Um olhar para as vivências de estudantes transgêneres nas escolas brasileiras CENPEC

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Um olhar para as vivências de estudantes transgêneres nas escolas brasileiras

Veja dados sobre a realidade vivida por crianças e adolescentes trans e recomendações de como a escola pode – e deve – se tornar um ambiente mais acolhedor e inclusivo

Por Stephanie Kim Abe

Uma das principais lutas das pessoas transgêneros em relação à garantia de seus direitos refere-se ao direito à educação. É comum que a população trans tenha baixa escolaridade, evada ou abandone a escola. Uma pesquisa de 2017 da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil apontou que 82% das pessoas trans abandonam o ensino médio entre 14 e 18 anos

Mas para algumas(ns) estudiosas(os) e ativistas pelo direito das pessoas trans, utilizar os termos “evasão” e “abandono escolar” parecem não traduzir o que de fato acontece com as(os) estudantes transgêneros nas instituições de ensino. Como questiona Dayana Brunetto, professora na Universidade Federal do Paraná, que realiza estudos de gênero, em artigo publicado na pesquisa Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro:


São as pessoas trans que abandonam os estudos e evadem dos espaços escolares ou é a instituição que produz a evasão desses corpos e o abandono dos estudos?

Dayana Brunetto (p. 113)


Escola ainda é um ambiente hostil 

O recém lançado Dossiê: Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil em 2022, feito pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil com dados coletados na mídia e redes sociais, levantou que houve 96 casos de violação dos direitos humanos das pessoas trans em 2022

Proibição do uso do banheiro, agressão física, recusa do uso do nome social, transfobia e bullying escolar são algumas dessas violações. Dentre os locais onde essas situações aconteceram, a escola figura em segundo lugar.

Em sua 7ª edição, o relatório é importante porque busca monitorar e trazer dados sobre a população trans, travesti e de gênero diverso no país, já que a coleta de dados de forma estruturada e oficial sobre essas pessoas é praticamente inexistente.

Na pesquisa Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro, publicada em 2021, também figuram outros dados que indicam um ambiente hostil à presença dos corpos transgêneros. Participaram dela 120 famílias com criança ou adolescente trans, entre 5 a 17 anos de idade, de 62 cidades distintas espalhadas por 17 estados brasileiros. 

⚠️ 77,5% dessas famílias afirmaram que sua criança/adolescente trans já foi vítima de bullying dentro da escola, dos mais diversos tipos.

Quando perguntadas(os) sobre quem foram as pessoas que praticaram esse bullying, aparecem não só as(os) colegas de classe, mas também profissionais da própria escola e familiares de outras(os) estudantes.


No artigo que assina, a professora Dayana ainda destaca outras perguntas da pesquisa que revelam situações escolares onde as(os) estudantes trans enfrentam problemas.

É o caso do uso dos banheiros e das aulas de educação física: 14 famílias apontaram que as suas crianças e adolescentes são apenas toleradas(os) – já que na hora da escolha dos times ou na condução das atividades a turma seja separada por identidade de gênero (menina ou menino) –, enquanto 16 delas disseram que as(os) estudantes trans se sentem desrespeitadas(os) e que não são bem-vindas(os). 

Parece-nos que são as instituições que abandonam os corpos, práticas e experiências dissidentes de gênero. Isto é, não são as pessoas trans que desistem de estudar. É a escola que se demonstra um espaço hostil para as pessoas trans“, escreve Dayana Brunetto no artigo. 

A pesquisa ainda evidencia os impactos desse ambiente hostil na saúde mental das(os) estudantes trans. 86,6% das famílias indicaram que sua adolescente/criança trans já teve ou tem problemas psicoemocionais, como ansiedade e depressão. 98% das famílias não consideram o ambiente educacional seguro para as pessoas trans. 

Leia mais sobre saúde mental nas escolas aqui


É preciso avançar mais 

Entre os avanços na garantia dos direitos das pessoas trangêneros nos últimos anos, fruto da luta dos movimentos LGBTQIA+, está o uso do nome social – aquele que a pessoa trans se identifica e escolhe ser reconhecida – na escola, homologada pelo Ministério da Educação em 2018 (Portaria 33).

Na última década, o uso do nome social aumentou 300% em documentos e registros escolares de estudantes da educação básica (incluindo a Educação de Jovens e Adultos), de acordo com um levantamento feito pela CNN com secretarias estaduais de educação. 

Fonte: CNN Brasil

Apesar disso, as escolas ainda precisam se preparar muito para oferecer um ambiente de fato acolhedor para as crianças e adolescentes transgêneros. 

Para Dayana, isso deve ser feito sempre em parceria, principalmente, com as famílias:


É possível compreender com isso que tanto o apoio, quanto o suporte das famílias, são fundamentais para o processo de subjetivação e para uma escolarização segura, saudável e bem-sucedida das pessoas trans. O diálogo permanente e o compromisso das famílias com os processos de escolarização de suas/seus filhas/os/es são imprescindíveis no enfrentamento das práticas transfóbicas na/da escola, possibilitando desta forma um maior tempo de escolarização. Isto fica evidente ao se analisar o conjunto de informações desta pesquisa”

Dayana Brunetto (p. 114)

Tanto a pesquisa Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro quanto o Dossiê: Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil em 2022 trazem recomendações para políticas públicas no que tange essa temática. 

➕ Oferecer formação continuada a toda a comunidade escolar, principalmente professoras e professores, para que saibam identificar e lidar com casos de violência contra estudantes LGBTQIA+, sistematizar processos de denúncia e ação em relação a casos de violências e transfobias é um primeiro passo importante. 

➕ Além disso, estimular o diálogo entre as secretarias municipais e estaduais de educação para o combate a todo e qualquer tipo de violência e discriminação são algumas das medidas listadas que gestoras(es) escolares e educacionais precisam se debruçar para garantir a permanência dessas crianças e adolescentes na escola. 

De acordo com a pesquisa Vivências, 91 famílias afirmam que a escola nunca trabalhou questões relacionadas à gênero. Essa é uma demanda de muitas famílias brasileiras, como mostra a pesquisa nacional Educação, Valores e Direitos

Coordenada pelo Cenpec e pela Ação Educativa, e realizada pelo Datafolha e pelo Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop/Unicamp) em março de 2022 com 2.090 pessoas em todo o país, a pesquisa constatou que 82% da população entende que a escola deve promover o direito de as pessoas viverem livremente sua sexualidade, sejam elas heterossexuais ou LGBTQIA+s

Dada essa realidade, a professora Dayana defende que:


A transfobia, assim como a lesbofobia, a homofobia, a bifobia, o racismo, o machismo, a xenofobia, o capacitismo, o preconceito geracional e a intolerância religiosa, dentre outras questões sociais, consistem em problemas coletivos e devem ser enfrentados na coletividade da escola, por meio de estratégias pedagógicas que envolvam toda a comunidade escolar, mesmo que na escola não haja nenhuma pessoa com tais pertencimentos. Isso significa preparar e instrumentalizar todas as escolas para trabalhar pedagogicamente, por meio do acolhimento e da ética, com as potencialidades das diferenças” (p. 124)

Dayana Brunetto (p. 124)


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