Reformas no ensino médio: experiências internacionais e aprendizados para o Brasil

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Reformas no ensino médio: experiências internacionais e aprendizados para o Brasil

O pesquisador Alexandre Marini destaca alguns pontos da implementação de reformas no ensino médio em Portugal, Chile e na província canadense Ontario que podem nos ajudar a pensar recomendações para o Novo Ensino Médio

Por Stephanie Kim Abe

Aulas vagas por falta de professor(a), ausência de um sistema adaptado para fazer matrículas e controlar as novas eletivas, comunicação truncada com a secretaria para entender as mudanças, falta de recursos para realizar mudanças estruturais na escola, professoras(es) lecionando matérias para as quais não tem formação ou experiência.

Esses são alguns dos muitos problemas que apareceram ao longo deste ano em que, pela primeira vez, todas as escolas de ensino médio do país implementaram o novo formato de ensino médio para os 1o anos dessa etapa de ensino. Elas apareceram na mídia como um todo, mas também aqui no Portal Cenpec, entre as reportagens que publicamos no especial Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?

Mas será que essas dificuldades acontecem só no Brasil? Como será que reformas no ensino médio ocorreram em outros países? Claro que é preciso muita ponderação ao comparar as experiências de diferentes países, porque a realidade de cada um é muito diferente. Mas olhar para fora pode ser uma maneira de entender e talvez buscar inspiração para pensar em como enfrentar os nossos problemas

O relatório de política educacional Implementação de reformas no ensino médio: experiências internacionais e aprendizados para o Brasil busca fazer isso, como explica Alexandre Marini, professor, pesquisador especialista em Gestão Educacional, e um dos autores do estudo:

Foto: acervo pessoal

Nós estudamos as reformas no ensino médio de Portugal, Chile e de Ontario, uma província do Canadá, para entender como estão acontecendo as mudanças nessa etapa de ensino nesses lugares. A ideia foi buscar uma visão ampliada, e não pormenorizada, e entender como que os problemas que temos enfrentado no Brasil também acontecem, de maneira geral, em outros países”.

Alexandre Marini, professor e especialista em Gestão Educacional


Leia a série de reportagens do Portal Cenpec sobre o Novo Ensino Médio:

O que é preciso entender?


Com o objetivo de colaborar para a melhor compreensão do cenário, das complexidades e controvérsias em torno da implantação do Novo Ensino Médio, o Portal Cenpec iniciou, em fevereiro, a série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?.

A cada mês, publicamos uma reportagem com diferentes atores da comunidade escolar e especialistas que trazem os seus olhares sobre aspectos variados desse processo. A ideia é dar voz tanto a quem está no chão da escola (estudante ou docente) como a quem está na gestão pública planejando essas mudanças ou pesquisadoras(es) que se debruçam sobre as consequências dessa política pública.


Fruto de uma parceria entre Dados para um Debate Democrático na Educação (D³e), Instituto Natura e Instituto Unibanco, o relatório foi elaborado pelos pesquisadores Felipe Michel Braga, Ana Amélia Laborne, Alexandre Marini, Liliane Souza e Silva e Vanda Duarte e traz recomendações e aprendizados que podem ser relevantes ao contexto brasileiro. 

O estudo reforça que não há soluções prontas, mas que há recomendações importantes para a gestão educacional nacional e de secretarias estaduais de educação, que cuidam dessa etapa de ensino. Entre elas, de forma resumida, estão: 

Fonte: Documento Evidências em Mãos, da pesquisa Implementação de reformas no ensino médio (Créditos: Dados para um Debate Democrático na Educação (D³e))

Para falar mais sobre a pesquisa e suas percepções ao participar dela, o Portal Cenpec entrevistou Alexandre Marini. 

Além de pesquisador e doutorando em Educação pela Universidade do Vale do Sapucaí, Alexandre é professor de Sociologia do Ensino Médio no estado de Minas Gerais e trabalha como analista educacional na Coordenação de Ações de Aprendizagem da Diretoria do Ensino Médio da Secretaria de Educação de Minas Gerais. 

Confira abaixo!

✏️ Portal Cenpec: Vocês escolheram estudar as mudanças no ensino médio dos territórios de Portugal, Chile e da província canadense de Ontario, que estão acontecendo agora. Justamente por isso, eles também sentiram o impacto da pandemia nessa implementação, como é apontado no estudo. Aqui no Brasil, essa foi uma das críticas mais recentes ao Novo Ensino Médio, que não teve um calendário de implementação mudado apesar das dificuldades das redes de ensino durante o ensino remoto. O que vocês puderam observar em relação a essa questão nos outros territórios? Isso impactou de que forma as mudanças que têm ocorrido por lá?

Alexandre Marini: Apesar de o nosso foco não ter sido efetivamente o impacto da pandemia nessas mudanças, percebemos que isso aconteceu nas entrevistas, principalmente com os professores. 

Há duas grandes diferenças sobre esse impacto aqui no Brasil com relação aos outros países que estudamos. A primeira é que a implementação das reformas no ensino médio nesses lugares já vem acontecendo há mais tempo, então eles já estão no meio do caminho. No Brasil, não. A pandemia aconteceu justamente no momento em que começamos a implementar o Novo Ensino Médio. As crianças e os adolescentes voltaram para as escolas e alguns meses depois já tiveram que se adaptar para esse novo formato que começou nos primeiros anos do ensino médio em 2022. 

Além disso, o fechamento das escolas nos outros países não teve a mesma duração que por aqui. Por isso, acho que, nesse sentido, a implementação da reforma no Brasil acabou sofrendo um impacto negativo maior. Esse processo ficou muito mais difícil porque acabou acontecendo tudo muito junto  – e a gente sabe que mudanças sempre trazem resistência, inclusive daqueles que efetivamente querem que algumas mudanças ocorram. 

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✏️ Portal Cenpec: O que vocês encontraram sobre o papel do gestor e dos professores na implementação de reformas no ensino médio ao estudar essas experiências internacionais? 

Alexandre Marini: Nós percebemos que existe uma maior autonomia do corpo docente, da escola e do corpo gestor da escola – e isso foi colocado como algo positivo pelas pessoas que entrevistamos. 

Isso porque, por mais que exista uma estrutura geral do Novo Ensino Médio, ele deve funcionar e se adequar à realidade local do contexto dos estudantes, dos professores, da escola, da região em que se encontra. Então o poder decidir determinadas questões, ter autonomia para fazer essas decisões é fundamental. 

Nesse sentido, o gestor tem a força de mediador e de fazer justamente essa conexão das determinações e da legislação nacional junto à equipe docente. Escutamos muito de professores o quão mais fácil é aplicar essas mudanças quando você tem um gestor que está ciente das comunicações e das resoluções e tenta, junto com a equipe docente, adequar essas determinações àquela realidade. Ele deve ser, efetivamente, um líder

Uma das características principais associada a essa liderança é a comunicação, porque o líder é quem vai trazer toda aquela determinação que às vezes é extremamente complexa para uma maneira prática que ajude professores e comunidade escolar a entender as mudanças. E isso também está ligado à autonomia do corpo docente, que só consegue atingi-la quando também entende o que está sendo proposto e tem o poder para fazer certas escolhas. 

Particularmente falando, eu também senti um cuidado muito forte com o dinheiro público nas falas dos gestores e professores entrevistados. Por exemplo, não é porque existe um ensino médio que me dá diversas possibilidades de oferta que a escola vai oferecer todas elas. Não faz sentido abrir uma aula se a demanda é de apenas dez adolescentes ou menos. O que vi foi que a escola faz aquilo que ela é capaz de fazer, com a expertise que ela tem – o que inclui a capacidade estrutural, a formação dos professores que lá trabalham, e os recursos disponíveis

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✏️ Portal Cenpec: E quando olhamos para o Brasil, isso acontece? 

Alexandre Marini: Essa é uma pergunta muito difícil, porque a escolha dos gestores e o perfil deles muda muito de estado para estado. Em Minas Gerais, os diretores são eleitos, mas sabemos que em outros estados não funciona assim. 

O que percebo, através de bibliografia, é que os diretores no Brasil tem um papel extremamente burocrático, o que dificulta o trabalho deles. É uma reclamação que eles próprios colocam, que acabam deixando pouco ou nenhum tempo para o trabalho pedagógico mesmo. 

Esse é um grande gargalo quando pensamos na implementação do Novo Ensino Médio, porque não estamos mudando a escola de lugar, pintando as suas paredes ou transformando somente as salas de aula de maneira estrutural. Estamos mudando a política pedagógica, o currículo, a forma de dar aula. Eles também acabam não tendo tempo para exercer aquele papel de mediador e comunicador que falei anteriormente. 

Então temos problemas grandes se não temos diretores com tempo para dar atenção à pedagogia da própria escola.

Leia sobre o histórico de valorização docente no Brasil

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✏️ Portal Cenpec: As questões administrativas e financeiras foram alguns dos pontos de atenção que vocês levantaram no relatório – e que também apareceram em alguns depoimentos de professoras(es), gestores e equipe técnica que conversamos ao longo do especial Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?. Entre eles, por exemplo, a adaptação do sistema para gerir matrículas, a articulação de transporte escolar e garantia de merenda com a ampliação do tempo na escola. Esses pontos apareceram como desafios para garantir condições de implementação desse novo formato. Essas dificuldades apareceram nos países que vocês estudaram? Como eles as contornaram?

Alexandre Marini: Uma das nossas grandes curiosidades era justamente saber como esses países têm lidado com as questões que estão fora da sala de aula, dessa relação professores e estudantes. 

Com a pesquisa, percebemos que esses não são problemas que Portugal, Chile e Ontario (província do Canadá) enfrentam, e muito menos na dimensão do que enfrentamos aqui no Brasil. 

Sabemos que hoje, se uma escola não tem merenda, ela não é uma escola funcional no Brasil – ela, inclusive, dispensa os estudantes para voltarem para casa quando isso acontece. Sabemos que o Brasil tem dimensões continentais e que mesmo uma escola considerada perto do estudante ainda está a quilômetros de distância dele, e por isso precisamos garantir esse transporte escolar. 

Essas dificuldades que temos têm muito a ver com a diferença cultural da noção do que é serviço público e do que não é. No Canadá, por exemplo, a comida oferecida é paga pelos próprios pais, não faz parte de um serviço público que precisa e deve ser oferecido pelas escolas. 

Nenhum desses países chegam a um nível de desigualdade tal qual o que é comum por aqui. Então esses problemas e suas soluções foram objetos da nossa curiosidade ao longo do estudo, mas que acabaram não aparecendo e que vamos ter que encontrar as nossas próprias maneiras de enfrentá-las.

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✏️ Portal Cenpec: Para muitos críticos, o Novo Ensino Médio vai gerar mais aprofundamento das desigualdades educacionais. Essa é uma consequência que aparece nos territórios estudados? 

Alexandre Marini: A desigualdade está relacionada, nos territórios que estudamos, com duas questões: soluções adotadas para garantir a atratividade e a continuidade dos estudos para alguns estudantes e as condições de trabalho docente.

Por serem países em que não há uma desigualdade salarial muito grande entre quem tem um ensino superior e quem cursa o ensino médio, muitos estudantes em Portugal e no Canadá acabam não dando continuidade aos estudos. Muitos só querem terminar logo o ensino médio ou nem fazem questão disso. Por isso, os dois países tentaram buscar estratégias para garantir a permanência dos estudantes, mas de formas distintas.

Em Portugal, foi criada uma opção de educação profissional e tecnológica, mais direcionada ao mercado de trabalho, e que daria então um motivo mais palpável para os estudantes permanecerem no ensino médio. Quando olhamos para esses dados, vimos que o abandono maior se dá justamente nessas escolas. Por quê? Porque a grande maioria dos estudantes que escolhem esse caminho já são estudantes precarizados, de famílias mais pobres, em lugares mais distantes, que já tem dificuldade de se manter no ensino médio por outros motivos também. Isso tem gerado um ciclo de manutenção intergeracional de pobreza. 

Já o Canadá procurou responder ao mesmo problema tornando o ensino médio mais atrativo. De que forma? Garantindo que esse mesmo ensino médio para todos estivesse adaptado às condições daquele contexto. Assim, a escola consegue se aproximar dos estudantes e criar um diálogo sobre os seus desejos, as suas aspirações e aquilo que ele pode vir a encontrar daqui dois anos, no mercado de trabalho. Com isso, eles tentam fazer os estudantes terem mais interesse e permanecerem na escola. 

A outra questão, relacionada às condições laborais, é muito evidente no Chile, onde os professores são muito precarizados. Eles não têm garantia de trabalho (contratos precários), não sabem muito bem o que vai acontecer com eles no ano seguinte e muitas vezes trabalham em várias escolas – como acontece com muitos professores no Brasil, infelizmente. Essas condições laborais ruins afetam o trabalho que realizam com os estudantes e, consequentemente, a atratividade da escola. 

Acesse aqui o Painel de Desigualdades educacionais no Brasil

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✏️ Portal Cenpec: Uma das recomendações de vocês é exatamente a questão de garantir a formação continuada de gestoras(es) e docentes. Qual é a importância dessa formação para a efetivação de mudanças no ensino médio?

Alexandre Marini: A formação continuada é central porque tem a ver justamente com a atratividade da escola. Uma escola só consegue oferecer aquilo que o estudante quer se o seu professor tiver formação de qualidade para isso. 

Pensemos em um catálogo de eletivas que a secretaria disponibiliza para todas as escolas, com mais de 100 eletivas, por exemplo. A escola vai conseguir oferecer as 100? Quantas ela vai conseguir oferecer? Somente as eletivas e os aprofundamentos daquilo que o seu corpo docente já conhece e tem domínio. Se não continuarmos investindo em formação e capacitação, esses professores vão continuar dando aula da mesma forma e falando sobre as mesmas coisas que eles estudaram na faculdade. Esquece novas metodologias, sala de aula invertida, projetos etc. 

Não adianta termos uma reforma que traz uma formação geral básica e prevê itinerários absolutamente novos se não fornecermos formação para que esses professores possam acompanhar essas mudanças e trabalhar esses conteúdos. Se eles não têm formação continuada, não temos como manter uma escola atrativa para os estudantes e, sem isso, não temos mudanças efetivas.

Entenda melhor de que formação continuada precisamos

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✏️ Portal Cenpec: Sendo você parte de uma equipe técnica de secretaria que está enfrentando de frente as dificuldades e os desafios de implementar o Novo Ensino Médio, de que maneira esse estudo te ajudou ou trouxe reflexões que podem apoiar esse trabalho que realiza hoje? 

Alexandre Marini: É ao mesmo tempo acalentador e preocupante estudar os três territórios porque percebemos que eles também tiveram dificuldades – e ainda estão tendo – para implementar um novo ensino médio. Ou seja, não vai ser diferente por aqui. 

Acontece que esses países (Chile, Portugal e Canadá) apresentam índices educacionais mais avançados que o nosso, assim como têm condições socioeconomicamente melhores também. Enquanto isso, o Brasil é um país extremamente desigual, com políticas públicas que são interrompidas a toda hora e que demandam investimentos que não são garantidos pelo governo. Então os desafios são muito maiores. 

O importante de olhar essas experiências internacionais – e mesmo outras que estão em curso no nosso próprio território (por exemplo, nos diferentes estados) – é entender que essas mudanças não vêm prontas. Elas não são um projeto, são um processo. Nós vamos fazer coisas erradas, vamos ter que atender novas demandas, outros obstáculos vão aparecer a qualquer momento. 

O que eu acredito que precisamos sempre garantir é a autonomia da escola em poder fazer essa implementação da melhor maneira para os professores e para os estudantes. Só assim vamos poder oferecer um ensino médio que seja efetivamente mais interessante para os estudantes. 

Para que isso ocorra, precisamos saber exatamente o que eles querem. Mas não basta só isso. É preciso uma equipe de professores e de gestores capacitada a, primeiro, identificar o que os estudantes querem; segundo, respeitar efetivamente essas demandas; e, terceiro, estar preparada para fornecer aquilo que pedem.


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