Série Novo Ensino Médio: o trabalho da equipe técnica das secretarias 

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Série Novo Ensino Médio: o trabalho da equipe técnica das secretarias 

Entenda a visão e os desafios de quem está à frente do processo de implementação dessa nova política educacional nas secretarias estaduais de educação de Santa Catarina, do Piauí e do Acre

Por Stephanie Kim Abe

Implantar uma nova política nunca é fácil. Para quem está na linha de frente desse processo, pode ser ainda mais desafiador. Há muitas variáveis a se considerar, pessoas a escutar, processos a serem implementados, diretrizes a seguir. 

Com o Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/17) não seria diferente. Apesar de ter chegado às turmas de primeira série do Ensino Médio de todas as escolas brasileiras este ano, essa política já está sendo trabalhada pelas equipes das secretarias estaduais de educação há pelo menos dois anos

Nesse processo, as pessoas no comando tiveram que fazer um planejamento dessa implementação, pensar planos de comunicação, discutir e ouvir educadoras(es), estudantes e comunidade escolar, organizar diretrizes e currículos, realizar mudanças no fazer pedagógico, estruturar formações continuadas, e lidar com problemas que parecem ser comuns aos diferentes estados — como o tranporte escolar e a contratação de novas(os) profissionais

Dando sequência à série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?, trazemos abaixo o depoimento de três responsáveis pelo processo de implementação do Novo Ensino Médio em Santa Catarina, no Piauí e no Acre. Elas dividem conosco as etapas, as decisões e os desafios de fazer essa política acontecer em seus respectivos estados.

Confira!

O que é preciso entender?

Com o objetivo de colaborar para a melhor compreensão do cenário, das complexidades e controvérsias em torno da implantação do Novo Ensino Médio, o Portal Cenpec iniciou, em fevereiro, a série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?.

A cada mês, publicamos uma reportagem com diferentes atores da comunidade escolar e especialistas que trazem os seus olhares sobre aspectos variados desse processo. A ideia é dar voz tanto a quem está no chão da escola (estudante ou docente) como a quem está na gestão pública planejando essas mudanças ou pesquisadoras(es) que se debruçam sobre as consequências dessa política pública.

✏️ Confira a primeira matéria da série aqui

✏️ Entenda com o Cenpec tem contribuído para o debate sobre o Novo Ensino Médio


✏️ Conheça a experiência de três estudantes de diferentes estados com esse novo formato


✏️ Saiba como docentes têm se adaptado às mudanças


Foto: acervo pessoal

Sirley Damian de Medeiros, coordenadora do Ensino Médio da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina

O Novo Ensino Médio começou a ser implementado de fato em 2020, com as turmas da 1ª série do ensino médio de 120 escolas-piloto da rede estadual de ensino de Santa Catarina. O processo de planejamento, formação continuada e mapeamento das unidades de ensino começou dois anos antes, mas, ainda assim, foi tudo muito complexo, porque em 2020 tivemos a pandemia — que requereu uma adequação de aulas 100% presenciais para 100% remotas. 

Nós passamos o primeiro semestre trabalhando na questão das tecnologias e, em paralelo, elaborando o currículo base do Ensino Médio do território catarinense. Tivemos que lidar com a questão do abandono e da evasão, que aumentou porque muitas(os) estudantes deixaram os estudos para trabalhar — e por isso a Secretaria realizou ações de busca ativa. Além disso, a cultura do trabalho em Santa Catarina dificulta a oferta de matrizes curriculares em tempo integral. 

Levando essa questão em consideração e as nossas experiências anteriores com programas como Ensino Médio Inovador e Ensino Médio em Tempo Integral, nós criamos diferentes cargas horárias (matrizes): uma de 31 aulas semanais (que pode ser realizada com um dia de aula em tempo integral), de 35 (nesse caso, são dois dias de tempo integral) ou 44 (com quatro dias em tempo integral). São essas duas últimas que mais geram abandono, fato que está sendo resolvido por meio de programas de apoio à(ao) estudante, como o Bolsa Estudante, e da realização do processo de escuta interna e externa para a implementação do Novo Ensino Médio. Ressalto que cerca de 70% da rede adota a matriz de 31 aulas semanais. 

No primeiro semestre de 2021, nós optamos por manter a parte flexível do currículo em formato remoto nessas escolas, enquanto a parte de formação geral básica foi realizada presencialmente em sala de aula. 

Aqui no estado, a formação geral básica é composta pelas áreas do conhecimento da BNCC. O que Santa Catarina tem de singular, nesse aspecto, é que mantivemos os 12 componentes curriculares tradicionais. Não eliminamos nenhum. A parte flexível do currículo engloba o projeto de vida, um componente curricular eletivo por semestre (escolhido entre 25 opções do portfólio da Secretaria) e uma segunda língua estrangeira — espanhol, italiano, francês ou alemão, levando em consideração o mosaico étnico bem diversificado do estado. A partir da 2ª série, também inclui uma trilha de aprofundamento (também escolhida entre 25 opções oferecidas pela Secretaria)

Assim, este ano, nós temos turmas de 2ª e 3ª séries neste novo formato, além de todas as turmas de 1ª série das outras cerca de 600 escolas de ensino médio da rede estadual. 

Desafios 

Uma política nova como essa requer uma mudança de paradigma, principalmente em relação ao currículo — e ela vem trazendo outras alterações, como na proposta, no planejamento, na metodologia, na avaliação. A BNCC pede uma mudança de eixo com relação ao conhecimento, pois não se parte do conteúdo para pensar a aula, mas sim do desenvolvimento de habilidades e competências. 

Uma grande dificuldade que vemos nas(os) professoras(es) é justamente essa: como planejar a aula a partir de uma habilidade — e não mais um conhecimento específico de um componente —, que tampouco é seriada? Também precisamos combater uma cultura de planejamento individual, e não coletivo, que não faz sentido para um currículo que agora é integrado por áreas e necessita que as(os) professoras(es) dialoguem entre si.

Outros gargalos nessa implementação têm sido a dificuldade de encontrar professoras(es) para ofertar a segunda língua estrangeira em algumas regiões, a questão do transporte (que precisa ser pactuado com os municípios) e a alimentação. No caso das contratações, estamos em diálogo para que as(os) professoras(es) efetivas(os) assumam componentes curriculares da formação geral básica e da parte flexível do currículo. 

Focos

O Novo Ensino Médio vem para atender aos interesses dos nossos sujeitos de aprendizagem, que são as(os) estudantes. As mudanças propostas exigem uma(m) nova(o) profissional, e por isso temos trabalhado na perspectiva de uma formação capilarizada de multiplicadoras(es).

Até agora, centramos forças nas coordenadorias regionais de educação e nas(os) gestoras(es) escolares. Neste segundo semestre, vamos focar nas(os) professoras(es) de forma paulatina, com muito planejamento, promovendo curso de formação continuada nas áreas de conhecimento do currículo.

Fizemos, ainda em 2021, um diagnóstico da experiência nas escolas-piloto, em que elas realizaram uma escuta interna e externa para entender como as mudanças estavam sendo recebidas. As escolas realizaram mapeamentos para entender o seu espaço físico e a sua capacidade de recursos humanos para ofertar as diferentes eletivas e trilhas, e pretendemos realizar parcerias para ofertar, por exemplo, o ensino técnico profissionalizante. 

Estamos construindo com o caminhar da política. Conforme identificamos as dificuldades, vamos trabalhando para dirimi-las. Tem muita coisa ainda que não conhecemos, mas que vamos nos deparar conforme esse processo de implementação for acontecendo

Fui professora de Ensino Médio da rede por muitos anos e estou há mais de dez anos na Secretaria. Já acompanhei diferentes políticas, como o Ensino Médio Inovador e o Tempo Integral. O que eu vejo agora, com o Novo Ensino Médio, é uma política pública para todas(os). Isso é muito bom, porque não é só para determinadas escolas — todas(os) as(os) estudantes vão ter mais oportunidades de conhecimento e tempo na escola. 


Foto: acervo pessoal

Maria José Mendes Neta, diretora da Unidade de Ensino e Aprendizagem da Secretaria de Estado da Educação do Piauí

Em 2020 e 2021, fomos afastadas(os) do ambiente da escola. Quando retornamos, no segundo semestre de 2021, já estávamos com um novo currículo para o Ensino Médio. Para muitas(os), isso foi uma oportunidade: foi como voltar para uma escola nova. Outras(os) não, ainda olham para o modelo que tínhamos em 2019.

O Novo Ensino Médio divide opiniões. Para algumas pessoas, é de fato o Ensino Médio tão sonhado, no sentido de dar à(ao) aluna(o) a oportunidade de escolher o seu aprofundamento, de ser mais respeitada(o). 

O nosso currículo tem uma parte de formação geral básica e outra de itinerários formativos, na qual as(os) estudantes podem escolher eletivas (a partir de um cardápio com nove opções) e trilhas de aprendizagem. Elas(es) também têm projeto de vida — que já está presente em todas as séries do Ensino Médio. As trilhas devem aparecer a partir de 2023 para as turmas de 2o e 3o ano e servem, assim como as eletivas, para dar um aprofundamento ao conhecimento de uma área.

Por ser algo novo, o Novo Ensino Médio precisa do entendimento de todas(os) — e da abertura de quem está no chão da escola. Por isso, um dos pontos-chave para nós é trabalhar a formação de professoras(es), para que estejam abertas(os) para a aprendizagem, trazendo as(os) alunas(os) para o centro, como tem sido pregado nas literaturas. Esse movimento é importante principalmente para as pessoas que estão num processo bem próximo da aposentadoria, que acreditam que não precisam mais aprender.

Desigualdade e escuta

Mas há pessoas que acreditam que essa nova política vem apenas ocasionar mais desigualdade educacional. Por exemplo, muita(os) gestoras(es) apontam que a escola não tem espaço. No Piauí, nós temos 224 municípios, e em cerca de metade deles só existe uma escola de ensino médio. Essa instituição provavelmente vai conseguir oferecer 5 ou 10 eletivas. 

Qual é a nossa sacada? Utilizar outros espaços de aprendizagem através de parcerias (como com a Rede S, Sebrae etc). Já está em nossa análise estratégica essa questão de fazer a escola entender que existem outras possibilidades e espaços a serem utilizados para ofertar eletivas, como bibliotecas e teatros municipais. É preciso quebrar essa visão que só olha para o espaço da escola e buscar extrapolar os seus muros

Temos feito mapeamentos e diagnósticos com as escolas e seguido uma implementação gradual do Novo Ensino Médio, sem um recorte em parte da rede. Hoje, todas as 641 unidades de ensino que têm a primeira série do Ensino Médio nas suas respectivas modalidades (como Educação de Jovens e Adultos) já estão nesse novo formato.

Nesse processo, buscamos também ouvir sempre as(os) estudantes para que sejam, de fato, protagonistas desse processo. Mas, por causa da pandemia, nosso público não foi totalmente atingido. Fizemos nossas pesquisas via formulário on-line e foi feita uma mobilização para que esses links chegassem a todas as turmas, além do movimento Diálogos da Juventude (final de 2021). De uma média de 170 mil estudantes dessa etapa de ensino, só alcançamos cerca de 6 mil

Este ano, devemos realizar mais ações voltadas para essa escuta, principalmente das eletivas. Queremos que as escolas ouçam mais as(os) estudantes para que não escolham quais eletivas vão ofertar sem de fato entender o que quer o seu alunado.

Crítica e maturidade

Essa imersão no Novo Ensino Médio e de abertura ao novo também requer acolher críticas — principalmente por parte da nossa equipe da Secretaria. Nesse sentido, eu vejo que ganhamos maturidade. Os feedbacks e as escutas são formativos para os dois lados, e eu realmente consigo enxergar um grande crescimento da Seduc nesse sentido, de saber replanejar e reconstruir a partir dessas críticas

Eu considero que temos andado de forma fluida, aproveitando essa oportunidade de reinvenção e crescimento. Mas sinto falta de uma coordenação de Ensino Médio em nível nacional com mais orientações para colaboração na implementação dessa política.

Para mim — que vim da sala de aula, passei pela coordenação pedagógica e estou hoje como gestora —, não há tantas mudanças. O que está sendo colocado nesse novo currículo eu já fazia lá atrás. Também não consigo mais segregar, ver o Novo Ensino Médio e o antigo. Porque embora os 2os e 3os anos estejam olhando para as diretrizes antigas ainda, a maioria das(os) professoras(es) da rede que lecionam para essas turmas também dão aulas para os primeiros anos, ou seja, já estão experimentando o novo. Logo, é o ensino médio da nossa rede. 


Foto: acervo pessoal

Danielly Franco de Matos, chefe de Divisão de Ensino Médio da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esportes do Acre 

No Acre, nós iniciamos a implementação do Novo Ensino Médio em 2019 com nove escolas. Em 2020, adicionamos mais quatro escolas a esse grupo, mas que passaram a trabalhar em tempo integral. Em 2021, o número aumentou para 27, considerando também escolas rurais. E, em 2022, chegamos a todas as turmas de primeiro ano do ensino médio das 68 escolas estaduais

O currículo possui uma parte de formação geral básica e outra que chamamos de itinerário formativo, que tem língua espanhola (apenas no 2o ano), projeto de vida e eletivas. Um quarto componente desse itinerário é a rota de aprofundamento, que deve seguir os cinco blocos anunciados pelo INEP que comporão o Enem. 

Essa parte estará disponível a partir da 2ª série do ensino médio, já que na primeira o aluno deve fazer uma formação geral básica muito forte. Estamos nos adaptando para que, em 2023, esses blocos estejam disponíveis nas escolas para as(os) estudantes. 

Temos tomado alguns cuidados para garantir a questão da equidade. Por exemplo, o que acontece com a(o) aluna(o) que escolhe uma rota de aprofundamento que não é ofertada em sua escola? Nós vamos disponibilizar um cardápio de escolas próximas a ela(e) nas quais ela(e) possa encontrar o bloco que deseja se aprofundar. Estamos fazendo escutas nesse sentido, para conseguir atender os seus desejos e estar o mais próximo possível dessas(es) estudantes.

Também ampliamos a carga horária das(os) professoras(es), para que possam ter 20 horas complementares e se dedicar a uma única escola, não tendo que estar em dois lugares diferentes no mesmo dia. E o cuidado com a matriz, para que todas(os) tenham a mesma base de ensino durante o período de formação geral básica.

➕ Dificuldades

A resistência das(os) professoras(es) a essa apropriação do novo currículo – que requer um trabalho diferente, não conteudista, mas baseado em habilidades – é uma batalha que temos travado desde 2019. Ela vem muito apoiada na nossa universidade federal, cujo corpo docente é muito resistente ao Novo Ensino Médio. Por isso, temos feito diversas formações continuadas, em parceria com o Consed e o MEC. Elas têm possibilitado muito material de apropriação de qualidade e compreensão por parte das(os) participantes da reforma

Também há falta de professoras(es) para o itinerário formativo, como projeto de vida e eletivas. Como não há formação inicial para esses componentes curriculares, muitas(os) docentes não querem assumi-los. Nós temos uma carência muito grande de professoras(es), que implica em uma rotatividade muito grande também. Mas são poucos os municípios em que não conseguimos fechar o quadro docente. Em Rio Branco, conseguimos administrar melhor essa questão que em outras cidades do interior.

Há ainda uma dificuldade administrativa de fazer outros setores e áreas da Secretaria entenderem essa nova política. Ainda sou abordada por colegas que perguntam sobre o que é projeto de vida, etc. São áreas que devem lidar com essas questões, como lotação de professores e o Censo. A reforma não se resume apenas à parte pedagógica, mas ela tem toda uma logística, que envolve de infraestrutura das escolas ao transporte. Por isso eu tenho que fazer essa articulação com as outras áreas, sentar e explicar sempre que necessário.

Expectativas e medos

Apesar das dificuldades, muitas coisas têm dado certo, como a implementação do projeto de vida, que tem feito muita diferença nas escolas. Temos visto a movimentação e a participação das(os) estudantes, o envolvimento da comunidade, e a disposição das(os) professoras(es) em pensar e trazer propostas de atividades diferenciadas. As eletivas também possibilitaram que as(os) docentes mudassem um pouco a sua metodologia. Temos visto práticas muito exitosas.

Eu sou uma apaixonada pelo que faço, já trabalhava com formações antes e tenho o “ser professora” na veia. Desde que eu conheci a ideia das competências gerais no currículo, em 2014, eu fui me envolvendo com essas mudanças, que são o coração dessa reforma. Tenho muita fé que ela dará certo. 

O que me angustia é que estamos em um ano muito singular. Nós passamos por uma implementação que já seria complicada, mas em tempos de pandemia ocorreu no escuro. Às vezes, eu tenho a impressão de que a gente trabalhou demais e não viu resultados – porque, de fato, a gente trabalhou bastante, mas os resultados virão devagar. 

O que me deixa mais preocupada, porém, é em termos da política pública e como muita gente acha que essa é uma ação que vai passar. Que uma vez que chegue um novo governador ou presidente, essa política vai cair. Mas precisamos lembrar que ela não é uma política de governo, mas de Estado. Precisamos de mais amparo legal que valide todo o trabalho que temos feito e mais política de aprofundamento desse Novo Ensino Médio


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