Novo Ensino Médio: gestão escolar em defesa do seu projeto político pedagógico

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Novo Ensino Médio: gestão escolar em defesa do seu projeto político pedagógico

Vice-diretor e diretor de escolas no Distrito Federal e no Ceará contam os percalços para implantar o novo modelo, garantindo os interesses de professoras(es) e estudantes

Por Stephanie Kim Abe

Cada vez mais se estuda e se consolida a importância da gestão escolar para a melhoria da qualidade da educação. No documento Liderança escolar para a melhoria da educação – Contribuições para o debate público no Brasil, publicado em maio de 2021, um dos pontos de destaque é a urgência de enxergar as(os) gestoras(es) de escolas como agentes de mudança que são centrais para o entendimento e a implementação de políticas públicas nacionais ou locais

Conhecer e analisar como a direção escolar de instituições públicas têm olhado e realizado as mudanças necessárias para se adequar ao Novo Ensino Médio (Lei 13.415/17) – que começou a ser implantado este ano no primeiro ano do ensino médio das escolas brasileiras – pode ser um bom exemplo do ponto trazido pelo documento Liderança escolar.

Como essa política tem ressoado entre as(os) gestoras(es) escolares? Que apoio têm recebido das secretarias para a sua implantação? Como acolher as dúvidas de professoras(es) e estudantes? Como o Novo Ensino Médio se encaixa — ou destoa — do projeto político pedagógico da instituição?

Para trazer uma perspectiva sobre os desafios de quem se encontra nessa posição diante desse novo formato do ensino médio, conversamos com um vice-diretor e um diretor de duas escolas: uma no Distrito Federal e outra no Ceará. Os depoimentos fazem parte da série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender? do Portal Cenpec.

Confira!

O que é preciso entender?

Com o objetivo de colaborar para a melhor compreensão do cenário, das complexidades e controvérsias em torno da implantação do Novo Ensino Médio, o Portal Cenpec iniciou, em fevereiro, a série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?.

A cada mês, publicamos uma reportagem com diferentes atores da comunidade escolar e especialistas que trazem os seus olhares sobre aspectos variados desse processo. A ideia é dar voz tanto a quem está no chão da escola (estudante ou docente) como a quem está na gestão pública planejando essas mudanças ou pesquisadoras(es) que se debruçam sobre as consequências dessa política pública.

✏️ Confira a primeira matéria da série

✏️ Entenda com o Cenpec tem contribuído para o debate sobre o Novo Ensino Médio


✏️ Conheça a experiência de três estudantes de diferentes estados com esse novo formato


✏️ Saiba como docentes têm se adaptado às mudanças


✏️ Veja como tem sido o trabalho das equipes técnicas das secretarias estaduais


Foto: acervo pessoal

Ricardo Medeiros, vice-diretor do Centro Educacional 06 – Ceilândia, no Distrito Federal 

Nós começamos a implementar o Novo Ensino Médio este ano porque era obrigatório para todas as instituições. Nós adiamos até não poder mais, porque todas e todos aqui da escola (corpo docente e direção escolar) têm uma certa resistência ao programa. 

Para implementar uma política dessa, é preciso dar subsídios — o que não houve. Então a reclamação maior é que não houve formação suficiente para as(os) professoras(es) se sentirem preparadas(os) a desempenhar a sua função nesse novo formato, e não há estrutura necessária para dar conta de todas as mudanças. 

Por exemplo, não temos um sistema de escrituração (lançamento de notas, frequência, geração de documentos) atualizado funcionando. Como o formato foi reestruturado, com uma parte do currículo com formação geral básica e a outra de itinerários formativos, essa escrituração é totalmente diferente da que já existia. Não ter essa ferramenta em mãos dificulta muito o nosso trabalho.

Se vira nos 30

Cada escola tem dado o seu jeito, montando planilhas, fazendo o trabalho manualmente e adequando os seus espaços para que o sistema aconteça. Todo mundo teve que se virar nos 30: usar uma sala que estava ociosa, ocupar a sala de coordenação etc. Nas formações da secretaria, disseram que podia até trabalhar embaixo da árvore

Também foi preciso explicar essa dinâmica para famílias e estudantes, já que em cada escola o Novo Ensino Médio tem acontecido de um jeito. A Secretaria ofereceu um cardápio de eletivas e, em conversa com a direção pedagógica, o nosso corpo docente definiu quais tínhamos condições de oferecer. Hoje, oferecemos seis eletivas, duas para cada área:

📍 em Ciências Humanas: História da África e Atualidades para Vestibular e Concurso;
📍 em Ciências Naturais: Química Ambiental e Biologia;
📍 em Linguagens: Arte para o Enem e Oficina de Comunicação.

Cada estudante escolhe três por bimestre, uma em cada área do conhecimento. Além delas, são obrigatórias para todas(os) as(os) alunas(os) do 1o ano: Projeto de Vida, Projeto Interventivo de Matemática (PIM) e Projeto Interventivo de Português (PIP).

Manejar esses horários, as enturmações e os espaços disponíveis para elas foi bagunçado, à princípio. Tivemos um estudante que não conseguiu encaixar a eletiva que ele queria no horário que tinha disponível, então foi preciso mudar o seu horário. Agora no segundo semestre conseguimos minimizar alguns problemas — até porque já estávamos todos inteirados com o sistema —, então foi menos traumático

Ou seja, como a oferta de eletivas parte da escola, aquela história de que a(o) aluna(o) vai poder escolher é muito fantasiosa. Ela(e) tem uma limitação, já que só pode escolher a partir do que a escola oferece. E pode ser que não haja nada de interessante para ela(e). Assim como eu posso, de repente, receber uma(m) estudante que veio de uma escola onde estava sendo ofertado Robótica, sendo que aqui nós não temos essa eletiva. Como ajustamos o currículo dela(e)? 

➕ Desvantagens 

Está sendo, portanto, um processo muito delicado e difícil. Que o ensino médio precisava passar por uma reforma ou uma reestruturação é um fato. Mas essa, do jeito que está acontecendo agora e do jeito que ela veio, precisava ter ocorrido com mais estrutura, mais formação de professoras(es) e da direção, e com apoio mais palpável. Se não, na prática, ela se torna inviável. 

Eu tenho minhas ressalvas quanto a esse modelo. Não achei legal que foi retirada carga horária de formação geral básica para incluir os itinerários. Sabemos que isso não aconteceu no sistema particular de ensino, porque essas escolas têm estrutura para colocar os itinerários no contraturno. Já no caso das escolas públicas, como a minha, como não há espaço físico para isso, tivemos que reduzir a carga de formação básica. Então fico temeroso que nossas(os) estudantes fiquem em desvantagem na hora de concorrer a uma vaga na universidade

Nós temos 16 turmas em cada turno, ou seja, 32 turmas, cerca de 1,5 mil estudantes. O nosso projeto político pedagógico tem como parte central promover o acesso delas(es) à universidade pública. Temos tido êxito até agora, mas não sei como essas mudanças vão impactar esses resultados. 

Eu tenho esperança de que o Novo Ensino Médio seja melhorado, que sejam dados mais subsídios para que esse sistema funcione e para que possamos recuperar a unidade na rede, que se perdeu. 


Foto: acervo pessoal

Otacílio de Sá Pereira Bessa, diretor da Escola de Ensino Médio (EEM) Governador Adauto Bezerra – Fortaleza (CE)

Nós temos uma equipe de professoras(es) muito debatedora e estudiosa, que já se reúne há muito tempo para discutir e encontrar os melhores caminhos para o ensino médio na escola pública. Não à toa, nós fizemos grupos de resistência a essa reforma, porque entendemos que ela não foi uma reforma democrática, e sim impositiva. Pior que isso, porque ela poderia ter sido imposta, porém, bem direcionada. Por isso, não aceitamos fazer parte do grupo de escolas-piloto, porque isso significaria aceitar essa mudança.

No nosso entendimento, o Novo Ensino Médio faz parte de um projeto neoliberal de precarização da educação pública, porque, da forma como foi criado, é de difícil implementação com qualidade na escola pública. Nós entendemos que uma política de ensino médio deveria ter uma preocupação muito fortemente concentrada tanto no tamanho da rede pública quanto nas suas especificidades.

Por exemplo, a escola privada consegue ampliar a carga horária e usar o contraturno para oferecer itinerários formativos, sem precisar diminuir a carga horária da formação geral básica. Pode até ser que ela tenha que cobrar mais por isso, mas ela tem condições de fazê-lo. 

Na escola pública, não. A expansão para o contraturno requer pensar em diferentes logísticas: o que acontece com a(o) estudante que trabalha? Há meios de transporte escolar para atender esse horário? Como vou oferecer mais alimentação para ela(e), se o repasse da secretaria não aumenta? Como faço para contratar mais professoras(es), se não tenho autonomia para isso?

Esses obstáculos dificultam essas mudanças e acaba obrigando a escola pública a diminuir a carga horária da formação geral básica para acomodar os itinerários formativos. Isso atinge em cheio, portanto, a formação das(es) estudantes da escola pública. 

➕ Alternativas

Assim, nós buscamos criar as nossas próprias estruturas para organizar a reforma dentro da nossa escola e tentar minimizar os impactos sobre as(os) estudantes, como temos visto acontecer em outras escolas do estado. Nós já trabalhávamos com a carga horária ampliada de seis horas diárias, então a adaptação foi no sentido de não deixar que a formação geral básica fosse prejudicada.

A nossa escola tem bastante espaço, então adaptamos a quadra esportiva, a sala de estudos e os laboratórios para acomodar as eletivas. As aulas das eletivas funcionam de forma híbrida: uma semana na escola, outra de forma remota. Contamos com os chips de dados que foram dados às(aos) estudantes durante a pandemia para garantir a conectividade para as aulas — política que se manteve este ano — e o uso do laboratório de informática. 

Nós criamos dois itinerários formativos com duas eletivas em cada. O primeiro contempla as áreas de Linguagens e Códigos e Ciências Humanas; o segundo, Ciências da Natureza e Matemática. Não temos itinerário técnico. 

As eletivas foram pensadas pelo nosso próprio corpo docente e costumam ser interdisciplinares. A(O) estudante escolhe qual itinerário quer cursar e qual eletiva cursar naquele semestre. No seguinte, ela(e) terá a outra eletiva do mesmo itinerário. Sabemos que a opção que ela(e) tem é muito pequena, mas a escola não conseguiu criar soluções mágicas para esse problema. 

Demos a opção às(aos) estudantes trocarem a sua escolha, já que estamos começando e elas(es) poderiam não gostar da eletiva. Isso aconteceu bastante no primeiro semestre. Por exemplo, a eletiva CSI – AB – Ciência sob investigação foi uma das mais procuradas e que talvez tenha conseguido alcançar melhor o espírito de uma eletiva que chegasse mais próximo às(aos) nossas(os) estudantes. 

Essa aula acontece no laboratório e é realizada em parceria com a Secretaria de Segurança Pública. Inspirada na séria norte-americana de mesmo nome, a ideia é que as(os) estudantes, em grupos, partam de um caso a ser resolvido, com a equipe forense, para tentar encontrar soluções para esse problema. Agora no segundo semestre, reorganizamos as eletivas para conseguir atender a mais essa questão da interatividade da(o) estudante, conforme essa experiência tem nos dado indícios de efetividade.

Planejamento e esforço da equipe docente

As eletivas, como são interdisciplinares, são planejadas semanalmente com a equipe das áreas de conhecimento e a gestão escolar, já que todas(os) têm responsabilidade sobre elas. Decidimos quais professoras(es) vão ministrar as aulas daquela semana, como será a condução, a sequência, até chegar na finalização. 

Outra questão que tem demandado mais das(os) nossas(os) professoras(es) é a produção de material didático. Nós verificamos que a qualidade dos livros do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para o ensino médio é inferior aos que são feitos pelas editoras para serem adotados nas escolas particulares. Por isso, decidimos adotar em partes os novos livros, utilizando apenas alguns trechos, e continuamos trabalhando com os livros do PNLD anterior. Para aqueles tópicos em que eles estão muito defasados — o que acontece bastante, já que são de 2018 —, o nosso corpo docente produz o próprio material da escola, como uma espécie de trabalho dirigido. 

Temos que arcar com esse custo de produção de material e, ainda que essa produção extra já existisse antes, ela se potencializou com a reforma. Mas têm sido a forma que encontramos para continuar o nosso trabalho pedagógico de forma organizada e qualitativa.

O problema é universalizar?

Muitas das ações que tomamos foram possíveis porque conseguimos criar um acordo com o nosso corpo docente para garantir essa distribuição de matérias e eletivas de forma a continuar fazendo o trabalho que temos feito na última década — que é de garantir uma visão crítica às(aos) nossas(os) estudantes para que elas(es) possam furar essa bolha do seu status social e entender que podem sim alcançar uma universidade. 

Mas sabemos que essas logísticas não são passíveis de universalização. Na própria escola precisamos nos adaptar à situação de cada uma(m) das(os) estudantes para garantir que elas(es) tenham o mesmo acesso. 

Por isso, nós queremos uma reforma sim, mas uma que nasça a partir das pessoas constituintes e das pessoas constitutivas da educação pública. Por exemplo, nós já discutíamos a flexibilização do currículo, mas da forma como foi feito, ficou engessado nos itinerários.

O maior desafio é mostrar que nós, professoras(es), apesar de estarmos sob uma legislação que precariza a educação pública, conseguimos encontrar alternativas para mostrar que a educação pública pode dar uma educação de qualidade para as(os) filhas(os) da classe trabalhadora. 


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