Por que a melhor arma da escola contra a violência é a cultura de paz

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Por que a melhor arma da escola contra a violência é a cultura de paz

Encontro com gestoras(es) educacionais reflete sobre violência nas escolas e desigualdades educacionais, e discute estratégias concretas para enfrentá-las; saiba mais

Por Stephanie Kim Abe

No início de julho (11/07), o Senado aprovou o PL 1.372/2022, que autoriza o Poder Executivo a implantar o Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (SNAVE). A ideia é criar um canal gratuito e direto para receber denúncias de violência escolar ou ameaças, e um serviço de monitoramento, em articulação com os estados, municípios e o Distrito Federal, para compartilhamento de informações e ações preventivas. 

O PL ainda prevê, entre outras medidas, a produção de estudos, levantamentos e mapeamento de ocorrências de violência escolar e o apoio psicossocial a pessoas da comunidade escolar vítimas de violência. O texto segue para sanção presidencial. 

O projeto soma-se a outras medidas que têm sido tomadas no âmbito do Poder Executivo desde abril, quando casos de ataques armados às escolas em diferentes localidades colocaram em alerta comunidades escolares de todo o território nacional. 

Em meio às discussões urgentes de qual seria melhor forma de lidar com essas ameaças violentas, vimos muito foco em medidas de segurança, como aumento do efetivo policial nas instituições de ensino, instalação de câmeras de vigilância, controle de entrada e botões de pânico, e criação de protocolos de segurança. 

Mas será que somente essas medidas bastam? Focar na contratação e instalação de todo esse aparato é a melhor estratégia para garantir um ambiente escolar seguro? 

Foi com o objetivo de permitir trocar experiências e compartilhar dúvidas acerca dessas questões que estão na pauta de muitas(os) gestoras(es) educacionais e escolares que ocorreu a 4a edição do Encontro entre Secretários(as) do programa Parceria pela Valorização da Educação (PVE Cenpec/2023). 

O encontro virtual ocorreu na última semana de junho, contou com a participação de nove secretarias municipais de educação, e teve como tema Violências na Escola e as desigualdades educacionais. Além de ouvir as especialistas convidadas refletirem sobre o tema, as(os) participantes puderam fazer perguntas e relatar suas experiências locais para o grupo.

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Uma história de violências, opressões e desigualdades

Antes de tudo, é preciso lembrar que a escola não está apartada da sociedade. Pelo contrário: o que acontece nela reflete o que acontece fora dos muros da instituição escolar. 

Ednéia Gonçalves, socióloga e coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa, é categórica quando lembra que enfrentar a violência não é algo novo no ambiente escolar:

Foto: acervo pessoal
Foto: acervo pessoal

“Quem está dentro da escola sabe que a violência sempre existiu. E sabe que os nossos instrumentos metodológicos funcionam sim – tanto que durante décadas nós conseguimos conter muito dessa violência que está na sociedade e da qual a escola faz parte“.

Ela lembrou ainda que essa violência está presente desde os primórdios da construção do Brasil como nação, à medida que a nossa história é calcada no colonialismo e no regime escravocrata. “Isso é o suprassumo da violência. Então temos muito mais tempo de vivência de violência explícita do que enfrentamento da violência“, diz.

Para a socióloga, é fundamental que entendamos a nossa formação como sociedade e as diferentes opressões a que estão sujeitas as pessoas – dentro e fora da escola – para compreender de onde parte o fenômeno de violência escolar que vemos ocorrer hoje em dia. Dessa forma, fazemos uma análise mais abrangente que engloba as diversas violações de direitos, e podemos, assim, pensar em soluções mais eficazes

Racismo, sexismo, lgbtfobia são camadas de violência e opressão que também estão dentro da escola como manifestações institucionais próprias dela. Sempre que nós não enfrentamos essas violências, elas se tornam desigualdades, que acabam sendo opressões mais fortes, e se tornando violências mais intensas“, explica.

Ednéia Gonçalves, socióloga e coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa

Como agir responsavelmente diante de episódios violentos nas escolas

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A melhor arma é a cultura de paz 

Se a escola sempre lidou com a violência e sempre esteve imersa em uma sociedade construída sobre bases violentas e opressoras, o que ela tem feito todos esses anos em prol de um ambiente intra e extramuros mais harmonioso?

“A história da educação é também uma história que se cruza com os outros sistemas (o econômico, o jurídico, etc), construídos para a manutenção dos privilégios e das desigualdades. Sempre foi uma luta das(os) profissionais da educação, a partir do contato com os direitos humanos, trazer como alternativa da sociedade a opção do diálogo, da argumentação, e da cultura de paz“, diz a socióloga.

 

É a partir da própria função social da escola – de contribuir para construir aprendizagens significativas e de formar cidadãos e cidadãs para conviver em sociedade – que se fortalece o espaço escolar como um ambiente mais seguro, mais aberto à resolução de conflitos, mais propício ao diálogo. 

Sobre essas práticas pedagógicas que criam essa cultura de paz e fazem com que as(os) estudantes saibam interagir e conviver na sociedade, Ednéia resgata o conceito de “comunidade de aprendizagem” da pensadora feminista estadunidense bell hooks:

Toda sala de aula é uma comunidade de aprendizagem, porque é onde aprendemos a ser um dentro do coletivo. É onde aprendemos a escutar e a verbalizar argumentos, e a convencer por meio de uma elaboração argumentativa. Na educação infantil, nós fazemos rodas de conversa justamente para ensinar essa horizontalidade. É na horizontalidade – e não na opressão, ou seja, em um querendo ser mais forte que o outro – que combatemos a violência e que ensinamos a sociedade como um todo a conviver com a diferença, valorizando cada pessoa nas suas especificidades, mas valorizando, sobretudo, a capacidade que temos de transformar as histórias coloniais e escravocratas a partir do diálogo”.

Ednéia Gonçalves, socióloga e coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa

No PL 1.372/2022 inclusive, mencionado no começo da reportagem e que cria o Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas, está prevista também a promoção de programas educacionais e sociais direcionados à formação de uma cultura de paz

Por isso, em meio a tantos questionamentos sobre segurança pública e inseguranças presentes entre professoras(es), gestoras(es), estudantes e familiares, Ednéia reforça que:

O que tem acontecido agora? Se temos um ambiente em que se naturaliza a resolução de conflitos de forma armada, se a gente começa a tratar a capacidade de argumentação e de paz como fraqueza, as crianças e os adolescentes também vão fazer uma leitura dessas discussões que estão na sociedade e se apropriar delas. Nós temos instrumentos e os temos utilizado muito bem. Não podemos nos esquecer disso”.

Ednéia Gonçalves, socióloga e coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa


Ações múltiplas

Na cidade de Diadema, localizada na região do Grande ABC Paulista, a cultura de paz e o diálogo são princípios que servem de base e ao mesmo tempo objetivo para muitas das ações colocadas em prática pela gestão municipal. 

Foto: acervo

“‘ ‘A escola é violenta’: esse título recaiu sobre as escolas e precisamos lidar com isso”, conta Ana Lucia Sanches, mestre em Serviço Social, doutora em Educação e Currículo e secretária municipal de educação de Diadema.

Entre os desafios da violência escolar que ela enxerga, estão a violação de direitos – presente desde o pós-pandemia –, o sentimento de insegurança, muito presente principalmente nas regiões metropolitanas, e o pânico com as ameaças, muito causado pela desinformação e pela propagação de informações imprecisas ou falsas nas redes. 

Assim, diferentes programas tratam desses aspectos. O Programa Escola que Protege olha para a baixa frequência e a evasão escolar, promovendo um trabalho articulado com outras áreas da rede de proteção às crianças e adolescentes, como a Assistência Social e a Saúde. Ele inclui ainda formação de educadoras(es) para percepção de situações de violações de direitos e trouxe o atendimento com psicólogas(os) para as escolas (algo que não acontecia antes). 

Estamos fazendo formações com as famílias também, principalmente das periferias. Identificamos que, em quase 100% das vezes em que a criança vive violações, a mãe também é uma vítima, estando nas mesmas situações“, explica. 

Ana Lucia Sanches, secretária municipal de educação de Diadema

O programa Fala Curumim busca trazer o protagonismo das crianças, incentivando a participação em grêmios e conselhos curumins. Foram feitas oficinas com as crianças para ouvi-las e entender o que elas pensam sobre situações violentas na escola, no bairro e na cidade. 

“O que as crianças destacaram foram barulho, desrespeito, briga, poluição e roubos. A ideia é levar isso para uma discussão de cidadania mais ampla, menos consumidora”, lembra a secretária. 

A secretaria tem levado a cabo ainda um programa de combate ao bullying e ao racismo, com formação de educadoras(es) para identificação desses diferentes casos, e a construção de um currículo étnico-racial

É preciso diferenciar bullying de racismo. O bullying é direcionado a um indivíduo, ligado a uma característica dele (pode ser fraqueza, o formato do nariz, uso de óculos, gordofobia). O racismo é hierárquico, é um sistema em que você constrói a desigualdade colocando um grupo, uma cultura em um espaço acima e outro abaixo. No Brasil, ele está ligado à desumanização de pessoas pretas, indígenas. Sendo os dois fenômenos diferentes, a forma como lidamos com o bullying e o racismo é diferente”, alerta Ednéia.

Conheça a experiência desenvolvida por Silvia Colello (USP), que criou com crianças um jogo de perguntas sobre a escola para estimular a reflexão e o debate respeitoso.

Conheça o programa PVE Quilombola, que busca a garantir a equidade racial na educação e implementar a lei 10.639/03

Em parceria com a Secretaria de Defesa Cidadã, também foi criado o Observatório de Segurança Escolar, que busca envolver toda a comunidade escolar e as lideranças locais

Nosso entendimento tem sido de que, primeiro, é preciso ter uma discussão de base, de formação cidadã com os estudantes. Segundo, o envolvimento da sociedade. Então o Observatório tem esse objetivo de pensar a escola aberta no fim de semana, de ampliar a discussão regional da cultura de paz. E, em terceiro, pensar na possibilidade de que pode ser que algo aconteça, como ocorreu em Blumenau, em nossas escolas. Então olhamos para o crime cibernético, temos a instalação de câmeras, levamos as famílias para conhecer a central de monitoramento”, explica.

Ana Lucia Sanches, secretária municipal de educação de Diadema

Para a secretária, movimentos como esses ajudam a tranquilizar a comunidade escolar – sem ignorar ou diminuir os sentimentos e as inseguranças que elas apresentam neste momento –, ao mesmo tempo que mostram que não é necessário ter um policial armado dentro da escola para ter segurança, mas sim vigilância. “Não podemos deixar esse sentimento contaminar as crianças”, reforça.

Para Luciana Franceschini, coordenadora do PVE, a 4a edição do Encontro entre Secretárias(os) do PVE possibilitou que as(os) gestoras(es) tivessem um espaço de troca importante sobre a questão da violência escolar:

Foto: acervo pessoal

As questões feitas pelas(os) participantes às especialistas demonstraram uma busca por estratégias para lidar com essa situação-problema. Como é que eu construo uma cultura de paz dentro da escola? Claro que essas respostas não são receitas de bolo, pois há uma diversidade de contextos. Mas ter um(a) representante de um município, ou seja, um par, compartilhando a sua experiência e relatando caminhos traz inspiração para as(os) demais secretárias(os). Essa era a nossa principal intenção”. 

Priscila Beltrame Franco, técnica de programas e projetos do Cenpec que faz parte da equipe do PVE, também lembrou que, embora não haja respostas prontas para esses desafios, a possibilidade de trocar com as(os) pares fortalece a atuação de todas(os) em um momento de forte pressão social por soluções:

Foto: acervo pessoal

Estar ali entre outras secretárias e secretários e ouvir as contribuições das especialistas trouxe um lugar de conforto aos participantes, pelo reconhecimento da escola como um lugar de proteção que já exerce essa função há muito tempo. Nesse sentido, foi um certo alívio olhar sua prática e entender que no seu cotidiano elas(es) cuidam da segurança das crianças e trabalham para tornar a escola um lugar seguro, em meio a um momento tão tumultuado”. 

Participe do Programa Parceria pela Valorização da Educação (PVE)!

O PVE está com chamada pública aberta para municípios com até 100 mil habitantes que queiram melhorar a sua educação pública. 

33 novos municípios de todas as regiões do país poderão participar da iniciativa, realizada pelo Instituto Votorantim em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

As inscrições estão abertas até dia 21 de agosto e devem ser feitas pelo site do Instituto Votorantim. Saiba mais sobre os critérios de seleção e faça sua inscrição


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