Novo Ensino Médio: entre divergências, impasses e consensos

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Novo Ensino Médio: entre divergências, impasses e consensos

O primeiro ano de implementação da reforma mostra que há ainda muito a ser resolvido para impedir que as desigualdades educacionais se aprofundem com essa política educacional

Por Stephanie Kim Abe

Se tem uma lição aprendida este ano de 2022 – se é que ela não estava já nítida anteriormente –, é que não há consensos em relação ao Novo Ensino Médio (Lei 13.415/17)

O novo modelo começou a ser implementado efetivamente em todas as escolas públicas e privadas do país neste ano letivo para as turmas do 1º ano dessa etapa da educação básica. Se desde a sua aprovação, por meio de uma Medida Provisória (MP 746/2016) – que se dizia baseada nas discussões em torno do projeto de lei que propunha a reformulação do ensino médio (PL 4.680/2013) – ela já era bastante criticada, a cada ano o movimento contra o novo modelo parece se fortalecer. 

Em junho deste ano, mais de 250 associações científicas, movimentos sociais, entidades representativas, grupos de pesquisa e sindicatos relacionados à educação assinaram a Carta Aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017), que apresenta 10 razões para que o Novo Ensino Médio seja revogado.

Até aqui, todas as evidências apontam para um mesmo fato: o compromisso da atual Reforma do Ensino Médio não é com a consolidação do Estado Democrático de Direito e nem com o combate às desigualdades sociais e educacionais no país. A Reforma está a serviço de um projeto autoritário de desmonte do Direito à Educação como preconizado na Constituição de 1988″, diz o documento. 

Conforme a política tem sido implementada, vão surgindo pesquisas e artigos que atestam algumas das críticas que vinham sendo feitas – como a de que não seria possível ofertar todos os itinerários formativos a todas(os) estudantes, o que aumentaria as desigualdades educacionais – e trazem à tona diferentes lacunas e problemas na forma como a política tem chegado às escolas. 

No artigo A implementação do Novo Ensino Médio nos estados: das promessas da reforma ao ensino médio nem-nem, presente no dossiê Retratos Da Escola de maio/agosto de 2022, os autores Fernando Cássio e Débora Cristina Goulart alertam que:

“Já nas escolas públicas, sobretudo as dos/as mais pobres, o NEM vai se revelando um ensino médio que nem fornece uma formação geral sólida – pois retira conteúdos e coloca pouco ou nada no lugar – e nem forma para o mundo do trabalho – pois oferece um arremedo de ‘qualificação profissional’ muito aquém (em quantidade e qualidade) da Educação Profissional e Tecnológica ofertada nas escolas técnicas estaduais e no sistema federal, cujo acesso continuará restrito a poucos/as.

Da mesma forma, sem investimentos em ampliação física e nas equipes escolares (contratação de novos/as profissionais da educação e valorização dos/as existentes), não é possível que a flexibilização do currículo do ensino médio em itinerários formativos venha a beneficiar aqueles/as cuja condição de escolarização sempre foi mais precarizada. A estratificação educacional é, nesse sentido, um efeito inexorável da reforma”.
(p. 290)

Para Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec, é preciso pensar como solucionar essa questão, sem perder de vista a situação concreta que havíamos antes, de um ensino médio que não respondia às necessidades e aos anseios das juventudes:

Foto: acervo pessoal

A reforma traz avanços importantes, como trabalhar mais o protagonismo dos jovens, e trazer um diálogo maior com a sua realidade e seus anseios e uma visão mais interdisciplinar. Porém, efetivamente, ela tampouco está suprindo as necessidades dos professores e dos estudantes – muito porque eles não foram consultados no processo de construção e aprovação dessa reforma. Por isso, neste momento, o ideal é que tenhamos um movimento de revisão do Novo Ensino Médio, com a participação da sociedade como um todo. Não dá para manter ela como está, nem se trata de revogá-la“.

Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec


O que é preciso entender?

Com o objetivo de colaborar para a melhor compreensão do cenário, das complexidades e controvérsias em torno da implantação do Novo Ensino Médio, o Portal Cenpec iniciou, em fevereiro, a série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?.

A cada mês, publicamos uma reportagem com diferentes atores da comunidade escolar e especialistas que trazem os seus olhares sobre aspectos variados desse processo. A ideia é dar voz tanto a quem está no chão da escola (estudante ou docente) como a quem está na gestão pública planejando essas mudanças ou pesquisadoras(es) que se debruçam sobre as consequências dessa política pública.

✏️ Confira a primeira matéria da série

✏️ Entenda com o Cenpec tem contribuído para o debate sobre o Novo Ensino Médio


✏️ Conheça a experiência de três estudantes de diferentes estados com esse novo formato


✏️ Saiba como docentes têm se adaptado às mudanças


✏️ Veja como tem sido o trabalho das equipes técnicas das secretarias estaduais

✏️ Leia sobre os percalços de gestores escolares para implantar o novo modelo

✏️ Compreenda como reformas no ensino médio ocorreram em diferentes países


Para tratar mais desses impasses e das divergências que estão colocadas com relação ao Novo Ensino Médio e as perspectivas para solucioná-las nos próximos anos, o Portal Cenpec entrevistou Anna Helena Altenfelder e Getúlio Marques, secretário estadual de educação do Rio Grande do Norte e vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed)

Eles falam sobre as lições aprendidas neste primeiro ano de implementação do novo modelo em todas as escolas, da importância da participação e do papel do governo federal como indutor desse processo.

Confira a entrevista abaixo:

Portal Cenpec: Este foi o primeiro ano de implementação oficial do Novo Ensino Médio. Que balanço você faz desse período e da forma como esse processo tem acontecido? 

Anna Helena Altenfelder: É nítido que mesmo após esse primeiro ano de implementação, a reforma do ensino médio ainda é motivo de discussão. Não se criaram consensos e ela ainda traz muitas dúvidas e questionamentos por todos os envolvidos – principalmente por parte dos professores, mas também dos estudantes. Vemos isso por meio de depoimentos desses atores, o que mostra que os professores tiveram condições muito desiguais de apropriação da lógica da estrutura da reforma, sem a disposição de espaços coletivos de troca e de discussão sobre esse novo modelo. 

Além disso, a pandemia agravou e dificultou todo esse processo de implementação.

Getúlio Marques: Esse primeiro ano foi muito difícil. Alguns estados aprovaram as suas reformas há mais tempo, outros somente iniciaram o processo mais recentemente. 

A expectativa de que cada estudante poderia escolher aquilo que queria ser foi em parte frustrada por conta das dificuldades inerentes a um país de dimensões como o nosso, que tem tantas diferenças e desigualdades. Temos um conjunto de municípios no país que são pequenos, onde, em alguns lugares, existe apenas uma escola do ensino médio e não há professores suficientes para dar ao aluno a possibilidade de escolher entre cinco itinerários.

Eu vejo que há muitas experiências exitosas, e delas podemos observar que é possível fazer um novo ensino médio. Porém, na prática, vemos que esse modelo proposto pela Lei 13.415/2017 dificilmente se realizará, pois não temos condições. Mas nenhuma experiência está completa e pronta – e é natural que isso aconteça, já que este é um processo que está se iniciando agora. 

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Portal Cenpec: O que é preciso fazer para garantir que a reforma do ensino médio abarque a todos e todas e atinja o seu objetivo de permitir o protagonismo juvenil e tornar o ensino médio mais atrativo às(aos) estudantes?  

Anna Helena: Eu vejo que se faz muito necessária uma revisão do Novo Ensino Médio, à luz da experiência vivida esse ano. 

Isso não significa a revogação, como alguns setores e movimentos da educação têm defendido, pois já foi feito um esforço das secretarias e de muitas escolas para implementar esse novo modelo, e também porque não se trata de voltar ao modelo antigo, que tampouco correspondia às necessidades e aos anseios dos alunos.

Para isso, nós vamos precisar de estudos e pesquisas que compreendam melhor a realidade, já que hoje ainda não temos muitos dados a respeito desse processo. Também é preciso garantir que essa revisão aconteça por meio de um processo participativo que inclua professores, gestores, estudantes e toda a comunidade escolar que ficou de fora na discussão da reforma. É dessa forma que poderemos criar consensos. 

Getúlio: Para que essa reforma atinja o seu objetivo maior – de dar ao aluno o poder de escolha entre o mundo do trabalho ou a sua consequente continuidade nos estudos –, é preciso primeiro uma mudança de postura dentro do desenho do ensino médio de estudantes, professores e gestores.

Temos que estudar um pouco mais as experiências dos diferentes estados, principalmente daqueles que saíram na frente, para corrigi-las, e garantir mais tempo para essa implementação. Não houve a ampliação da discussão do modelo como gostaríamos, por mais unânime que fosse entre os meios educacionais a necessidade de mudança no ensino médio. Por isso precisamos buscar, durante a execução do projeto nos estados, um pouco mais de participação dos atores envolvidos. 

Acredito que precisamos estimular um pouco mais as parcerias, de tal forma que essa rede de ofertas consiga atingir a todos esses municípios pequenos de uma maneira que ainda vamos descobrir qual é a melhor. Daí a importância de ouvir gestores, professores, estudantes e a comunidade escolar em geral. 

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Portal Cenpec: Há muitas críticas em relação ao Novo Ensino Médio desde que a reforma foi instituída, por meio de uma Medida Provisória durante o governo de Michel Temer. Essa falta de consenso, já desde o princípio, é um impedimento para que essa política se torne realidade?

Anna Helena: Toda política educacional – e principalmente as políticas educacionais curriculares – são um campo de disputa. Então, de fato, não é esperado um consenso de saída, vamos dizer assim.

Exatamente por isso que o debate é tão importante, porque esse consenso precisa ser construído aos poucos, a partir das divergências e da oposição. O debate e as reflexões a nível da secretaria e de quem implementa a política pública é importantíssimo, mas se não houver construção de significado e sentido entre aqueles que estão na sala de aula – ou seja, atendendo às necessidade reais e concretas da escola –, que são os professores, os diretores e os estudantes, então essa política não vai ter aderência e dificilmente vai ser implementada

Então é de se esperar sim que não haja consenso em reformas dessa magnitude, mas é de se esperar também processos de discussão, de reflexão, de troca que vão ajudando esse contexto e esse consenso a serem construídos.

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Portal Cenpec: Sabemos que a etapa do Ensino Médio é de responsabilidade dos estados, mas que, como um sistema federativo, é importante contar com o apoio de todos os entes federativos. Que tipo de apoio os estados esperam do governo federal em relação à implementação dessa política? Quais devem ser as prioridades em relação ao próximo ano?

Anna Helena: Precisamos garantir urgentemente a criação do Sistema Nacional de Educação que defina os papéis entre os entes federados e que, nesse contexto de implementação do Novo Ensino Médio, possa criar ações de apoio aos estados e conduzir o processo de revisão dessa proposta. 

Além disso, podemos contar com o INEP para a produção de dados e pesquisas que nos tragam insumos concretos para pensar soluções para as lacunas e as dúvidas que atualmente existem com relação ao Novo Ensino Médio – como, por exemplo, a questão dos itinerários formativos e dos currículos das áreas de conhecimento, que estão pouco explicitados e tornam difícil a apropriação pelos professores. 

Apesar das secretarias estaduais de educação serem as responsáveis diretas pelas escolas do ensino médio, o Ministério da Educação (MEC) tem o papel de indutor das políticas públicas, dando apoio aos estados

Getúlio: Nos últimos anos, nos faltou o apoio que esperávamos do governo federal, principalmente na liderança desse processo, além da falta de apoio técnico e financeiro para que pudéssemos realizar essa implementação. 

Em relação ao próximo governo, eu acredito que nós podemos continuar com esse processo de reforma, mas rediscutindo e aprimorando a política, principalmente ao abrir espaço para as contribuições daqueles que ficaram de fora durante a aprovação da MP – como os fóruns populares e a Academia. 

Vale lembrar que nós temos um ensino médio de referência e reconhecido, que é aquele que acontece nos institutos federais, onde se trabalha tudo aquilo que almejamos para esse Novo Ensino Médio: uma formação integral, com uma base comum forte, e com a base técnica que a complementa. Esses alunos saem do ensino médio da forma como sonhamos que deve ser: preparados para a vida e para o mundo do trabalho. 

É importante também retomar a discussão do Plano Nacional de Educação (PNE), especialmente a questão do financiamento. É primordial que façamos um esforço conjunto, sob a liderança do MEC, para que possamos realmente melhorar o processo educacional brasileiro. 


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