O saudoso escritor e professor Jorge Miguel Marinho louva o imaginário como "força criadora" que nos leva a "prenunciar realidades possíveis e impossíveis".
Ilustração de John Bauer, no livro “Bland Troll tomtar och”, 1913.
Jorge Miguel Marinho*
“O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas. E depois como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo que se identifica basicamente com a sensibilidade poética.“ Carlos Drummond de Andrade
É sempre bom ouvir Drummond – ele acorda em nós a sensibilidade adormecida. Aqui ele faz um alerta voltado para o universo das crianças, mas com palavras que tocam a existência de todos nós. Isso porque o imaginário é um componente essencial da natureza humana e, sendo “a primeira visão direta das coisas”, se torna permanência, motivação, descoberta. É no universo da imaginação que vivenciamos um modo muito singular de perceber mundos conhecidos ou desconhecidos e igualmente, por sua intuição e força criadora, chegamos a prenunciar realidades possíveis e impossíveis que podem muito bem acontecer.
Pena que o imaginário seja tão negligenciado pela filosofia e pelos domínios do conhecimento, sendo por tal razão exilado dos bancos escolares, das instituições e das comunidades de um modo geral – não é exagerado dizer que para muitos o teor indagativo e até mesmo irreverente da imaginação se ofereça como um perigoso desafio. Alguém já afirmou que o homem se torna fantástico quando tenta transcender as próprias limitações humanas.
É evidente também que o suposto descrédito do imaginário resulta de um preconceito: os agentes mais conservadores do saber instituído se recusam ostensivamente a legitimar o casamento entre conhecimento e componentes de natureza lúdica, pela vertente do prazer. Com isso, parecem desconsiderar a dimensão complexa da realidade, que solicita outras vias e formas de sondagem.
Capa (reprodução).
Jacqueline Held, sensível estudiosa do assunto, não pensa assim e afirma:
“A leitura do real passa pelo imaginário”. Nessa trilha, que busca recuperar a dimensão onírica da sensibilidade, ela propõe o entendimento das imagens do mundo “na dupla perspectiva dos sonhos e dos pensamentos.”
Portanto o imaginário não é esquecimento, alienação, jogo de abstrações e de artifícios alegóricos que desviam as pessoas da realidade de fato e configuram a existência humana como matéria da ilusão. O imaginário é motor da vida por se constituir como elemento motivador da experiência interior e componente essencial de toda a criação.
“O grande dragão vermelho e a mulher vestida de sol”, de William Blake, 1805-1810
É bem expressiva a feliz afirmação de William Blake para situar a amplitude desse modo de pensar imaginando e imaginar pensando:
“A imaginação não é um estado. É toda a experiência humana.”
A distância no tempo e no espaço, essas palavras de Blake dialogam com a sensibilidade crítica e criativa de Giordano Bruno, que acolhia todas as formas de expressão, identificando componentes mágicos no modo de percepção e entendimento do real. Para ele, a razão tem lugar de destaque, mas não pode ser considerada a maior e muito menos a única referência do pensamento.
Portanto o imaginário não é o vilão da inteligência lógica, mas, por natureza, vai sempre além da interpretação intelectual porque identifica, apreende e recria o real. Mais que isso, o imaginário cria outra lógica, que desafia e por vezes subverte a lógica formal – em síntese, reorganiza o mundo.
Estando nas mais diversas maneiras de convivência com o real e nos apelos mais sensíveis da existência humana, na relação lúdica e mágica que tem com a vida, é na arte que o imaginário vai reinar soberanamente – é nesse território que o real toma forma e se reinventa como registro, invenção e revelação do tema único e essencial da expressão artística: a condição humana.
Isso significa que viver o imaginário é um modo muito singular de conhecer o mundo e apostar na experiência lúdica, conjugando o universo das intuições com o jogo das formas, transitando pelo referencial e pelo sugestivo, desvendando nos arranjos e nas combinações significativas os sentidos mais incomuns para que a vida rompa com a sua rotina e revele a sua parte melhor, que é a aventura de viver.
Sabendo e sobretudo sentindo que a ficção é realidade e a realidade é ficção, Fernando Pessoa fez do imaginário o motivo e a motivação de toda a sua criação:
“Romeu e Julieta”, de Edith Nesbit, 1858
“Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação.”
Por essa existência tão presente do imaginário na arte, fazemos confidências com Capitu, sonhamos silenciosamente com Fabiano, atravessamos o espelho com Alice, guardamos o segredo de Batman, sapateamos nas estrelas com Ginger Rogers e Fred Astaire, cobrimos a morte de Romeu e Julieta celebrando o sono de todos os amantes, mentimos com Pinóquio como forma de defesa e de preservação das diferenças na experiência de ser e existir.
E, para acentuar a dimensão criativa e iluminadora do imaginário, Guimarães Rosa dá este toque final:
“O que nunca se viu, aqui se vê.”
Foto: arquivo pessoal
* Jorge Miguel Marinho foi professor de Literatura Brasileira com pós-graduação pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador de oficinas de criação literária, dramaturgo, roteirista, ator e pesquisador de componentes lúdicos na crítica literária com os livros Nem tudo que é sólido desmancha no ar – ensaios de peso e A convite das palavras – motivações para ler, escrever e criar. Autor de livros de ficção literária, entre eles, Te dou a lua amanhã – uma biofantasia de Mário de Andrade e Lis no peito – um livro que pede perdão, premiados com o Jabuti. Foi colaborador do Cenpec em diversas iniciativas e colunista mensal na Plataforma do Letramento (Cenpec), de 2013 a 2016.
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