A escola no pós-pandemia: retorno ou reinício?

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A escola no pós-pandemia: retorno ou reinício?

Confira entrevista com os autores Aldeir Rocha e Maria de Salete Silva sobre a importância da intencionalidade pedagógica e dos aspectos cognitivos no cotidiano escolar

Por Stephanie Kim Abe

Para muitas(os) especialistas e educadoras(es), pensar o retorno à escola  no pós pandemia seria uma oportunidade de inovar. Mudar práticas pedagógicas, utilizar novas ferramentas, pensar diferentes configurações do espaço escolar, aprender novas metodologias, trazer novo significado da escola às(aos) estudantes.

Mas pouco ou quase nada mudou. Seja porque não houve apoio da gestão educacional, investimento por parte do Estado ou mesmo incentivo à gestão escolares e docentes a refletir e reavaliar suas práticas pedagógicas e sua efetividade antes e durante o ensino remoto.

Os especialistas Aldeir Rocha e Maria Salete Silva fizeram esse exercício de análise e reflexão de como seria uma educação no período pós-pandêmico e o que as escolas brasileiras devem priorizar, a seu ver, nesse momento. Seus achados estão no livro A Escola no Pós-Pandemia: Retorno ou Reinício?, publicado pela editora Autografia.

Aldeir Rocha é mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e, ao longo de seus 28 anos de carreira na área educacional, já atuou nos setores públicos e privados, na sala de aula e em gestão de instituições educacionais.

Maria de Salete Silva é arquiteta e foi secretária municipal de educação de Salvador (1995 – 1996) e coordenadora da área de educação do Unicef no Brasil (2007 – 2014).

Os autores buscam acompanhar e refletir as diversas etapas do processo pedagógico, entendendo-o como fruto de uma perspectiva ampliada do ensinar e aprender. A falta de intencionalidade pedagógica e de um olhar para as diferentes dimensões trazidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no planejamento pedagógico são pontos chave que deveriam estar no centro das atenções quando pensamos em uma educação integral que busca formar cidadãos e cidadãs prontos para enfrentar os desafios do século 21.

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A publicação é de fácil leitura e ainda traz como recursos vídeos e esquemas que ajudam a explicar e explorar mais os tópicos abordados pelos autores.

Dada a importância do tema e a relevância das reflexões trazidas no livro, o Portal Cenpec conversou com os autores sobre algumas dessas questões. Confira:


Portal Cenpec: Na apresentação do livro, vocês trazem a seguinte questão, focada no contexto pós-pandemia: “Queremos simplesmente um retorno às nossas práticas tradicionais ou estamos dispostos a um reinício?” No atual contexto, em que vivemos índices alarmantes de abandono e evasão escolar e discutimos caminhos para recuperação, aceleração, recomposição de aprendizagem, quais as possibilidades de mudanças amplas e profundas nas práticas educacionais?

Foto: acervo pessoal

Maria da Salete Silva: “Nós começamos a escrever o livro antes da pandemia e, quando entramos nela, vimos que foi um acontecimento que afetou muito todo mundo, especialmente na área de educação. Ao longo da produção e pesquisa, ouvíamos muito uma conversa assim: ‘nós paramos nesse ponto aqui do conteúdo que tinha que ser ensinado. Então, quando acabar, vamos voltar desse ponto’.

Quer dizer, nós vamos simplesmente voltar para o que era antes, sendo que tem um monte de coisa acontecendo? Como se todo mundo tivesse sido abduzido e voltasse dois anos e meio depois do mesmo jeito, como um filme de ficção?

Então, ao falar em reinício, não propomos voltar ao que era, mas assimilar as coisas novas que há no dia a dia da educação aqui no Brasil e o que a pandemia nos ensinou (sobre vivência, acolhimento etc.) e, principalmente, olhar para a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) que coloca o conteúdo num lugar diferente do protagonismo na montagem de currículo, de planejamento de aula e de avaliação.”


Portal Cenpec: O ponto central deste livro é a ideia de olhar o processo educativo numa perspectiva ampliada – e, para explicar essa visão, vocês utilizam o esquema na foto acima. Podem comentar, com base na imagem, como seria essa perspectiva ampliada?

Foto: acervo pessoal

Aldeir Rocha: “Para nós, o processo educativo acontece em três etapas básicas, que ocorrem ao mesmo tempo: planejar, colocar em prática e avaliar. É um processo contínuo da escola: a avaliação serve para orientar um replanejamento, que serve pra reorientar a prática, que, enfim, culmina em outra avaliação.

Aqui, nós estamos separando a dimensão de conteúdo da dimensão cognitiva e da dimensão afetiva, socioemocional. Mas, historicamente no Brasil, o eixo que organiza esse processo de planejamento, aula e avaliação é apenas o conteúdo. Ou seja, planeja-se uma lista de conteúdo e o professor ou a professora se planeja para, por exemplo, este mês, ensinar soma de fração com dois algarismos e, no mês seguinte, multiplicação de fração. E por aí vai. Percebe que eles estão apenas olhando para o objeto de conhecimento?

Agora, a BNCC é organizada por habilidades e competências. Há sempre um verbo, que descreve o domínio cognitivo esperado para o desenvolvimento das(os) estudantes. Por exemplo, comparar ou analisar. Então, desenvolver uma habilidade significa não só aprender a somar fração, mas a estabelecer comparação entre fração de dois dígitos e um, ou outra coisa do tipo.

Nossa tese é que existe pouca intencionalidade pedagógica para se trabalhar com essa dimensão. Ou seja, as(os) docentes, ao planejar, ao dar a aula e ao avaliar, precisam ter em mente que, muito mais do que o saber em si, há objetivos que são desse domínio cognitivo, importantes para a vida, que precisam ser considerados e avaliados.”

Maria de Salete Silva: “Pensar o que você vai planejar e colocar em prática em sala de aula envolve uma dimensão ampliada de todo esse currículo e uma intenção pedagógica bem definida. Não adianta só falar que o currículo da escola já está alinhado à BNCC se o planejamento da aula ainda continua inspirado apenas no conteúdo. Dar esse passo adiante é fundamental para mudar de fato as nossas práticas e não apenas retornar à escola que tínhamos antes da pandemia.”


Portal Cenpec: Como que essa perspectiva ampliada se alinha à uma educação integral?

Maria da Salete Silva: “Não dá para falar de educação integral com uma lista de conteúdos. Não estamos falando de ensinar o conteúdo e depois dar sentido a ele. A mudança é mais profunda, porque requer que o que seja planejado, colocado em prática e avaliado seja feito de uma perspectiva de formação do ser inteiro.


É dar possibilidade para as(os) estudantes saberem discutir a questão do desmatamento, relacionar as diferentes causas e relações na natureza, e entender como esses objetos de conhecimento e essas habilidades se articulam com a vida dele. A vida das pessoas não é um caderninho de atividades. A perspectiva ampliada é a única forma de pensarmos de fato em uma educação integral.”

Aldeir Rocha: “Cada vez mais percebemos que essa educação conteudista, enciclopédica sozinha não resolve nada. Quantas vezes já escutamos um professor falar: “o meu aluno sabe matemática, só não sabe interpretar!”. Não temos dúvida de que é necessário saber fazer uma operação matemática, mas o quanto ela é ferramental para as(os) estudantes lidarem com os seus problemas, para enfrentarem a vida e se desenvolverem plenamente? Daí a importância de olhar para as outras dimensões.”


Portal Cenpec: Em outro trecho do livro, vocês falam sobre tirar o foco apenas do conteúdo, inclusive ao pensar o processo avaliativo de volta às aulas: “Se queremos reiniciar com avaliações diagnósticas significativas, precisamos construí-las numa perspectiva multidimensional, que incorpore os conteúdos mas vá muito além deles”. Vocês veem as escolas olhando para essa questão?

Aldeir Rocha: “Quando a pandemia começou a dar sinais de arrefecimento e as escolas começaram a falar em voltar, a palavra de ordem foi diagnóstico. As escolas focaram em avaliações diagnósticas para entender qual foi, de fato, o prejuízo desse período de ensino remoto.

Foi então que surgiu nossa preocupação de que os diagnósticos estivessem focados apenas no conteúdo. A criança aprendeu ou não a operação de multiplicar? Ela aprendeu ou não a operação de soma? Apesar de a BNCC estar implementada plenamente na educação infantil e no ensino fundamental (e faltando apenas um ano para ser implementada no ensino médio), colocando um currículo organizado em habilidades e competências, o objeto de conhecimento, ou seja, o conteúdo, ainda é o único que tem importância para as escolas.

Nós acreditamos que as ações diagnósticas e, agora, as ações educativas devem ter essa preocupação sobretudo na dimensão cognitiva – porque entendemos que a dimensão socioemocional está sendo bem cuidada e debatida pelas escolas. Mas a dimensão cognitiva nos parece ainda vista em segundo plano, sem intencionalidade clara.”


Portal Cenpec: O que é necessário às(aos) educadoras(es) observar ao planejar suas práticas avaliativas levando em consideração essa dimensão cognitiva?

Aldeir Rocha: “É preciso ter consciência do que se quer avaliar, algo que não temos visto hoje. Primeiro, na verdade, é preciso ver quais domínios cognitivos foram intencionalmente – porque tem que ser com intenção pedagógica – trabalhados pelo professor.

Pegando um exemplo que colocamos no livro, na página 56, temos a seguinte habilidade: Descrever e analisar dinâmicas populacionais na Unidade da Federação em que vive, estabelecendo relações entre migrações e condições de infraestrutura.

Temos duas dimensões aqui: as(os) alunas(o) têm que ser capazes de “descrever” e “estabelecer relações”. Essa habilidade, portanto, precisa ser avaliada parte a parte, para que as(os) professoras(es) entendam e planejem como vão trabalhar cada um desses passos com intencionalidade na sala de aula, para desenvolver essa habilidade com a turma.”

Maria de Salete Silva: “Além disso, tanto docentes quanto estudantes precisam saber o que significa cada um desses verbos. Sabe-se o que é ‘analisar’ ou ‘descrever’? Sabe-se que, por exemplo, escrever uma análise envolve uma inferência, pois é preciso separar o que é mais relevante do que é menos relevante, e, ao final, inferir alguma coisa.

Daí ser muito comum casos em que as(os) professoras(es), em uma atividade avaliativa que tenha como enunciado “compare A com B”, as(os) alunas(os) respondam com uma lista de características de A e uma lista de características de B. Mas não estabelecem de fato uma comparação, porque não sabem o que é, afinal, estabelecer comparação.

Ou professora(or) pedir uma análise, a(o) estudante escrever meia página e recebe um meio certo. Está certo, mas nem tanto. Está bom, mas não muito. As(Os) estudantes, quando vão contestar, perguntam: “não era isso o que a(o) senhora(or) queria?”. A professora(or) explica e a(o) aluna(o) responde: “ah, mas isso eu sabia. Não sabia que era isso que você queria”.

Ou seja, isso tudo passou batido no trabalho pedagógico com a habilidade e não se explicitou a intenção para trabalhar essas direções cognitivas. É preciso não passar mecanicamente pelas atividades, para que as crianças possam desenvolver habilidades que, juntas, vão levar às competências.”


Portal Cenpec: Que condições precisam ser garantidas pelas redes de ensino e escolas para que esse ciclo contínuo aconteça e uma mudança concreta se realize nas salas de aula?

Maria de Salete Silva: As equipes responsáveis precisam tirar essas ideias de um discurso bonito e entender como aplica-las no dia a dia escolar. O currículo não pode ser algo que fica na gaveta da diretora ou apenas na mão da coordenadora pedagógica. É preciso trazê-lo para a sala de aula e realizar mudanças que são difíceis, que exigem mobilizar todo mundo – até os cursos de pedagogia.

Por exemplo, as redes costumam fazer uma semana pedagógica no começo do ano para fazer o planejamento. Depois, elas vão avaliar o que foi feito só antes das férias de Natal. Então passa-se o ano inteiro sem estabelecer um procedimento, uma prática de avaliação com intencionalidade pedagógica. Elas precisam ter uma visão e colocar em prática um ciclo contínuo de planejamento, prática e avaliação, que aconteça durante todo o ano, e seja mais iluminado por uma intencionalidade pedagógica ampla, que não fique de olho apenas naquele objeto do conhecimento, se ele foi dado ou não.

Elas também podem estimular mais uma ação de grupo, mais coletiva, ou seja, criar uma equipe em que as(os) professoras(es) possam usar as habilidades que têm e aprender umas(ns) com as(os) outras(os), com objetivos comuns.”

Aldeir Rocha: “Além disso, é preciso um trabalho mais prático com os educadores ao trazer a BNCC para a realidade local e fazer as suas devidas adequações. Porque, vale lembrar, a BNCC não é o currículo. Ela é uma referência para se elaborar o currículo de cada rede de ensino e cada escola. É preciso ter essa atenção especial ao analisar uma habilidade e transformá-la em um objeto do planejamento pedagógico.”


Portal Cenpec: Temos políticas públicas que olham para as questões levantadas por vocês no livro, como esse olhar para os aspectos cognitivos e essa visão ampliada do processo educativo como um todo?

Maria de Salete Silva: “Houve um passo e um incentivo para adequação curricular, mas os passos seguintes de transformar aquilo na prática, na avaliação e no planejamento não ocorreram. Paramos na necessidade de formação complementar com as equipes pedagógicas para justamente saber trabalhar as diferentes dimensões que estão presentes na BNCC.

Além disso, os sistemas de avaliação, até os internacionais, como o PISA, são muito conteudistas ainda. Ou seja, eles também não ajudam no sentido de promover mudanças e ampliar o processo educativo.”

Aldeir Rocha: A gente foi percebendo que, de fato, não é uma prática. Então, enquanto política pública, nesses últimos anos, eu percebi pouca ação nesse sentido, houve ações apenas para reorganização curricular.

Algo que as discussões sobre políticas públicas têm centrado é na questão da tecnologia. E eu acho isso perigoso. Não estou querendo renegar o tema tecnológico e a importância de as escolas terem banda larga, computador, conectividade. Mas há patamares que ainda não foram alcançados pelas escolas brasileiras que antecedem essa questão – como essa discussão sobre a dimensão cognitiva, não apenas para o conteúdo.

Ela antecede porque, por mais que seja um jargão, a tecnologia é apenas um meio, ela não é um fim em si. Temos pessoas falando de trabalhar por projetos, mas há muitos professores que não conseguiram nem entender o que é desenvolver uma habilidade e uma competência. Como fazer isso acontecer de fato, então?

Então acho que temos um trabalho grande nesse sentido, que deveria ser foco muito maior do que está sendo dado hoje. “


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