Paulo Freire e bell hooks: esperançar, humanizar e criar uma comunidade de aprendizagem

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Paulo Freire e bell hooks: esperançar, humanizar e criar uma comunidade de aprendizagem

Conheça o diálogo entre o pensamento freiriano e a obra da pensadora bell hooks nessa entrevista com a socióloga Ednéia Gonçalves

Por Stephanie Kim Abe

bell hooks – pseudônimo de Gloria Jean Watkins – é uma das(os) muitas(os) intelectuais influenciadas(os) pela obra e pelo pensamento de Paulo Freire. Seu livro Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, publicado em 2004 mas lançado este mês em português pela Editora Elefante, já traz no título referência clara aos conceitos freirianos de pedagogia crítica e libertária.

A obra é a segunda parte da sua Trilogia do Ensino, que também conta com a obra Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, escrita em 1994 e lançada no Brasil em 2013, e Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática (publicada aqui em 2020).

Nessa série, a pensadora feminista estadunidense traz artigos e reflexões sobre uma pedagogia engajada, que partem da sua experiência e trajetória de vida como mulher negra, de uma família de classe trabalhadora, que viveu a segregação racial e a luta pelos direitos sociais e civis nos Estados Unidos dos anos 1960 e 70.

Suas obras têm ressoado entre professores(as) e estudantes do país e afora que se identificam com os seus ideais de uma educação que busque combater as opressões de um sistema baseado no capitalismo, na cultura machista e no racismo estrutural.  

Descolonizar escola, nova batalha de bell hooks - Outras Palavras
Foto: reprodução

O racismo é apenas um dos sistemas de dominação perpetuados e mantidos por educadores. Assim como me disseram no ensino médio que não existiam escritores negros, ensinaram-me durante os anos de graduação, em uma faculdade de elite, que mulheres não poderiam ser ‘grandes’ escritoras. Felizmente, tive uma professora branca que nos ensinou a reconhecer os preconceitos do patriarcado e a desafiá-los. Sem esse ensinamento contra-hegemônico, quantas mulheres teriam o desejo de escrever esmagado, quantas se formariam pensando: por que tentar, se você jamais poderá ser boa o suficiente?”

bell hooks, 2020, p. 63.


Diálogos com Paulo Freire

bell hooks sempre deixou transparecer a influência que a obra de Paulo Freire teve sobre o seu pensamento. Para ela, o propósito de um(a) educador(a) que tem como foco uma educação como prática da liberdade deve ser a “humanização e a criação de uma comunidade de aprendizagem em sala de aula”. Nesse sentido, assim como o patrono da educação brasileira, ela vê a educação intrinsicamente ligada à luta por justiça social.

O conceito de “integridade” trabalhado por bell hooks dialoga com a “ética” e “coerência” freiriana, ou seja: o discurso das(os) educadoras(es) precisa ser condizente com a sua prática. A autora também entende que um(a) professor(a) que busca realmente estimular o pensamento crítico em suas(seus) estudantes precisa estar em constante aprendizado – assim como Paulo Freire também dizia que somos “seres inacabados”.

Não é possível mudá-las [as salas de aula] se os professores não estiverem dispostos a admitir que ensinar sem preconceitos exige que a maioria de nós reaprenda, que voltemos a ser estudantes.

[…] A integridade está presente quando há congruência ou concordância entre o que pensamos, dizemos e fazemos.”

bell hooks, 2020, p. 64.

Para falar sobre essa relação entre a obra de Paulo Freire e bell hooks, o Portal Cenpec entrevistou Ednéia Gonçalves, que escreveu o prefácio da obra Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança.

Ednéia é educadora e socióloga, e atua como formadora de gestores e professores nas áreas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) e Educação e relações étnico-raciais. É também coordenadora executiva adjunta da ONG Ação Educativa.

Foto: reprodução

Para Paulo Freire, ‘esperançar’ é um verbo, é ação. Ele não tem o sentido do sentimento que paira nos nossos corações; tem um efeito de ação, de política. Tanto para bell hooks quanto para Paulo Freire, o ‘esperançar’ tem efeito coletivo – ou seja, é a possibilidade e condição de se estabelecer uma comunidade que reaja à violência e à humilhação de um sistema opressor baseado nas demandas de um grupo que sempre foi favorecido pelo colonialismo e pelo escravismo.”

Ednéia Gonçalves

Confira a entrevista inteira a seguir.

Selo #100AnosPauloFreire

#100AnosPauloFreire

Já conferiu as outras reportagens do nosso Especial #100AnosPauloFreire?
Ao longo de 2021, publicamos reportagens mensais em homenagem ao centenário do patrono da educação brasileira e em reconhecimento ao seu importante papel no pensamento e nas práticas educacionais em nosso país e no mundo.

As matérias versam sobre diversas facetas da vida e obra de Paulo Freire: como o pensamento do educador influenciou a fundação do próprio Cenpec; seu trabalho como gestor à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo na gestão de Luiza Erundina; a relação entre leitura do mundo e da palavra de diferentes educadoras(es) e formadoras(es) de leitoras(es); iniciativas de diferentes áreas que trabalham com a ideia de círculos de cultura; conceitos que envolvem a prática educativa de Paulo Freire e o trabalho com alfabetização de jovens e adultos.


Entrevista: educação como um improviso de jazz

Portal Cenpec: Em sua visão, como a perspectiva de uma educação crítica e libertária de Paulo Freire dialoga com a atual discussão de bell hooks sobre um ensino decolonial?

Ednéia Gonçalves: A primeira coisa que a gente tem que pensar é o que chama atenção para bell hooks na obra de Paulo Freire. Ela fala que alguns(as) alunos(as) separavam o personagem Paulo Freire e a sua vida de sua obra. Mas ela acredita que é preciso juntar as duas coisas. É preciso pensar o contexto em que Paulo Freire desenvolveu o seu trabalho e o seu pensamento, tanto no Brasil quanto no exterior. Ou seja, considerar a luta campesina, a experiência de alfabetização em Angicos, o período da ditadura militar, o exílio, as viagens e os trabalhos na África e em outros lugares do mundo.

Da mesma forma que ela não separa a vida de Paulo Freire da produção de Paulo Freire, ela também não romantiza a sua própria história. bell hooks tem uma trajetória de questionamento às opressões raciais e de gênero, que ela enfrenta o tempo todo. Uma das histórias que ela conta, que eu acho muito importante, é a de que, quando estava na escola segregada, onde só havia estudantes negras(os), as(os) professoras(es) a consideravam uma ótima escritora. Mas quando chega na escola mista, começa a ser questionada sobre algo que ela já fazia com muita habilidade: “Foi você mesma que escreveu isso? Tem certeza?”. Ela usa uma palavra que, aqui no Brasil, usamos pouco quando nos referimos aos traumas da educação: humilhação.

Então hooks sofre humilhação o tempo inteiro, tendo que provar que é boa em algo que ela é exímia. Isso tem a ver com o que encontramos nos(as) estudantes da EJA, quando fazemos os círculos de aprendizagem da educação popular com eles(as). Eles(as) narram o quanto a passagem pela escola foi traumatizante, a humilhação de ser considerado um(a) aluno(a) que não sabe nada.

“Imagine como é ter aulas com um professor que não acredita que você é totalmente humano. Imagine como é ter aulas com professores que acreditam pertencer a uma raça superior e sentem que não deveriam ter de se rebaixar dando aulas para estudantes que eles consideram incapazes de aprender.”

bell hooks, 2020, p. 24

Essa interseccionalidade de opressões faz com que ela encontre no Paulo Freire uma forma de assentar esse direito ao conhecimento, que é de todas as pessoas. E é por isso que eu gosto muito do subtítulo do livro: pedagogia da esperança. Para Paulo Freire, “esperançar” é um verbo, é ação. Ele não tem o sentido do sentimento que paira nos nossos corações; tem um efeito de ação, de política.

Tanto para bell hooks quanto para Paulo Freire, o “esperançar” tem efeito coletivo – ou seja, é a possibilidade e condição de se estabelecer uma comunidade que reaja à violência e à humilhação de um sistema de opressão baseado nas demandas de um grupo que sempre foi favorecido pelo colonialismo e pelo escravismo. 

Essa educação decolonial tem o objetivo de romper com esse ciclo violento, com mais essa camada de opressão que impede que as pessoas sejam reconhecidas pelo seu talento, pelo seu conhecimento, pela sua possibilidade de transformar simbolicamente e na realidade (seja pela economia, pelas tecnologias, pelas inovações) o território que elas ocupam.

“Sem uma mentalidade descolonizadora, estudantes inteligentes, vindos de contextos desprovidos de direitos, frequentemente pensam ser difícil ter sucesso nas instituições educacionais da cultura do dominador. Isso ocorre até mesmo com os estudantes que incorporaram os valores da cultura dominante.”

bell hooks, 2020, p. 56

Portal Cenpec: Há vários conceitos que envolvem as práticas educacionais freirianas e que também conversam com os ideais de bell hooks – como o afeto, o diálogo, a escuta do outro, o respeito à alteridade etc. Como eles aparecem na obra da pensadora estadounidense?

Ednéia Gonçalves: Os dois estão o tempo inteiro falando que o conhecimento já existe e todas as pessoas são portadoras dele. A educação escolar não inaugura o conhecimento.

Tanto para Paulo Freire quanto para bell hooks, pensar a sala de aula como e estabelecer nela uma comunidade educativa é sinal de que você entende educação de uma forma horizontal. Nessa visão, todas(os) as(os) estudantes são percebidas(os) como sujeitos de conhecimento e, como tal, também sujeitos de transformação da sua realidade, e da sua realidade no coletivo.

O trabalho de uma educação significativa, que realmente é crítica e que considera as diferentes presenças na escola, é baseado na circularidade do conhecimento e ocorre em uma sala de aula que está o tempo todo buscando fazer emergir o conhecimento do outro. Eu, como professora, preciso saber o que o outro sabe, pra poder articular isso com o meu conhecimento – tanto escolar quanto pessoal, porque como professora também sou um ser vivente e sensível, que também tem história.

Em suas obras, bell hooks também fala o tempo todo do amor e do afeto na sala de aula. As(Os) professoras(es) precisam ter essa humanidade para reconhecer as possibilidades de ampliação do seu próprio conhecimento e do outro – e esse é um outro ponto de conexão entre bell hooks e Paulo Freire.

Assim, essa comunidade educativa é a que coletivamente se segura e que nos apruma para enfrentar o racismo. Que nos permite nos ver não como pessoas nulas, mas que têm toda uma ancestralidade e uma comunidade que nos sustenta em nossas escolhas. 

“Foram as experiências dolorosas que me incentivaram a lutar para ensinar de formas que fossem humanizadoras, que animassem o espírito de meus estudantes de maneira que eles se elevassem na direção de sua peculiar completude de pensar e de ser.”

bell hooks, 2020, p. 69

Portal Cenpec: Como é a prática de um(a) professor(a) nessa sala de aula idealizada por bell hooks?

Ednéia Gonçalves: Essa sala de aula que bell hooks constrói está em oposição àquela de um(a) professor(a) com poder autocrático quanto à relevância ou insignificância do que é um conhecimento – ou seja, o espaço branco, capitalista e patricarcal que Paulo Freire descreve como “educação bancária”. Nesse ambiente, as(os) professoras(es) são portadoras(es) do conhecimento, e só depositam, depositam, depositam coisas nas(os) estudantes, como se fossem uma página em branco.

Para as(os) professoras(es) conseguirem tornar a sala de aula esse território de construção de saberes, é preciso que usem todos os seus instrumentos metodológicos para criar um novo conhecimento a partir do que todas(os) trazem, que seja significativo para a aprendizagem de todas as pessoas. Elas(es) também precisam construir um diálogo crítico, que questione o racismo e o sexismo, e um ambiente de acolhimento das diferenças, para então superar a humilhação.

É por isso que as(os) professoras(es) da educação popular estão sempre em construção, nunca se consideram prontas(os). Estamos o tempo todo assimilando, descobrindo, construindo. Estamos falando então de uma escola que nunca está pronta, de um processo que não finda, de uma avaliação que não é para descobrir o que as(os) estudantes não sabem, mas o que elas(es) sabem. É essa roda dialética de construção e realimentação de conhecimentos diversos que faz com que essa educação equitativa ocupe também um espaço de reafirmar identidade a partir de uma visão positiva das diferenças.

bell hooks fala que uma aula perfeita é como um improviso de jazz, um momento único em que todos os presentes estão por inteiro. Eu achei isso tão bonito, porque essa integridade passa pelo reconhecimento dessas pessoas como sujeitos de direitos. É isso que temos que construir: aulas perfeitas como improviso de jazz. E improviso sabemos como começa, mas nunca como acaba.

Referência:
HOOKS, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020.


Sobre bell hooks

bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana nascida em 25 de setembro de 1952, no Kentucky – EUA. O apelido que ela escolheu para assinar suas obras é uma homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. O nome é assim mesmo, grafado em letras minúsculas […]. A justificativa, encontrei depois numa frase da própria bell: ‘o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu’. Para ela, nomes, títulos, nada disso tem tanto valor quanto as ideias.” 

Andreia Santana

“bell hooks: uma grande mulher em letras minúsculas”: leia na íntegra o artigo da jornalista Andreia Santana na página Mar de Histórias.

O lançamento da obra Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança aconteceu no dia 25/11. Assista no canal da Ação Educativa:


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