Clima escolar: da indisciplina e violência às relações e regras de convivência

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Clima escolar: da indisciplina e violência às relações e regras de convivência

Episódios de violência dura contra a escola levantam a reflexão sobre a importância de garantir um bom clima escolar e cuidar das relações entre todas e todos dentro e fora da sala de aula; saiba mais

Por Stephanie Kim Abe

No dia 13 de fevereiro de 2023, o local onde funcionam duas escolas em Monte Mor, na região de Campinas (SP), foi atacado por um jovem de 17 anos que explodiu duas bombas caseiras na fachada do prédio. Ninguém se feriu. 

O episódio se soma a outros recentes casos de violência contra espaços escolares que ocorreram no último ano. Em novembro de 2022, membros de duas escolas de Aracruz, município do norte do Espírito Santo, foram atacados por um jovem de 16 anos, que entrou atirando nas escolas, matando quatro pessoas e deixando mais de 10 feridas. 

Em ambos os casos, os autores eram jovens ex-estudantes que portavam símbolos nazistas, como a suástica. Para Miriam Abramovay, coordenadora do Programa Estudos sobre Juventudes, Educação e Gênero: Violências e Resiliências da Faculdade Latino americana de Ciências Sociais (Flacso), esses atentados têm algumas características em comum e refletem, de certa forma, o que acontece na sociedade no geral:

Podemos ver que são todos homens, com perfis machistas, que sofreram microviolências no ambiente escolar e que planejaram esses atentados, às vezes por mais de um ano. Eles são alimentados por sites de ódio e refletem também essa hipervalorização das armas que ocorreu nos últimos tempos. Se somarmos com a proibição do debate sobre questões de gênero e sexualidade na escola, vemos que essas pautas influenciam de forma contundente nossa população e, evidentemente, jovens e adolescentes também“. 

Miriam Abramovay

Apesar de não serem comuns, esses episódios de atentados e massacres chamam atenção e ganham um maior grau de importância quando têm como desfecho a morte de pessoas das comunidades escolares.

Mas pensar em soluções ou medidas de prevenção a essas violências vai muito além de impor medidas punitivas e/ou pontuais.

“Não é de um dia para o outro que o menino entra na escola e começa a atirar. É preciso entender essas violências pelas quais ele passou ao longo da sua vida escolar, que podem ser entre os pares, entre ele e os professores, entre ele e a instituição. O que precisamos pensar profundamente é na garantia de programas de convivência escolar que garantam espaços de discussão aberta sobre diversos temas“, diz Miriam. 

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Diferentes tipos de violência

Estudiosos da violência no ambiente escolar buscam maneiras de classificar e categorizar o que é violência na escola, da escola e contra a escola. Em artigo publicado no Estadão no dia 26 de janeiro de 2023, Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec, explica que:

Foto: acervo pessoal

A primeira [violência na escola] está diretamente relacionada ao dia a dia escolar, como o desrespeito entre estudantes e professoras e o bullying. A segunda [violência da escola] se fundamenta na ação institucional, simbólica, no modo como opera a comunidade escolar, como a falta de diálogo da gestão com as(os) discentes e a deslegitimação das necessidades dos estudantes. A violência contra a escola, por sua vez, se refere àquelas que ocorrem dentro do ambiente escolar, mas que se originam fora dela – como os casos de tiroteio em que a escola acaba se tornando alvo da violência“. 

Anna Helena Altenfelder

Leia o artigo completo aqui

Fazer essa classificação permite entender melhor esses diferentes fenômenos e pensar maneiras de lidar com eles. Miriam Abramovay ressalta que o bullying, por exemplo, é a violência entre os pares – ou seja, é um termo que não pode ser utilizado para classificar uma violência de um professor com um estudante. “O bullying tampouco abarca o racismo ou a homofobia, porque essas são consideradas ‘violências duras’, que são aquelas que estão previstas no Código Penal”, explica. 

Apesar de não existir uma estatística nacional que revele se há, de fato, um aumento da violência escolar, a percepção da comunidade escolar e da sociedade no geral é que isso está acontecendo

➕ Uma pesquisa realizada pela Nova Escola em julho de 2022 com mais de 5,3 mil educadoras(es) revelou que 7 em cada 10 professoras(es) relataram casos de violência nas suas escolas. 2,9 mil docentes afirmaram já ter sido agredidas(os) por estudantes (em 50,5% dos casos), familiares de alunas(os) (25,7%), gestoras(es) escolares e colegas de trabalho (11,4%) e outras(os) docentes (9,4%).

➕ Em vídeo produzido pelo Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, Telma Pileggi Vinha, professora e coordenadora do do grupo que desenvolve a linha de pesquisa “As Relações Interpessoais na Escola e o Desenvolvimento Moral” do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM da Unesp/Unicamp), alerta para a importância de distinguir as questões de indisciplina das de violências. 

Ela mostra, com dados do registro de ocorrências do Estado de São Paulo, que há quase três vezes mais episódios de indisciplina que de agressões físicas e verbais constantes nas escolas estaduais paulistas.

Assista ao vídeo ao lado:

A compreensão que nós temos é que nossas escolas são muito mais violentas do que efetivamente elas são. Isso faz com que o poder público apresente uma resposta que leve à segurança, e não à promoção da aprendizagem da convivência por meio dos conflitos. Então se exige, com essa concepção, um aumento de ações de contenção, de fiscalização, de contratação de empresas de segurança, de instalação de filmadoras, regras e punições mais rígidas. E nós temos que refletir se esse tipo de solução contribui efetivamente para que esses alunos desenvolvam as competências e valores sociomorais que queremos”. 

Telma Pileggi Vinha, coordenadora do grupo que desenvolve a linha de pesquisa “As Relações Interpessoais na Escola e o Desenvolvimento Moral” do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM da Unesp/Unicamp)


Atenção para o clima escolar

Atos de violência e indisciplina, problemas comportamentais e conflitos no ambiente escolar são muitas vezes resultados ou reflexos de diversos aspectos que permeiam a instituição e as relações que existem dentro dela.

Uma discussão entre uma professora e uma aluna pode começar porque a estudante trouxe à escola um artefato que era proibido pelas regras escolares, mas que ela não tinha conhecimento do assunto. Um menino pode se sentir mal por sofrer bullying pelos colegas de classe, e não ter nenhum suporte da direção ou do corpo docente para se apoiar.

Uma turma pode estar desmotivada para estudar porque a condição da sala em que estuda é deplorável, sem janelas, com pouca iluminação ou cadeiras quebradas. Um estudante pode estar mais inclinado a abandonar a escola porque a professora não demonstra acreditar no seu potencial e não há ações previstas pela escola para melhorar o seu desempenho acadêmico. 

Essas são todas diferentes dimensões que atuam sobre o que podemos chamar de clima escolar, como explica Érica Catalani, coordenadora de projetos no Cenpec:

Há diferentes concepções para o que é o clima escolar, mas podemos dizer que é o conjunto de percepções e expectativas compartilhadas por diferentes integrantes da comunidade escolar (estudantes, professores, gestores, familiares, funcionários). Ela envolve diversas dimensões: as normas e as regras, os valores propostos, as relações estabelecidas, a organização pedagógica e administrativa, a estrutura física etc. Todos esses são aspectos que acabam interferindo, de certa forma, na aprendizagem – que, vale reforçar, não acontece de forma dissociada da vivência que o estudante tem dentro e fora da sala de aula”, diz. 

Érica Catalani

Pesquisas têm demonstrado que, quando um clima escolar é mais positivo, a tendência à indisciplina e episódios de violência é menor. 

Um bom clima escolar tem a ver com:

  • normas claras e consensuadas (todas e todos entendem e têm voz na discussão e definição dessas regras?);
  • sentimento de pertencimento ao espaço escolar (docentes e estudantes se enxergam naquele espaço?);
  • sensação de proteção pela e dentro da instituição (as pessoas se sentem expostas ou acolhidas nesse espaço? há segurança? são todas tratadas de forma justa e igualitária?);
  • boa infraestrutura (o prédio é todo pichado? as janelas estão quebradas? os banheiros estão sempre sujos e sem produtos de higiene? como esperar que as crianças cuidem do entorno se ele já não está adequado?).  

“São muitas as questões que permeiam a atmosfera em que vai se realizar essas relações interpessoais e a aprendizagem no cotidiano escolar”, explica Miriam.

Érica ainda ressalta que: 

Um clima escolar positivo não significa ausência de conflitos, mas sim preparar todas e todos da comunidade escolar a saber enfrentá-los de uma forma harmoniosa. Conflitos são inerentes às relações humanas, o que muda é a forma como lidamos com eles”. 

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Melhoria da convivência escolar

De acordo com o levantamento da Nova Escola, 57,4% das(os) professoras(es) acreditam que o aumento da violência percebido por elas(es) tem a ver com os impactos na saúde mental e emocional da comunidade escolar do período de isolamento social e escolas fechadas durante a pandemia. 

“Com a pandemia, esse clima escolar ficou mais fragilizado, de um modo geral, como vimos pela forma como as relações e a saúde mental de muitas(os) das(os) profissionais de educação e da comunidade escolar no geral foram afetados por esse período. Com isso, essa questão passou a saltar aos olhos – o que eu acredito que é bom, porque nos faz reconhecer a importância do clima escolar para a aprendizagem e trabalhar sobre isso“, diz Érica. 

Para 65% das(os) respondentes, a elaboração de um plano de convivência com regras e ações criadas coletivamente é a principal maneira de combater a questão da violência no ambiente escolar. 

Érica acredita que é importante que tanto gestão escolar como a secretaria de educação pensem ações para identificar situações de risco e de apoiar as(os) profissionais na ponta a lidarem com elas:

Entre as ações preventivas, podemos pensar em formações com os professores, que estão diariamente com os estudantes e podem identificar situações de estresse, ansiedade, depressão, e criar fluxos de encaminhamento para esses casos – já que tratá-los não é papel das(os) professoras(es). É possível criar e institucionalizar canais de denúncia de abusos ou violações. E, como ações propositivas, é importante que a escola promova espaços de discussão e debate, assembleias com estudantes e demais membros da comunidade escolar, onde todas(os) se sintam acolhidas(os) e possam conversar abertamente sobre convivência respeitosa, regras, soluções para conflitos etc.”

Érica Catalani, coordenadora de projetos no Cenpec

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