A docência ainda é uma profissão dominada por mulheres. Mas a presença de diversidade entre as(os) professoras(es) se faz cada vez mais necessária.
Por Stephanie Kim Abe
Atualmente, há apenas quatro homens trabalhando na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Francisca Júlia da Silva, localizada no Jardim Ângela, zona sul da cidade de São Paulo: dois funcionários na secretaria, um na limpeza e um na direção. Não há nenhum homem entre o quadro de docentes.
A escola chegou a ter um professor. “À época, isso gerou certa desconfiança de algumas famílias inicialmente. Mas depois tudo foi conversado e resolvido”, conta o atual diretor Marcos Rodrigo da Rosa, relatando o que lhe disseram sobre o caso, que ocorreu antes da sua gestão.
Como diretor há um ano e meio, Marcos não sentiu dificuldade de adaptação com relação ao fato de ser homem. “Isso porque sabemos que historicamente e culturalmente o homem tem assumido esse papel de direção”, reconhece. “A minha adaptação foi rápida. Precisei entender como a escola funcionava, as práticas que eram realizadas e construir um diálogo com as professoras para entender de que forma poderíamos enriquecer esses processos e atividades que já ocorriam”, explica.
Ao longo de sua experiência como professor de ensino fundamental e médio, Marcos nunca teve muita preocupação com relação ao fato de ser homem – diferentemente de quando trabalhou como professor da sala de recursos em uma escola e recebia crianças da educação infantil. Ele acredita que:
Foto: acervo pessoal
É muito positivo que tenhamos homens na educação infantil – até porque também é importante que o homem assuma esse papel do cuidar e que a ele seja dada essa função como profissional. As famílias têm essa visão de que o papel do cuidar, do educar deve ser ligado ao feminino, a uma mulher. Além disso, há uma preocupação com o perigo que um homem pode trazer nesse espaço das crianças, numa visão sexualizada”.
Marcos Rodrigo da Rosa, diretor da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Francisca Júlia da Silva
A construção da docência como uma profissão feminina
Essa situação não é incomum no Brasil. As professoras são a maioria entre os 2,2 milhões de docentes da educação básica no Brasil. De acordo com o Censo Escolar 2021, as mulheres são 96,3% do corpo docente na educação infantil. Nos anos iniciais do ensino fundamental, são 88,1%; nos anos finais, 66,5%; e, no ensino médio, 57,7% do corpo docente é composto por pessoas do sexo feminino.
Na história brasileira, as mulheres foram conquistando espaço na educação muito por causa de uma suposta vocação para a maternidade, o que as associava como a primeira e principal educadora dos filhos. Enquanto esse argumento beneficiou as mulheres para que elas pudessem ter mais acesso à educação e se inserirem no mercado de trabalho por meio da docência, ele também perpetuou o lugar da mulher como mãe nata.
No artigo Mulheres na sala de aula, que compõe o livro História das mulheres no Brasil (Mary del Priore), Guacira Lopes Louro explica que, à época do Primeiro Reinado, no início do século 19:
Sob diferentes concepções, um discurso ganhava a hegemonia e parecia aplicar-se, de alguma forma, a muitos grupos sociais a afirmação de que as “mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas”, ou seja, para elas, a ênfase deveria cair sobre a formação moral, sobre a constituição do caráter, sendo suficientes, provavelmente, doses pequenas ou doses menores de instrução. (…) Ela precisaria ser, em primeiro lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro. A educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua justificativa não se encontrava em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função social de educadora dos filhos ou, na linguagem republicana, na função de formadora dos futuros cidadãos”. (p. 446)
Assim também formou-se a ideia de que a docência precisava estar ligada à vocação e à uma suposta habilidade das mulheres de cuidar e de amar:
Se o destino primordial da mulher era a maternidade, bastaria pensar que o magistério representava, de certa forma, ‘a extensão da maternidade’, cada aluno ou aluna vistos como um filho ou uma filha ‘espiritual’. O argumento parecia perfeito: a docência não subverteria a função feminina fundamental, ao contrário, poderia ampliá-la ou sublimá-la. Para tanto, seria importante que o magistério fosse também representado como uma atividade de amor, de entrega e doação. A ele acorriam aquelas que tivessem ‘vocação’. Esse discurso justificava a saída dos homens das salas de aula – dedicados agora a outras ocupações, muitas vezes mais rendosas – e legitimava a entrada das mulheres nas escolas – ansiosas para ampliar seu universo –, restrito ao lar e à igreja”. (p.450)
Para o diretor Marcos, é justamente por isso que é importante garantir a presença do professor na educação infantil:
É importante para as crianças terem essa referência do homem cuidador e educador. Porque, se não, acabamos reproduzindo eternamente essa ideia da mulher como aquela que é a única que pode cuidar. Ter o professor na educação infantil também é uma maneira de abordar o equilíbrio de tarefas entre homens e mulheres e trazer essas diferentes representações para as famílias e para as crianças, já iniciando esse processo de reflexão sobre as representações de gênero e o que se espera de homens e mulheres na sociedade“.
Marcos Rodrigo da Rosa, diretor da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Francisca Júlia da Silva
Diferentes representações, mais respeito e reconhecimento para todes
A arte-educadora Dandá Costa vai além ao evidenciar que mulheres são essas colocadas na posição de cuidadoras na educação infantil:
Temos uma estrutura na sociedade que imprimiu essa economia do cuidado concentrada não em qualquer mulher, mas nas mulheres cis. Ou seja, ela exclui também as mulheres transgêneros ou os homens transgêneros que não são vistos como possíveis cuidadores ou educadoras em uma escola de educação infantil – ou qualquer outra instância educacional”.
Dandá Costa, arte-educadora
Ela mesma nunca trabalhou na educação infantil. Formada em Letras, teve experiências no ensino formal, mas acabou voltando sua carreira para o trabalho como educadora em espaços não-formais, como Sesc e Fábrica de Cultura. Atualmente, Dandá trabalha no programa municipal de orientação artística da cidade de São Paulo chamado Vocacional.
Acredito que cerca de 10% do quadro de educadores são transgêneros no Vocacional. É bem pouco, mas é um primeiro passo. O fato de estarmos figurando como pessoas de referência nesse espaço, como educadores e educadoras, é importante para que as pessoas ao menos humanizem a nossa existência – que historicamente é desumanizada – e nos dêem um possível respeito – necessário, mas não óbvio, infelizmente“.
Dandá Costa, arte-educadora
Mesmo antes de se enxergar como uma pessoa trans não-binária, Dandá já abordava as questões de gênero nas suas práticas pedagógicas. “Estudando literatura, que é a minha formação, o assunto acaba sendo tratado de forma estrutural. Quantos autores brancos cis são reconhecidos e renomados? E pessoas que estão fora dessa caixinha, quantas têm o seu devido reconhecimento?”, questiona.
Para ela, ter cada vez mais diversidade e diferentes pessoas na posição de educador, docente ou professora se faz cada vez mais necessário – tanto para quem está na posição de quem ensina quanto para as(os) educandas(os).
A pessoa que dá aula, que ocupa esse lugar de docência, está em uma posição de status intelectual, de consideração e de respeito. O professor é respeitado na sociedade – ainda que tenhamos muitos problemas de valorização docente, baixos salários etc. Ou seja, termos pessoas trans nesse lugar de referência intelectual causa um impacto tanto na pessoa que está dando aula, que tem o seu devido reconhecimento, como naqueles estudantes que estão enfrentando questões com o seu próprio corpo e suas relações sociais. Há uma mutualidade nesse impacto, e é nela que conseguimos ir mudando os estereótipos e preconceitos que existem na sociedade“.
Dandá Costa, arte-educadora
Masculinidades na literatura e no contexto escolar: proposta de abordagem
Como fazer para abordar as questões de gênero na sala de aula? Em artigo para o Programa Escrevendo o Futuro, José Victor Nunes Mariano, bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrando na área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, propõe abordar a questão por meio da literatura, trabalhando o conceito de masculinidades.
No texto, ele traz o histórico do conceito, o contextualiza para diferentes situações do cotidiano escolar em que vemos práticas ditas masculinas ou femininas sendo reforçadas e utiliza o romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, como uma maneira de trabalhar essa temática com as(os) estudantes em sala de aula.
“Procuro mostrar, aqui, a urgência do tratamento das relações de poder entre homens e mulheres na escola. Para a hierarquia de gêneros ser devidamente enfrentada na sociedade, é necessário um projeto pedagógico que olhe e problematize as práticas legitimadoras dessa mesma hierarquia“, diz ele.
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