Pesquisadora Adriana Bauer fala sobre a cultura avaliativa nas escolas brasileiras e explora as potencialidades que o contexto de retorno às aulas presenciais traz para mudanças nas práticas pedagógicas
Por Stephanie Kim Abe
Que atire o primeiro giz a(o) docente que não se deparou com pelo menos uma das dúvidas abaixo nos últimos dois anos de ensino remoto por causa da pandemia de Covid-19:
Como identificar a real situação da aprendizagem das(os) estudantes no modelo remoto (on-line e impresso)?
Como avaliar o desenvolvimento das(os) estudantes em relação às competências socioemocionais no contexto da pandemia?
Como avaliar as(os) alunas(os) em alfabetização na forma remota?
Conteúdos não previstos no currículo, mas que emergiram como aprendizagens significativas durante a pandemia, devem ser avaliados? Como?
Estudantes aprovadas(os) durante o ensino remoto devem receber revisão de conteúdos propostos em 2020 e 2021?
Como realizar intervenções pedagógicas considerando as lacunas de aprendizagem tanto no ensino remoto como no híbrido, de maneira a respeitar as singularidades das(os) alunas(os)?
Essas perguntas, na verdade, foram elaboradas com base nos questionamentos de professoras(es) e supervisoras(es) de ensino da rede municipal de Poços de Caldas (MG), durante os encontros formativos do Programa Ecoa Formação no ano passado.
Mas elas traduzem as dúvidas mais comuns com as quais equipes pedagógicas de diversas escolas brasileiras se depararam ao longo dos últimos anos, conforme se preparavam, se organizavam e se replanejavam para ofertar o ensino remoto às milhares de crianças e adolescentes.
Foto: acervo pessoal
Foi também com base nessas dúvidas que a pedagoga Adriana Bauer escreveu o artigo Avaliação da aprendizagem no contexto da pandemia. Pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) e docente do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), Adriana atuou como consultora e assessora da equipe do Cenpec em 2021, no Programa Ecoa, que promove assessoria técnica e formação docente às redes municipais de ensino de Juruti (PA), de Poços de Caldas (MG) e de São Luís (MA). O programa é uma iniciativa do Instituto Alcoa com coordenação técnica do Cenpec.
A avaliação foi um dos grandes temas tratados no programa, e o artigo traz reflexões e proposições sobre como a avaliação é vista nas escolas e as possibilidades de mudança nesse contexto atípico.
Escrito no final de 2021, o texto será um dos materiais de referência a serem utilizados na formação do programa este ano. O texto sintetiza um dos pontos fortes do Ecoa, ao demonstrar a importância de estreitar o diálogo entre os conhecimentos acadêmicos e escolares.
Como explica Solange Feitoza, coordenadora de pesquisa e avaliação do Cenpec:
Foto: arquivo pessoal
No Ecoa, reconhecemos que há um conhecimento válido que vem da escola. Assim como as(os) docentes não podem se isolar na sua prática de sala de aula, sem buscar uma reflexão sobre ela e se apoiar na literatura especializada, os estudos tampouco devem ignorar as experiências que acontecem no chão da escola. Por isso buscamos sempre estreitar esse diálogo entre o conhecimento teórico e a realidade na ponta, na rede de ensino. Este artigo de Adriana faz justamente isso: bebe da experiência nas escolas e faz referência à literatura para entender e ler essa realidade.”
Solange Feitoza
Entrevista com a autora
Para explorar mais o tema do artigo e trazer outras reflexões pertinentes acerca da avaliação no contexto atual de retomada das atividades escolares presenciais, o Portal Cenpec conversou com Adriana Bauer.
Confirma a entrevista a seguir.
Portal Cenpec: Uma questão importante que você traz no seu artigo é a cultura avaliativa que temos aqui no Brasil, que é de classificação e controle. Como essa cultura se refletiu no trabalho e nas práticas das(os) educadoras(es) no contexto de ensino remoto?
Adriana Bauer: Temos uma série de estudos que nos mostram, a partir da década de 1980, que a avaliação realizada no interior das escolas está atrelada, muitas vezes, a uma lógica somativa. O que significa isso? Que avaliamos para classificar as(os) estudantes, avaliá-los em relação a uma continuidade dos estudos – que leva a uma reprovação ou recuperação, por exemplo.
Temos um pouco mais de dificuldade de analisar resultados de uma avaliação com outros propósitos. Por exemplo, para replanejar a prática docente. Nós sempre assumimos que o resultado não satisfatório da avaliação de um(a) estudante se deve ao problema no seu aprendizado. Mas, às vezes, tem a ver com o ajuste do instrumento (prova, trabalho etc.) que a(o) docente utilizou, que não foi bom para captar o que essa(e) estudante sabe.
Outra dificuldade que temos é de, por meio da avaliação, considerar o que as(os) alunas(os) já sabem, e não procurar somente o que elas(es) não sabem. É importante identificar os saberes que eles já construíram e o que que ainda precisam construir em termos de aprendizagem.
Essa lógica formativa da avaliação é mais difícil de estar presente no interior das escolas – e isso vem de muitas décadas. Porém, na pandemia, veio à tona a necessidade de tomar cuidado com essa lógica somativa, porque as práticas avaliativas que ela propõe não nos ajudaram no contexto de ensino remoto, e também não parecem ideais para essa retomada de aulas presenciais que iniciamos no ano passado.
Portal Cenpec: Quais os principais questionamentos e desafios que você notou nas práticas pedagógicas das(os) docentes e nos encontros formativos com elas(es)?
Adriana Bauer: Ouvi muitos depoimentos de professoras(es) com a seguinte preocupação: “Vale fazer uma prova sendo que as(os) alunas(os) não estão em sala de aula? Como eu vou saber se não é a mãe ou o pai que está respondendo as perguntas para a(o) estudante, se a avaliação realmente reflete seu aprendizado?”.
Uma fala como essa deixa evidente que a intenção é tentar classificar essas(es) estudantes, sendo que a lógica é outra. É tentar compreender o que ele está conseguindo aprender nesse processo por meio de um trabalho virtual ou remoto, às vezes só por meio de atividades e materiais propostos.
Na verdade, percebi que algumas questões sobre avaliação qapontam preocupações que não deveriam ser exatamente o foco das(os) educadoras(es). A pergunta não é “como eu faço uma avaliação para evitar que a mãe ou o pai a faça pela(o) estudante?”, e sim “o que eu preciso avaliar nesse processo e o que eu preciso compreender que a(o) aluna(o) aprendeu e não aprendeu?”. Na primeira pergunta, eu, como professora, estou focada no resultado e o considerando como uma verdade absoluta do aprendizado daquela criança, adolescente ou jovem.
E não é uma questão só de pensar em diferentes estratégias ou ferramentas de avaliação. Vamos pensar na hipótese de os pais estarem respondendo a prova das(os) filhas(os). Isso só mostra que a família também é fruto da cultura avaliativa, que enfatiza mais o resultado. Se a mãe ou o pai está fazendo o trabalho para a(o) filha(o), ela(e) está pensando na mesma lógica de que a(o) filha(o) tem que se sair bem nesse instrumento, ter uma boa nota.
Eu mesma recebo perguntas das(os) minhas(meus) alunas(os) de curso do ensino superior que seguem essa cultura avaliativa, como: “Professora, qual é a prova? Quanto eu tirei?”. Ninguém pergunta: “Professora, o quanto eu aprendi? O que eu preciso ainda continuar lendo, estudando, desenvolvendo?”.
Percebe como estamos todos implicados nesse objetivo de avaliação que só visa a nota mais alta? Percebe como não olhamos para a avaliação com o olhar formativo, e como precisamos de uma mudança de lógica? Ou seja, não é a nota pela nota. Se não mudarmos a nossa concepção de avaliação, independentemente do instrumento que utilizarmos, podemos estar seguindo uma lógica somativa que vai somente acirrar as desigualdades.
Portal Cenpec: O que a gestão educacional e a gestão escolar precisam fazer para mudar essa lógica avaliativa?
Adriana Bauer: Desde a época da discussão dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), já se falava do papel da avaliação formativa na sala de aula, e alguns indicativos de pesquisas apontavam para a dificuldade de concretizar esse discurso na prática. Isso acontece porque, por mais que avaliar seja uma tarefa básica que toda(o) professora(or) realiza, ela está muito focada, na concepção docente, na avaliação somativa, que serve para selecionar, separar quem sabe de quem não sabeos conteúdos curriculares. Isso é bastante discutido nos cursos de formação inicial, mas precisamos discutir mais na formação contínua.
Eu acredito que certamente nós temos uma oportunidade ímpar de trazer práticas mais vinculadas à ideia de avaliação formativa, de preparar de fato e suficientemente as(os) professoras(es) para essa mudança de olhar. Porque, durante o ensino remoto e agora no retorno às aulas presenciais, não tem lógica continuarmos a trabalhar nessa perspectiva.
Precisamos trabalhar com as(os) professoras(es) o olhar para a avaliação como aliada no trabalho docente, principalmente no planejamento curricular. A avaliação não pode ser o centro da aprendizagem. Ela é apenas uma das etapas. Eu avalio minhas(meus) estudantes para compreender o que elas(es) entenderam do conteúdo, e então poder retomar alguns aspectos. A avaliação é, assim, um instrumento de apoio para as(os) docentes replanejarem o seu currículo e a sua prática.
E me parece que o contexto em que vivemos atualmente é o mais propício para utilizarmos essa lógica, pois a pandemia fez com que as(os) professoras(es) tivessem que rever o que é essencial entre os conteúdos que ensinam. Assim, elas(es) também têm que repensar os objetivos de sua prática avaliativa.
Eu não vejo um bom retorno se a gente não tentar utilizar essa oportunidade pra romper de vez com lógica de seleção, classificação.
Nas formações do Ecoa, temos feito essas reflexões . Mas como todo trabalho formativo é um trabalho de formiguinha, que acontece ancorado em muita reflexão das equipes escolares, se possível com o apoio de especialistas que ajudem a questionar essas práticas tão arraigadas no interior da sala de aula. Temos sim a oportunidade de mudar, mas não é uma mudança simples de ser feita. Ela requer muito estudo, muita discussão, muita formação.
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