Educação integral na Emei Gabriel Prestes (SP): uma escola que é pra dentro e pra fora

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Educação integral na Emei Gabriel Prestes (SP): uma escola que é pra dentro e pra fora

Conheça a experiência de uma escola pública de educação infantil que explora a potência do território com suas turmas e confira dicas de como realizar saídas pedagógicas com crianças pequenas


Por Stephanie Kim Abe

Quarta-feira, 22 de março, centro da cidade de São Paulo. É uma hora da tarde, e o sol aparece forte no céu com poucas nuvens, mas as árvores aqui fazem uma sombra gostosa que ameniza o calor. 

Um grupo de cerca de 20 crianças de 4 e 5 anos se aproxima pela esquerda. Elas passam rapidamente por um outro grupo de crianças da mesma idade, que, vestidos com trajes de banho, ora estendem toalhas no chão ou nas mini cadeiras de praia, ora pulam no espelho d´água – cuja estrutura e azulejos dão a pinta de que, mais pra frente, pode virar uma boa piscininha. 

O primeiro grupo vem chegando perto, acompanhado da professora. Ela instrui para que as crianças se sentem, mas, vendo que elas começam a se espalhar, orienta: “senta todo mundo aqui na Rua da Consolação, perto do Parque Augusta”. 

Quem conhece a maior capital brasileira deve estar achando difícil situar em que parte exatamente dessa região a cena acima poderia acontecer – por mais bem precisa tenha sido a localização dada pela professora. É porque tudo isso se passa dentro da Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Gabriel Prestes, que fica, de fato, na Rua da Consolação, perto do Parque Augusta.  

Mapa pintado no chão do pátio mostra a localização da escola no bairro. Foto: Stephanie Kim Abe

As crianças se sentam no pátio da escola, em cima das ruas pintadas no chão que compõem justamente o mapa do entorno da instituição, feito pelo argentino Tec

Essa é apenas uma das muitas intervenções que dão cores e vida à escola – como o grafite do artista Ozi no portão do estacionamento que mostra uma menina negra abraçando o mundo. 

A fachada do prédio que ocupa desde que foi fundada há mais de 60 anos não revela o incrível espaço que a Gabriel Prestes tem por dentro, herdado do conceito de Parque Infantil, criado na gestão de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura da cidade (1935-1938).

Há parquinho de areia, uma quadra descoberta, hortas, cantinho de leitura. No canto oposto ao espelho d’água, atravessando o pátio, há um jardim com cabana, escorregador e grandes árvores, além de um recém-construído espaço com forno a lenha e mesas comunitárias. Atrás das quatro salas e do refeitório, há ainda outro jardim, onde ficam os pés de jacas. 

O que não falta aqui é espaço ao ar livre para que as 200 crianças que frequentam a escola possam brincar, fazer esporte, se movimentar, dançar, explorar, experimentar – todos princípios da educação integral que a escola preza e pratica, como explica o diretor João Kleber Santana:

Foto: acervo pessoal

Pensar na criança em um aspecto de formação integral é garantir essa relação com o ambiente, com o corpo, com a cultura, com a música, com a cultura da infância. A educação integral na Gabriel Prestes busca proporcionar às crianças diferentes experiências.”

João Kleber Santana, diretor da Emei Gabriel Prestes

Leia mais sobre como articular os pilares da educação integral


Para além dos muros da escola

Privilegiada por seu espaço físico, a escola poderia ser um universo todo particular que se basta sozinha. Mas essa ideia vai contra a concepção de escola e educação integral em que a gestão e o corpo docente da Gabriel Prestes acreditam. 

Entendemos que o nosso papel é pra dentro, no sentido de realizar um trabalho pedagógico com as crianças nos ambientes escolares; mas também que temos um trabalho pra fora a ser feito, de conexão com o bairro. O pleno desenvolvimento das crianças passa por essa exploração do território“, explica João. 

As diversas pinturas no chão da escola de ruas e do mapa da região exemplificam e escancaram, portanto, um ideal-chave para a instituição. As marcas do território estão também na própria composição do corpo discente, pois há uma diversidade grande de perfil socioeconômico e cultural entre as crianças da Emei, tal como é o centro da cidade de São Paulo

“Já tivemos filho de ator da Globo, ao mesmo tempo que temos crianças imigrantes, ou cujos pais são donos de pequenos comércio da região, ou mesmo algumas em situação de vulnerabilidade”, relata o diretor. 

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Foto: acervo pessoal

Marilene Sales de Melo, coordenadora pedagógica da Emei desde 2020, já fez muitos projetos com famílias migrantes ao longo dos seus mais de 10 anos como coordenadora na rede municipal.

Ela acredita que a educação integral na educação infantil potencializa e muito o trabalho realizado, principalmente em vista de uma grande diversidade:

Placa com 3 línguas diferentes para indicar os brinquedos. Foto: Stephanie Kim Abe

Na educação infantil, conseguimos superar a questão da barreira linguística por conta do trabalho com múltiplas linguagens: música, corpo, contação de histórias. Essa múltiplas experiências facilitam essa troca e adaptação.” 

Marilene Sales de Melo, coordenadora pedagógica da Emei


Trabalhando com a vida de verdade

A professora Edna Conceição Monteiro – que conduzia a turma da cena no início da reportagem – tem uma vasta experiência em explorar todo o potencial do território com as crianças. Ela já levou suas turmas para dar a volta no quarteirão para contar as árvores; para o cemitério, a biblioteca, e por aí vai. Ela, inclusive, já recebeu diversos prêmios pelos projetos conduzidos na Gabriel Prestes.

A saída ao território permite aflorar e explorar uma multiplicidade de linguagens que vão muito além daquelas que encontramos no ambiente da sala de aula ou mesmo de um parque. Quando você leva as crianças à rua, são inúmeras as formas de apontar, de mostrar, de observar. São situações que permitem que as crianças comecem a ser autônomas e a protagonizar.”

Edna Conceição Monteiro, professora

“A criança aprende tempo de farol, como se comportar na calçada, a identificar as ruas pelas pessoas ou pelo comércio, a se guiar e se encontrar na cidade”, acrescenta João. 

Pode ser o farol que não funciona, os buracos na calçada, a falta de árvores na rua… o que quer que as crianças apontem pode ser um gancho para trabalhar algum conteúdo.

Edna Conceição Monteiro. Foto: acervo pessoal

Se você trabalhar o que aponta a BNCC em sala de aula, isso será apenas um conteúdo. Mas se você olha para o entorno e traz isso para a realidade, para a vida de verdade, aí sim a aprendizagem acontece de fato e atinge todas as crianças, em suas inteligências múltiplas, como diz Howard Gardner“, diz Edna.

Para João, o mais importante ao realizar saídas para o território com as crianças é trabalhar as verdades e as pré-concepções delas sobre diferentes assuntos. 

“Aqui no centro de São Paulo, vemos muitas pessoas em situação de vulnerabilidade. Pessoas em situação de rua, usuários de crack. As pessoas acabam se acostumando com seus preconceitos e com essas situações cotidianas. Explorar o território é uma maneira de humanizá-lo“, reflete João.

Ao observar as crianças nessas saídas, começamos a perceber como elas vão se desenvolvendo. Voltamos para a sala de aula pensando em como garantir que essa criança se desenvolva tanto quanto a outra. Não para que sejam iguais, porque somos todos diferentes. Mas para que todas atinjam o seu potencial e tenham oportunidades iguais.”

Edna Conceição Monteiro, professora


💡 Dicas: Planejando saídas pedagógicas no território

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O que a sociedade e a cidade aprendem com as crianças

Cristina Sacramento é mãe de Fernando, aluno de cinco anos que frequenta a Emei Gabriel Prestes. Ela adora a escola e tem visto o seu filho desenvolver a sociabilidade e a maneira de se portar desde que entrou na escola, há dois anos. 

Foto: acervo pessoal

Ela destaca o espaço físico, a qualidade e formação do corpo docente, o diálogo aberto com a comunidade escolar e a liberdade que as(os) educadoras(es) têm para realizar os seus projetos como alguns dos pontos fortes dessa Emei. Mas, para ela, há um propósito maior na maneira como a escola leva suas crianças a se relacionarem com o território:

Ela mostra que a criança pode ocupar aquele território, e que o espaço público é direito dela também. É uma aula de cidadania na veia.” 

Cristina Sacramento, mãe de estudante da Emei

Na execução de seus projetos, a professora Edna já se deparou muito com a falta de preparo da cidade para lidar com as crianças e esse tipo de atividade.

Foto: Stephanie Kim Abe

“Tem ônibus de linha que não para se vê uma turma de 20 crianças e alguns adultos esperando para subir. Sempre que saímos e vamos pegar o metrô, levo o projeto no braço pois sei que vou ter que explicar que estamos acompanhando as crianças e, portanto, deveríamos ter isenção na taxa. Às vezes, é uma humilhação”, relembra Edna.

“Por isso que devemos incomodar, porque o que incomoda muda”, cutuca a coordenadora Marilene. É por isso que as turmas costumam deixar marcas por onde passam pela cidade, com o escrito: “atenção, criança na área”.

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As mudanças podem ser pequenas ou demoradas, mas elas vão possibilitando que a infância tenha mais visibilidade e que a criança tenha, aos poucos, o seu direito à usufruir da cidade garantido. Pode ser uma biblioteca infantil que abaixa as estantes para que fique da altura de suas(seus) usuárias(os), ou um museu que passa a oferecer acessibilidade para as crianças com deficiência.


A cidade sempre educa, mas da forma como ela tem rejeitado as suas crianças, ela tem dado uma má educação. Acaba sendo tudo uma negociação, até que conseguimos naturalizar. Nesse processo, precisamos educar as empresas e gestões que trabalham nesses equipamentos públicos, como o metrô e a biblioteca.”

João Kleber Santana, diretor da Emei Gabriel Prestes


Problemas complexos requerem soluções complexas

Pode parecer contraditório, mas reconhecer que realizar projetos como os que a Emei Gabriel Prestes realiza não são fáceis é um primeiro passo para incentivar que mais atividades semelhantes ocorram em outras escolas. 

Isso significa entender que há sim condições que precisam ser incentivadas e viabilizadas para que essas propostas sejam pensadas pelo corpo docente e executadas de verdade. 

A educação integral é complexa. Explorar o território com as crianças é complexo. E problemas complexos requerem soluções complexas“, enfatiza Marilene. 

Algumas decisões podem ser tomadas por professoras e professores, enquanto algumas medidas seriam mais efetivas e produtivas se realizadas em parceria com a gestão escolar e educacional. 

Um ambiente propício para que atividades pedagógicas diversas ocorram é aquele em que, antes de mais nada, cada professor(a) tem liberdade para pensar e montar os seus próprios projetos. 

Foto: Stephanie Kim Abe

Na Emei Gabriel Prestes, o trabalho de articulação em rede enraizado no território é forte – tanto que, em outubro de 2019, quando a gestão municipal pretendia colocar a venda o terreno da escola e outros espaços públicos por meio do Projeto de Lei (PL) 611/2018, houve mobilização de toda a comunidade escolar em defesa da escola. 

Na ocasião, houve protestos e manifestações memoráveis, como um abraço simbólico ao prédio, que incluíram a presença e participação das crianças. A escola foi retirada da lista de terrenos ofertados.

Esse trabalho de articulação demanda muita energia, mas ele vira um trabalho oculto, que não é contado como produtivo. Se os processos e as redes não estão devidamente institucionalizadas, o fazer acontecer acaba dependendo muito da boa vontade dos outros.” 

João Kleber Santana, diretor da Emei Gabriel Prestes

A direção escolar precisa não só ter respaldo para realizar as ações propostas pelo seu corpo docente, como também ver proatividade e apoio institucional da secretaria de educação. Não basta apenas publicizar os projetos inovadores, mas garantir condições de trabalho e reconhecimento pelos esforços desprendidos. 

Enquanto as(os) gestoras(es) escolares estão se articulando a nível local ou regional, a secretaria pode (e deve) trabalhar ativamente para garantir a construção dessa rede de trocas entre as unidades escolares. As articulações com outros setores (como Saúde, Assistência Social, Cultura) também deveriam ser oficializadas e ocorrer de forma institucional por meio das secretarias, o que daria mais perenidade às relações formadas e diminuiria a carga de trabalho das(os) gestoras(es) escolares. 

“Se não institucionalizarmos essas questões, corremos o risco de ter todo esse trabalho perdido”, alerta João. 

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