Eliane Leite: "A mulher negra, quando ocupa um cargo de liderança, representa toda uma comunidade" CENPEC -

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Eliane Leite: “A mulher negra, quando ocupa um cargo de liderança, representa toda uma comunidade”

Diretora de escola, CEO de consultoria de diversidade e conselheira do Cenpec, Eliane fala sobre sua trajetória de vida, representatividade e o papel da escola no combate ao racismo

Por Stephanie Kim Abe

De Dandara dos Palmares e Tereza de Benguela a Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro, passando por Antonieta de Barros e Lélia Gonzalez, são muitas as mulheres negras que fizeram história no Brasil, nos mais diferentes campos do conhecimento e atuação. 

Na política, tivemos ainda Laudelina de Campos Melo e Marielle Franco, entre muitas outras. Nos esportes, Marta, Formiga, Rafaela Silva. Nas artes, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Leci Brandão, Elza Soares. Na educação, Maria Firmina dos Reis, Sonia Guimarães, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. 

Mas não é nenhum desses nomes que Eliane Leite Alcantara Malteze escolhe para listar como lideranças negras que a inspiram. 

Foto: acervo pessoal

Se eu quisesse, poderia desfilar uma série de nomes de mulheres maravilhosas. Mas, neste momento, quero fazer referência a duas mulheres que são importantíssimas porém de certa forma desconhecidas e que, muitas vezes, acabamos não dando o devido valor”.

Eliane Leite Alcantara Malteze

Ela prefere nomear duas pessoas próximas: sua irmã gêmea Elizabeth Scheibmayr e a professora dra. Eunice Aparecida de Jesus Prudente. 

Minha irmã é minha sócia na Uzoma e me inspira muito com sua clareza e o seu propósito, que são muito verdadeiros. A doutora Eunice Prudente é a atual Secretária Municipal de Justiça, e eu a conheço desde a infância porque ela conviveu com meu pai. Ela foi a primeira professora titular negra da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e sua presença foi fundamental dentro dessa instituição. Ela é uma mulher que sempre me inspirou e me trouxe uma influência enorme”. 

A própria Eliane entra nessa categoria de mulheres negras incríveis. Formada em Matemática pela PUC-SP, é professora da rede pública paulista há mais de 25 anos. Além de diretora da Etec Profa. Dra. Doroti Quiomi Kanashiro Toyohara, na zona norte de São Paulo, Eliane é CEO e fundadora da Uzoma Diversidade, Educação e Cultura, uma empresa de consultoria com foco na inclusão e diversidade no mercado de trabalho. 

Integrante do Conselho do Cenpec e líder do Comitê de Igualdade Racial e do Comitê de Educação do Grupo Mulheres do Brasil, Eliane também já recebeu prêmios por seu trabalho em prol da igualdade racial, como o Prêmio Educadora do Ano 2020 da XP Inc. e o Prêmio Mulher Negra Latino Americana Caribenha 2018. 

Para celebrar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (dia 25 de julho), o Portal Cenpec conversou com Eliane para saber mais sobre a sua trajetória, seus ideais, sua luta contra o racismo, suas conquistas e opiniões sobre como a escola pode continuar se transformando para acolher a todas e todos

Eu sempre tive muita consciência de quem sou e do lugar que ocupo. Então onde estiver, eu chamo e chamarei atenção para que as pessoas façam esse teste do pescoço de olhar para o lado e perceber quantas pessoas negras têm ao seu redor. O Brasil é sim um país racista e precisamos trazer mais aliados para essa causa, pessoas negras e não negras, porque só vamos mudar essa situação se encararmos esse problema de frente. E a escola tem uma responsabilidade muito grande na construção de uma sociedade melhor, não da geração do futuro, como muitas(os) falam, mas da geração do agora“.

Eliane Leite Alcantara Malteze

Teste seus conhecimentos sobre o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha


Confira a conversa completa abaixo!

Portal Cenpec: Como você ingressou na docência? 

Elaine Leite: Eu falo que a escola sempre fez parte da minha vida. Entrei com seis anos e nunca mais saí da escola. Enquanto cursava Matemática na PUC-SP, com 18 ou 19 anos, passei em um concurso para escriturária e fui trabalhar em uma escola. Depois de um tempo, a diretora, que sabia que eu cursava Matemática, perguntou se eu queria cobrir a licença de um professor que ficaria um tempo fora. 

Eu lembro que fiquei insegura, com medo, porque teria que pedir demissão do cargo efetivo que eu tinha, via concurso, para ser professora substituta. Eu fui falar primeiro com o meu pai, porque ele sempre incentivou todo mundo da família a prestar concurso público. Ele acreditava que ali estaríamos mais protegidos do racismo, porque se entra por meio de prova, ou seja, por competência, o cargo é vitalício, e ele acreditava que esse lugar era mais confortável, no sentido de sofrer menos com barreiras. 

Enfim, eu acabei aceitando e foi uma experiência maravilhosa entrar na sala de aula. Fiquei dando aulas e estudando. Depois, prestei um concurso público na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, fui aprovada e passei a trabalhar em uma escola em Guarulhos. Era longe pra dedéu, mas foi uma das melhores experiências que eu tive na Educação, pois tínhamos uma possibilidade enorme de fazer muita coisa. 

Junto comigo, entraram uma professora de língua portuguesa e outra de biologia. Nós trabalhamos muito juntas, com as primeiras experiências da escola de trabalho interdisciplinar. Fazíamos muito trabalho de campo com as(os) estudantes, conhecendo a região e trabalhando diversas pesquisas nas três disciplinas. 

Depois de um ano, fui removida e passei a trabalhar perto de casa, na zona norte. Fui para o Centro Paulo Souza, trabalhando por 20 anos na Etec Carlos de Campos, no Brás. 

Por fim, fui qualificada e fiz processo para ser diretora, e foi quando assumi a direção da Etec Doroti, onde estou atualmente, em Pirituba. 

Portal Cenpec: Quando você percebeu que era necessário falar sobre as questões raciais na sala de aula e na escola?

Eliane: Meu pai, Antonio Leite, foi um dos fundadores do Movimento Negro Unificado em 1978. Então nós sempre entendemos que, não importa onde estamos, qual a nossa condição financeira, quem somos, nunca estaremos blindados do racismo. E a escola é um microcosmo da sociedade, então ela também reproduz o racismo, o machismo, o sexismo, a homofobia. Todas essas questões permeiam a escola – e como diretora ou professora, eu também nunca estive blindada de ser tratada de maneira racista. 

Quando eu dava aula no supletivo de uma escola particular, um aluno chegou para mim e disse: “eu não quero ter aula com essa negra vagabunda”. O caso chegou a sair no jornal e causou a expulsão do aluno em questão. Em outro episódio, quando eu dava aulas particulares, eu cheguei no prédio da minha aluna e o porteiro me mandou seguir pela entrada de serviço. Eu liguei para a minha aluna e falei que não ia entrar por lá. 

No sentido contrário, eu lembro de quando entrei aqui na Etec Doroti, um dos alunos me disse: “é a primeira vez que eu tenho uma diretora negra”. Isso foi muito importante, para ele e para mim, não apenas por eu ser negra, mas pela minha atuação com a questão racial. 

Eu sempre tive muita consciência de quem eu sou e do lugar que eu ocupo. Então onde estiver eu chamo e chamarei atenção para que as pessoas façam esse teste do pescoço de olhar para o lado e perceber quantas pessoas negras têm ao seu redor. O Brasil é sim um país racista e precisamos trazer mais aliados para essa causa, pessoas negras e não negras, porque só vamos mudar essa situação se encararmos esse problema de frente. E a escola tem uma responsabilidade muito grande na construção de uma sociedade melhor, não da geração do futuro, como muitos falam, mas da geração do agora. 

Saiba mais sobre o MNU e sua luta contra o racismo em plena ditadura militar nesta matéria da BBC Brasil

Portal Cenpec: Qual a importância das reivindicações do feminismo negro no combate ao racismo e às desigualdades educacionais?

Eliane: Eu sempre ressaltei que a questão do feminismo negro é muito cara para mim. O feminismo negro olha então para esse recorte, porque sabemos que quando falamos de feminismo, a centralidade ainda está nas mulheres brancas. 

Precisamos desse olhar porque sabemos que a mulher negra é a última da pirâmide social quando levamos em conta diversas questões: salarial, de direitos, de atenção à saúde, à saúde mental etc. A sobrecarga sobre a mulher negra é sempre maior. 

E, ao olhar para esse recorte, estamos olhando para a história da formação da sociedade brasileira. A escola, ao discutir essa história civilizatória do país a partir do feminismo negro, nos ajuda a entender em que lugar a população negra está colocada ou ocupa. Se essa população ficou 350 anos escravizada, em que lugar que ela está? Por que não avançamos? Por que na universidade existem menos pessoas negras? Por que há menos mulheres negras nos cursos de Exatas? Por que as meninas negras evadem da escola? 

Toda a escola, quando vai fazer a sua construção do seu projeto político pedagógico, precisa ter um olhar de onde ela está e que sociedade é essa, quantos professores a escola tem, quantos são negros, quantas mulheres, quantas são as mulheres negras, e que leitura esse aluno faz desse cenário docente. A escola deve trazer essa discussão no seu projeto político pedagógico, contemplando todos e todas como pessoas que fazem parte dessa construção.

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Portal Cenpec: De que maneira esse olhar deve se manifestar na prática no ambiente escolar?

Foto: acervo pessoal

Eliane: A começar pela questão: em que lugar eu estou? A escola que eu dirijo, por exemplo, está numa região periférica de São Paulo. A partir daí, há várias perguntas a serem feitas e respondidas: qual é a população dessa região? Quantas escolas públicas existem aqui na região? Onde estão as(os) estudantes negras(os) e onde estão as(os) brancas(os)? No ensino fundamental, qual a porcentagem de estudantes negras(os) e não negras(os)? Qual a porcentagem de estudantes que chegam aqui no ensino médio? 

Eu sempre falo para as(os) minhas(meus) alunas(os) do ensino médio que o fato de elas(es) seguirem na escola no Brasil, infelizmente, é um privilégio, porque sabemos quantos estudantes abandonam a escola antes dessa etapa. São adolescentes que precisam sair para trabalhar, para poder sustentar a família, para cuidar do irmão, para cuidar dos filhos (no caso das meninas, principalmente).

Nesse sentido, se a evasão das meninas negras e dos meninos negros é maior, então eu devo fazer um trabalho que garanta a sua permanência. Por isso, a escola precisa conhecer esse cenário, o território onde está localizada e fazer desse retrato parte do projeto político pedagógico. Claro que algumas questões a serem resolvidas são da alçada das políticas públicas, mas temos o dever de, pelo menos enquanto a(o) estudante estiver dentro da escola, garantir a sua permanência e sua aprendizagem. 

Portal Cenpec: Na sua opinião, temos avançado no combate ao racismo? De que maneira podemos avançar mais nessa pauta dentro da escola?

Eliane: Como muitas pessoas têm dito, tivemos sim um avanço enorme quando falamos em educação, principalmente por conta da lei 10.639/03. Mas percebemos que a formação docente ficou parada no tempo. 

Para termos uma mudança real, precisamos mexer nessa formação. As professoras e os professores ainda hoje no Brasil se formam com uma visão enviesada da história brasileira, uma visão branca e ocidental. É preciso falar sobre a riqueza cultural e as contribuições que os povos africanos trouxeram para a sociedade brasileira.

Não se fala das contribuições da população indígena ou negra para as diversas áreas do conhecimento, como Matemática, Ciência etc. Por isso a formação docente precisa ser desconstruída e modificada para que não seja mais ocidentalizada. Precisamos de uma narrativa mais inclusiva, que contemple os pontos de vista diversos, e valorize a cultura negra, indígena. 

Vale lembrar que é a(o) professora(or) quem está trabalhando no dia a dia em contato direto com as crianças e adolescentes, desde a educação infantil até o ensino médio. Ele precisa entender do poder da sua influência. Entender que, quando não escolhe uma menina negra para fazer parte da quadrilha ou para ser a rainha da primavera, está deixando marcas profundas nessa criança. Quando uma professora de educação infantil fala que uma criança negra tem um cheiro muito forte, por isso não a pega no colo, ela abre uma ferida que muitas vezes não tem cura. 

Então as pessoas que trabalham na educação precisam entender a responsabilidade que têm em mãos no sentido de garantir que todas as crianças possam crescer de forma saudável e saber que elas podem chegar e fazer o que quiserem no futuro.

Portal Cenpec: Você também fundou, junto com a sua irmã, a Uzoma. Como surgiu a ideia de montar uma empresa de consultoria para diversidade?

Eliane: A Uzoma atua no mundo corporativo trabalhando com a formação e o treinamento de líderes mais inclusivos, que entendam que a diversidade, na verdade, não pode ser moda. Num país como o Brasil, cheio de desigualdades e com uma dívida histórica com a população negra, precisamos ter ações intencionais e cabe à liderança corporativa tomar essas atitudes para que as organizações sejam espelho da sociedade que temos e queremos.

Nós partimos do princípio de que só podemos propor questões diferentes quando temos a capacidade de estar com pessoas que são diferentes de nós. Então a Uzoma contribui para que as organizações reflitam e tenham intencionalidade nos seus processos internos, tanto de contratação quanto de promoção de profissionais.

De certa forma, a ideia de trabalhar com essa temática já estava posta para nós, porque o meu pai, lá nos anos 1970, já pensava na carreira das(os) profissionais negras(os) quando ele nos incentivava a prestar concurso público. Por isso trabalhamos na aceleração e nos programas de carreira de jovens negras(os) também.

Portal Cenpec: O que é ser uma mulher negra em um cargo de liderança?

Foto: acervo pessoal

Eliane: A mulher negra, quando ela ocupa um cargo de liderança, nunca fala por si só. Ela representa toda uma comunidade. Essa é uma grande responsabilidade e também um problema. 

Eu preciso olhar para o que eu estou fazendo e como isso pode influenciar positiva ou negativamente as gerações que estão por vir depois de mim. Ao mesmo tempo, precisamos honrar quem veio antes.

Não é a qualquer preço que eu cheguei a essa posição. Estou aqui pelo meu filho, pelos meus sobrinhos, pelas outras mulheres e meninas negras que não conheço, mas que vão olhar para mim e me ver como uma mulher forte que, por mais que tenha batalhado contra o racismo, conseguiu chegar lá. Eu espero que elas também não precisem necessariamente passar por todas as barreiras que eu passei. Espero que o caminho delas seja mais fácil. 

Meu papel, como liderança negra, é inspirar e fazer com que minha voz ecoe em outros lugares. 

Veja como o Cenpec trata a questão étnico-racial


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