Criando famílias literárias a partir de livros que circulam

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Criando famílias literárias a partir de livros que circulam

Bel Santos Mayer fala sobre o papel da literatura na periferia, a importância de uma formação leitora transformadora e como partir do texto para criar relações humanas

Por Stephanie Kim Abe

Há quem diga que fofoca é sempre ruim. Mas a hashtag #fofocaliterária está aí nas redes sociais há alguns anos para provar que não necessariamente. 

Não estamos falando de fofoca sobre a vida de autoras e autores, mas de suas personagens. Na rede social TikTok, ela tem mais de 200 milhões de visualizações e aparece como um recurso das(os) chamadas(os) booktokers, pessoas que buscam influenciar suas(seus) seguidoras(es) a ler uma obra. 

Em vídeos curtos, típicos dessa rede social, as(os) booktokers contam partes instigantes do enredo como se fossem acontecimentos de suas próprias vidas – e daí revelam de qual livro a história faz parte, para que as pessoas interessadas o leiam. 

Os exemplos abaixo dão uma ideia de como esses vídeos funcionam:

Fofoca que faz livro circular 📖

A educadora social Bel Santos Mayer também é adepta de uma boa fofoca literária. Não dessa on-line, que se encontra por hashtag. Mas daquela que a gente faz ao vivo, trocando ideia com a amiga no ponto de ônibus, na mesa de bar, em um clube de leitura ou numa roda de conversa.

Uma das mais recentes fofocas que iniciou foi sobre o livro O peso do pássaro morto (Editora Nós), da autora paulistana Aline Bei:

Foto: acervo pessoal

Contei para uma das jovens da nossa Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura sobre como eu não conseguia dormir enquanto não terminava de ler o livro. Eu precisava entender o que acontecia com a vida dessa mulher, que sofre diversas perdas ao longo da sua vida. Eu fiquei muito impactada. Ficamos conversando sobre a obra como se a personagem fosse uma amiga nossa, como se estivéssemos falando do que passa na vida de uma pessoa que conhecemos”, conta.

Bel Santos Mayer, educadora social

O livro foi de Bel Santos para a jovem Ketlin, que o leu de uma só vez na longa viagem de ônibus entre a faculdade e sua casa em Parelheiros, bairro periférico da zona sul de São Paulo. “Ela me disse que não parava de chorar lendo o livro, e queria emprestar para uma amiga dela. Eu deixei, claro”, disse Bel. A obra circulou na mão de oito jovens naquele mês. 

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Livros que nos tocam e chegam a todos os lugares

A forma como O peso do pássaro morto circulou mostra, na opinião de Bel Santos Mayer, a força da literatura:

Aline Bei não é uma mulher periférica, mas escreve um livro que mobiliza todas as mulheres, de todos os estratos sociais. É algo inesquecível quando uma história bem contada nos ajuda a nos ver como no espelho, a nos entender e também a construir conexões com outras pessoas. Não só esse, mas muitos livros têm o valor de gerar isso, essa construção de uma família literária em torno deles pela forma como a(o) autora(r) nos toca”.

Bel Santos Mayer, educadora social

Essa fofoca literária também sinaliza que, ao contrário das perspectivas pessimistas ou dos preconceitos, as periferias lêem – e têm o direito de acessar os livros.

Os dados da última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgados em 2020 com dados de 2019, comprovam isso: em números absolutos, as(os) leitoras(es) brasileiras(os) são da classe C, D e E (70 milhões) e de renda familiar entre um e cinco salários mínimos (76,3 milhões).

A primeira biblioteca de Parelheiros foi justamente a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, da qual Bel Santos Mayer foi uma das criadoras. 

Biblioteca Caminhos da Leitura

Os ‘caminhos da leitura’, como o próprio nome da nossa Biblioteca Comunitária diz, são irreversíveis. Em 2010, só ela existia na comunidade. Hoje, são cinco bibliotecas comunitárias e uma biblioteca pública no CEU Parelheiros. Precisamos de mais, porque o nosso sonho é que todo mundo consiga chegar a pé a uma biblioteca. Afinal, pegar transporte público é caro e você só faz isso se já for leitor da palavra”, diz. 

Bel Santos Mayer, educadora social

A Caminhos nasceu de uma demanda da juventude da comunidade, instalou-se primeiro em um canto da Unidade Básica de Saúde (UBS) e criou morada por muitos anos na casa do coveiro do cemitério do bairro.

Toda essa história incrível é contada no livro Parelheiros, Idas e Vi(n)das Ler, viajar e mover-se com uma biblioteca comunitária, escrito por Bel.

A educadora social pontua que, para além de ser uma garantia de direitos, o incentivo à leitura nas periferias traz diversos benefícios para o mercado editorial e para todas(os) as(os) leitoras(es):

A palavra escrita demorou para chegar para nós da periferia como um direito humano. Ainda que a ‘oralitura’, como diz a professora Leda Maria Martins – ou seja, a história oral, as narrativas –, estivesse presente nas nossas casas, tivemos que conquistar a duras penas o direito à escrita. Quando conseguimos isso, prolongamos a vida dos livros, novas editoras independentes começaram a ser criadas e novas narrativas vieram arejar a literatura nacional”, explica. 
Bel Santos Mayer, educadora social
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Leitoras(es) que incentivam outras(os) leitoras(es)

Bel Santos Mayer tem uma intensa trajetória de luta pelo direito à literatura e de acesso aos livros. Hoje coordenadora de projetos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário Queiroz Filho (IBEAC) e co-gestora da Rede de Leitura LiteraSampa, ela chegou a trabalhar como professora na rede municipal de São Paulo e como consultora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

Bel é mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Turismo (EACH/USP) e já teve seu trabalho reconhecido por diversos prêmios, como o Retratos da Leitura no Brasil (2018) e o 67° Prêmio APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes na categoria Difusão de Literatura Brasileira.

Abaixo, ela responde três perguntas do Portal Cenpec sobre incentivar as(os) crianças e adolescentes a ler, como deve ser uma formação leitora transformadora e que estratégias as(os) educadoras(es) podem usar para promover a leitura e os livros no ambiente escolar. 

Portal Cenpec: Como despertar o gosto da leitura e o prazer de ler?

Bel Santos Mayer: O mais importante é expor as pessoas aos livros. 

Precisamos encontrar os livros nos lugares em que passamos. Se tiramos as livrarias de rua e investimos apenas em livrarias de shopping, as barreiras para chegar a ela são muito maiores. Você tem que passar pelo segurança, por uma porta, outra porta, resistir ao apelo do mercado para você comprar outras coisas, e, lá no fundo, no último andar, acessar a livraria. Então temos que incentivar as livrarias de rua, ter bibliotecas comunitárias, de acesso público (sejam elas custeadas com recursos públicos ou privados). 

Precisamos também ter o gesto da leitura, ou seja, ver mais pessoas lendo, cada vez mais. Passamos tanto tempo em filas de ônibus ou na viagem de trem ou metrô até o trabalho, por que não estamos fazendo esse gesto? Precisamos ver as pessoas lendo nas novelas, nas praças, nas escolas, no trabalho, no transporte público. Esse gesto é importantíssimo. 

Além disso, não podemos abandonar aquela criança que antes era incentivada a ler, e agora que é adolescente acaba por ter que se virar sozinha. Conseguimos conquistar já o lugar do livro que chega como presente nas famílias, ou seja, de pais, tios, avós que presenteiam os filhos com literatura, em vez de apenas livros ou roupa. Isso é importante, porque os títulos passam a entrar naquele lugar de expectativa. Mas isso costuma acontecer com as crianças pequenas, que também têm a companhia dos pais para ler junto. 

Parece que deixamos o adolescente solto para ler sozinho, para ver a leitura como uma obrigação, como se ler fosse só uma questão de aquisição da ferramenta. E não é. Leitura é prazer, é contato, é proximidade, é compartilhamento. E isso nós todas(os) queremos em qualquer idade.

Resumindo, eu diria que é preciso ter livros em todos os lugares; não abandonar o leitor ou a leitora; considerar essa troca que os corpos proporcionam no momento da leitura; e espalhar esse gesto do ler.

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Portal Cenpec: Que dicas você daria para educadoras(es) sobre como incentivar a leitura com as(os) estudantes? 

Bel: Primeiro, retomando a questão do trabalho com as(os) adolescentes e jovens que fazemos na Biblioteca Comunitária, a coisa que mais gostamos de fazer é sentar e ler juntos. Chegamos a passar uma, duas horas lendo juntos. Já lemos livros como Eles eram muito cavalos, de Luiz Ruffato; Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves; Olhos d’água, de Conceição Evaristo; As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino. 

Quando emprestamos a nossa voz para ouvir o outro, lendo e dando esse presente da leitura, percebemos que entendemos melhor o porquê da leitura atravessar os corpos. Ela não é uma palavra que está colocada ali como obrigação para saber se você entendeu o que o autor queria dizer ou definir os personagens. 

Nós também fazemos muitas fofocas literárias. Lemos para poder conversar sobre as personagens, colocá-las nas nossas vidas. Acho que é algo que funciona muito com as(os) jovens.

Outra estratégia é procurar as experiências mais bacanas e novas que estão acontecendo com a literatura. Procurar descobrir quem são as(os) adolescentes e jovens que têm colocado a literatura em suas vidas. 

Recentemente, estive na Bienal do Livro no Rio de Janeiro e tive contato com os booktubers e booktokers. Eles resumem a história em um minuto. Mais do que arrancar o celular da mão da turma, é entender o que esse pessoal tem feito com a literatura nas redes sociais. Isso pode servir, às vezes, como um ponto de partida para irmos até o livro e então o lermos juntas(os). 

Ou pegar outras referências atuais para as juventudes, por exemplo, no universo musical. O rapper Emicida faz um trabalho literário incrível, rico de profundidade, análise sociológica e conteúdo literário. Por que não usar suas obras – ou usá-lo como ponto de partida? O que o Emicida lê? Podemos sair dali para ler outras coisas.

Eu vivo no Brasil que lê, no Brasil que tem jovens que são leitores, e que choram, que se emocionam lendo textos, que se emocionam encontrando as(os) autoras(es), que têm coragem de ir para as redes sociais escrever para elas(es) e dizer o quanto a sua literatura o arrebatou, a arrebatou. Então, é importante que as(os) educadoras(es) lembrem que a literatura é encontro e relação, não é só o texto.

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Portal Cenpec: No IBEAC, vocês atuam a partir de três princípios: formação, atuação em território e transformação. Como fazer para que a formação leitora seja de fato transformadora, não só pessoalmente na vida de cada pessoa, mas para toda a sociedade – por exemplo, de forma a combater as desigualdades?

Bel: Eu costumo falar de formar leitoras(es) sustentáveis. Na questão ambiental, a sustentabilidade não é aquele hotel que pede para a(o) hóspede usar a toalha mais algumas vezes, mas não faz a coleta seletiva. Isso é uma farsa, certo? 

No caso das(os) leitoras(es), a ideia não é formar pessoas preocupadas em passar no Enem apenas. A(o) leitora(r) sustentável é aquela(e) que tem uma atitude leitora, que sabe que um livro puxa o outro, e que você nunca vai conseguir ler todos os livros para a sua formação, porque você sempre estará precisando de outras palavras que te ajude a olhar e a dizer o mundo. 

Uma formação leitora para transformação pessoal e dos territórios e das comunidades deve ter alguns princípios. 

Primeiro, precisa ser uma formação permanente. 

Porque somos pessoas diferentes, com gostos e interesses diferentes, é preciso ter o máximo de diversidade possível, que pode ser: 

– bibliodiversidade, que seria a diversidade de autorias: autorias indígenas, negras, femininas, periféricas, contemporâneas, clássicas. 
– de gênero literário: há quem goste mais de teatro, outros que gostam mais de romance, novela, poesia. 
– geográfica: livros traduzidos da África, da América Latina, da Ásia.
– de suporte: ter lambes lambes nas ruas, realizar saraus, etc. Afinal, quem ainda não é eleitor da palavra não pode ser privado daquilo que já está nos livros.


Neste último caso, por exemplo, chamo atenção para uma iniciativa do IBEAC no Parque Augusta, centro de São Paulo, em que fizemos o Banco Sonoro Carrossel de História. O banco foi feito em eucalipto pelo artista plástico Hugo França e tem mais de três horas de histórias narradas. 

Isso tudo é essencial para a gente conseguir ter uma literatura para toda gente. É o que temos feito em Parelheiros há 15 anos, buscando espalhar a palavra dentro dos territórios, levando a literatura para cada espaço, porque acreditamos que a literatura, as metáforas, os sonhos, as palavras que a gente encontra para falar sobre nós e sobre aquilo que a gente vê – e até sobre aquilo que a gente nem sabe que está em volta da gente – são transformadoras.

Veja a entrevista de Bel Santos Mayer para a revista Na Ponta do Lápis (julho/2020)


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