim como as mensagens com recursos de vídeos e imagens, como os do Facebook. Afirmo isso porque vejo a frequência com que as(os) estudantesindígenas utilizam esses recursos entre si ou com amigas(os) não indígenas na cidade.

Tenho observado o uso tanto das línguas indígenas, como Arara-Karo e Gavião-Ikolen, quanto as do português na escola e na prática social, a partir de escritas espontâneas, geralmente por grupos abaixo dos 40 anos de idade, que tiveram acesso mais frequente à escolarização. As escritas se caracterizam por pequenos textos, como bilhetes ou torpedos de celular, manifestações próprias de povos da tradição oral.  Esses escritos sugerem um processo inicial de inserção do uso social da escrita por povos indígenas, tanto em português como nas línguas maternas, o que indica a importância da cultura escrita nas escolas e aldeias indígenas.

Bilhete de indígena para não indígena. Foto: Josélia G. Neves
Bilhete na língua Tupi-Mondé por indígena da etnia Gavião para outro falante da mesma língua. É possível distinguir os empréstimos culturais (R$ 30,00 / Seduc). Tradução: “José, você está bem? Seus filhos estão bem? Estou te avisando que vou emprestar R$ 30,00 do seu dinheiro, mas vou te devolver depois. Deixo na Seduc.” Foto: Josélia G. Neves

Cenpec: A língua sempre foi utilizada como ferramenta de dominação por conquistadores e colonizadores. O letramento indígena pode ser visto como uma forma de resistência e de valorização da cultura indígena?

🗣 Josélia: No Brasil, a língua portuguesa, sobretudo a escrita, se constituiu como estratégia política de dominação dos povos indígenas, tanto do Estado brasileiro enquanto política de integração dos índios à sociedade nacional, como das entidades religiosas, por meio da catequização ou evangelização. Em função disso, sua entrada nas aldeias era vista com grande desconfiança por parte de sertanistas e antropólogos como os irmãos Villas Bôas e Lévi-Strauss. Entretanto, à medida que o movimento indígena ganhou protagonismo e visibilidade política, após o contato, a demarcação e a homologação das Terras Indígenas, os indígenas reivindicaram a implantação da escola em seus territórios. Eles viam a possibilidade desse recurso a favor de seus interesses.

Nos anos 1980, a antropóloga Betty Mindlin articulava oralidade e escrita na Amazônia com o povo Gavião quando ouvia as narrativas míticas e depois transcrevia, inaugurando uma parceria autoral que era pura, no livro Couro dos espíritos. O que Daniel Munduruku e Eliana Potiguara fazem com a escrita, por exemplo, é literatura indígena.

Couro dos espíritos: conversa entre Betty Mindlin e Daniel Munduruku

Na atualidade, esses povos indígenas utilizam a escrita no cotidiano, seja nas escolas, seja nas reuniões políticas, nos postos de saúde, nas casas de artesanato, nas aldeias, por meio de uma diversidade textual que inclui cartas, bilhetes, e-mails, torpedos, livros, blogs, mensagens por celular e outros, o que possibilita inferir que a presença da escrita na língua indígena não é mais uma folha em branco, mas um objeto apropriado de evidente reafirmação política e identitária. A escrita hoje já é coisa de índio.

Cenpec: Qual é a importância das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, instituídas pelo MEC, e o que ainda poderia ser feito para melhorar a questão do letramento indígena?

🗣 Josélia: Avalio que, desde a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 até as atuais Diretrizes de 2012, não avançamos de fato em uma política de estímulo à cultura escrita nas aldeias indígenas. Embora elas mencionem a importância do material didático específico e diferenciado, o que chega às comunidades é o velho e conhecido livro didático, que aqui é adaptado e muito pouco aproveitado, já que a realidade representada é a urbana e distante das crianças indígenas.

É preciso pensar projetos de bibliotecas para as aldeias, descentralizar os editais, estimular produções locais, fazer a Comissão Nacional de Apoio à Produção de Materiais Didáticos Indígenas (Capema) chegar até a região Norte, promovendo políticas públicas de indução à cultura escrita em contextos de longa tradição oral.

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Cenpec: A atual legislação educacional se baseia em um paradigma de respeito à interculturalidade, ao multilinguismo e à etnicidade (preceitos legais estabelecidos na Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional de Educação). Quais são as consequências desse novo paradigma para a educação indígena, especialmente para a alfabetização e o letramento?

🗣 Josélia: A mentalidade intercultural foi pensada pelos movimentos indígenas e seus aliados e após muita pressão popular foi incorporada aos textos legais pelo Estado brasileiro. Embora o fato de estar na lei represente um ganho, essa é apenas uma etapa do processo, pois a lei precisa ser concretizada. A ausência do material didático específico e diferenciado nas aldeias traz implicações diretas para o projeto da educação escolar indígena enquanto modalidade educativa intercultural, já que é impossível viabilizar um modelo de escola intercultural sem um material correspondente.

Na maioria das escolas indígenas brasileiras, a alfabetização aconteceu sob a coordenação de missionárias(os) religiosas(os) ou docentes leigas(os) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em processos de interrupção constantes, por meio de muito ba be bi bo bu na língua indígena ou em português, sem considerar pesquisas em educação como as da psicogênese de Emilia Ferreiro, por exemplo.

Assim, não se pode falar de educação intercultural sem discutir sua etapa primeira, a alfabetização intercultural: entre culturas indígena/não indígena, entre línguas materna/portuguesa, entre modos de linguagem oral/escrita etc.

Sem uma política séria de alfabetização em contextos indígenas, uma alfabetização intercultural em que se pense em um processo simultâneo de apropriação da cultura escrita articulada com a cultura oral e as línguas indígenas, com material adequado e diálogo com especialistas, é impossível nos aproximarmos das premissas de que a escola indígena deve ser uma experiência pedagógica de fato peculiar.

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Cenpec: Em sua opinião, como seria a escola indígena ideal?

🗣 Josélia: A escola sonhada pelos povos indígenas é a escola diferenciada e intercultural proposta pela Constituição de 1988. Diferenciada porque deve ser pensada com base na realidade dos povos indígenas, e intercultural porque deve insistir no diálogo entre as culturas (indígenas e não indígenas), enfrentando o desafio das relações assimétricas de poder por parte do lado ocidental. A escola indígena precisa ser de fato considerada como uma política pública diferenciada e específica, seja no combate à precarização do trabalho docente, seja no cumprimento da lei quanto à efetiva produção de material didático escolar adequado a esses contextos, considerando a exigência da sociedade atual da valorização do conhecimento escrito.

Mais sobre a entrevistada

Josélia Gomes Neves se dedica à educação indígena desde 2004, quando participou do Projeto Açaí, em Rondônia, voltado à formação de professoras(es) indígenas, Josélia deu aulas de alfabetização intercultural para estudantes das etnias Zoró, Gavião-Ikolen, Cinta Larga, Arara-Karo e Suruí Paiter.

Naquele mesmo ano, começou a lecionar a disciplina Povos da Floresta, no curso de Pedagogia do campus de Ji-Paraná da Universidade Federal de Rondônia (Unir), o que lhe possibilitou aproximar-se dos povos que vivem na região, como os Arara-Karo, os Zoró e os Gavião-Ikolen.

De 2005 a 2006, participou de um projeto de extensão sobre alfabetização e didática intercultural com as(os) professoras(es) da terra indígena Igarapé de Lourdes, onde vivem os Arara e os Gavião. Essas três experiências foram fundamentais para Josélia refletir sobre o papel da cultura escrita na aldeia indígena, o que resultou na tese de doutoramento Cultura escrita em contextos indígenas, defendida em 2009 na Universidade Estadual Paulista (Unesp).


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