Apenas uma canoa nas noites de verão: espalhando a cultura ribeirinha por aí

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Apenas uma canoa nas noites de verão: espalhando a cultura ribeirinha por aí

Em sua nova obra, disponível on-line gratuitamente, a autora Leila Plácido explora as raízes, o folclore, os mitos e o estilo de vida de ribeirinhos da Amazônia para incentivar a leitura e a valorização da vida nortista

Por Stephanie Kim Abe

O que seria do ribeirinho se não fosse a sua canoa? Vivendo da pesca e à beira dos rios, as comunidades ribeirinhas precisam têm nas canoas o seu principal meio de locomoção. 

Mas já pensou também no inverso dessa relação: o que seria da canoa se não fosse o ribeirinho? Qual seria o seu propósito, as suas histórias, o seu legado? 

É essa relação simbiótica que dá base para a história contada pela autora independente Leila Plácido em seu último livro Apenas uma canoa nas noites de verãoNa trama, acompanhamos a vida de Canoa desde o seu nascimento, como uma sementinha de uma árvore no meio da floresta amazônica. Vemos Canoa se tornar canoa pelas mãos do seu Chico, aventurar-se rio abaixo, descansar às margens da vila, acompanhar a vida dos filhos e netos de seu Chico e, principalmente, contar suas histórias acumuladas para sucuris, peixe-bois, ariranhas, jacarés, macacos, botos e outra bicharada. 


“Por que você faria isso, dona Canoa?” – perguntou, aflito, o macaquinho.
– “Por acaso, o rio deixou de ser bonito para a senhora?”

“Porque é o curso natural da nossa vida, pequeninho. Algumas árvores, como a Sumaúma, vivem mais de mil anos, outras centenas e outras décadas. Com os animais não é diferente: alguns existem por um único dia e outros por décadas. E assim segue a vida. Cada um de nós, se árvore, se bicho, se gente, têm um propósito, servimos para algo que completa o todo desse mundo tão grande. Às vezes, a gente não entende, mas o importante é que todos nós temos a nossa significância, a nossa importância e o nosso tempo. O meu tempo, assim eu creio, terminou. Vou levar cada um de vocês na lembrança com muito amor.”

(Apenas uma canoa nas noites de verão, de Leila Plácido, p. 51)

📖 Acesse o livro gratuitamente aqui


Descobrindo a cultura ribeirinha

As lembranças que Leila tem de quando o seu pai a levava para andar de canoa quando pequena eram tão fantasiosas quanto a sua narrativa: “Eu e minhas irmãs dizíamos que víamos tubarão, baleia, tudo – sendo que o máximo que dá pra ver no rio é boto e jacaré”, brinca.

Mas não foi apenas das recordações de infância que Leila tirou sua inspiração para escrever – e ilustrar – sua obra. Ela também buscou o ritmo das toadas do Festival de Parintins e o conhecimento mais aprofundado do modo de vida de quem vive do rio:

Foto: acervo pessoal

Como vivemos em Manaus, eu e minha família levamos uma vida mais urbana, então não temos muito contato assim com vida no rio. Isso acontece quando por ventura o rio enche e, como caboclo fica curioso, nós corremos para ver o rio cheio lá no porto de Manaus. Por isso, eu tive que fazer muita pesquisa em artigos da Universidade Federal do Amazonas, além de conversar com minha avó que mora no interior e minha mãe para lembrar essa forma de fazer a canoa e outros costumes da vida ribeirinha”, conta. 

Leila Plácido, escritora


O Amazonas também é Brasil

O esforço para escrever a história foi importante para poder trazer, através da literatura infantil, um pouco mais desse universo para crianças não só da capital amazonense, mas também de outros estados. 

Para as(os) professoras(es) da região, ela diz que é uma maneira de trabalhar desde crenças populares até a sustentabilidade:

No Amazonas, sonhar com canoa significa morte ou que alguém da família vai morrer. Eu sempre associei à ideia do barqueiro Caronte, que conduz as almas para o outro lado. Então eu dou a dica para que os educadores trabalhem não só essa ideia do mito popular, mas também de outros significados que a canoa pode apresentar, já que ela é multifacetada: a canoa como subsistência, como meio de transporte, como lazer. Também é possível tratar da questão do meio ambiente, já que o modo de vida ribeirinho é autossustentável, e não feito para desmatar e destruir a floresta“, explica.

Leila Plácido

Apesar de não ter tido a oportunidade de trabalhar com educadoras e educadores de outros estados brasileiros, Leila acredita que a obra pode ser trabalhada por todos os aspectos listados acima para reforçar também a presença e importância da cultura nortista na formação e no imaginário de todo o país:

Acredito que seria ideal que esses professores pudessem levar as crianças a conhecer mais sobre o Amazonas e a nossa região norte e reconhecer-nos como parte do Brasil. Nós ficamos tão distantes, que é importante que as pessoas entendam o que se passa por aqui, qual o nosso modo de vida, o nosso folclore etc”, diz. 

Leila Plácido, escritora

Conheça o podcast com narrativas e brincadeiras da cultura amazônica


Incentivo à leitura

Leila conseguiu escrever e publicar sua obra por conta de um edital realizado no Amazonas. Para ela, foi importantíssimo não só imprimir o livro, como doar 300 de seus exemplares para bibliotecas públicas e escolas da região – além de disponibilizá-lo on-line

Apesar disso, ela acredita que mais pode ser feito pelas autoridades públicas para democratizar a leitura e o acesso ao livro:

Infelizmente, ainda temos um grande número de crianças que não sabem ler em Manaus e no Brasil como um todo. Eu posso disponibilizar o meu livro on-line, mas sabemos que muitas crianças não têm acesso à internet.

Por isso, é preciso que as autoridades se pronunciem mais, trabalhem para conhecer melhor cada realidade do país e promovam políticas públicas de incentivo financeiro, logístico, cultural para garantir que mais crianças e adolescentes tenham o seu direito à leitura garantido“. 

Leila Plácido

Enquanto isso não acontece, ela espera que tanto escolas quanto famílias saibam também estimular o gosto pela literatura com as crianças:

“Na minha família, sempre tivemos esse estímulo. Meu pai, mesmo cansado do trabalho, lia pra gente no fim do dia. Foi ele quem construiu a biblioteca que temos hoje. Além de ser um incentivo, ler para os filhos cria um vínculo, estreita laços e traz união, aproxima a família. Em um mundo em que as crianças estão cada vez mais grudadas nos seus celulares, esses pequenos momentos de leitura juntos são importantes”, relembra. 

Veja o vídeo com dicas sobre a leitura em família


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