Bibliotecárias(os): grandes magas(os) da informação
Conheça a trajetória de duas bibliotecárias, as possibilidades de atuação e o caráter transformador dessa profissão, grande aliada da educação
Por Stephanie Kim Abe
Engana-se quem pensa que bibliotecária(o) é só quem trabalha na biblioteca. Ela(e) é muito mais do que isso. Essa(e) profissional trata de informações, em qualquer suporte que elas se encontrem (ou seja, não só livros), para torna-las acessíveis ao público final. Nas palavras de Ketty Valencio: “somos os magos da informação”.
Ketty é bibliotecária do Sesc Osasco e dona da Livraria Africanidades, que fica no bairro de Cachoeirinha, periferia da zona norte de São Paulo (SP). A livraria foi um sonho que, depois de muito esforço e dedicação, se tornou realidade, fruto de uma trajetória sempre ligada à cultura, aos livros e ao amor pelas bibliotecas.
Já para Thaís dos Santos Rodrigues, a escolha pela biblioteconomia foi quase um acaso, não premeditada. Mas ela se encaixou na profissão e hoje é bibliotecária da Ilha Literária, uma rede que integra 17 bibliotecas comunitárias espalhadas por 11 bairros periféricos de São Luís, capital do Maranhão. Surgida em 2016 por meio da união de duas redes leitoras (Ler pra Valer e Terra das Palmeiras) para fortalecer o território, a Ilha Literária faz parte hoje da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias. Ela divide o trabalho com outra bibliotecária, ficando responsável por assistir 9 das bibliotecas da rede.
Para comemorar o Dia da(o) bibliotecária(o), celebrado em 12/3, contamos abaixo um pouco sobre a trajetória dessas duas profissionais e a importância do trabalho que exercem nos territórios que atuam e para a formação de leitoras(es) no geral.
Confira!
Entrevistas: Bibliotecárias e a revolução no silêncio
Portal Cenpec: Como surgiu o seu interesse pela biblioteconomia e quais as experiências profissionais você já teve ao longo da sua carreira?
Foto: arquivo pessoal
Ketty Valencio: Desde a adolescência, eu sempre frequentei biblioteca para fazer pesquisas (já que sou de uma geração pré-internet) e ler. Mas eu não sabia o que era biblioteconomia – acho que muita gente não sabe. Eu sabia que queria trabalhar na área cultural e quando eu descobri, por meio da irmã bibliotecária de um amigo, a versatilidade da profissão, como um guarda-chuva muito grande, resolvi ingressar nesse curso.
A biblioteconomia agrega muitas áreas, já que trabalhamos com informação. Não é o formato, como o de um livro, que caracteriza a profissão do bibliotecário, mas sim o fato de ter informação – por isso gosto de dizer que somos os grandes magos da informação.
Apesar disso, eu sempre trabalhei com livros, mas em diferentes áreas: na área de direito, em universidade, em empresas privadas, em biblioteca em escola técnica etc. Assim fui me moldando, e percebendo no que gosto mais de me dedicar, como o trabalho com adolescentes.
Foto: arquivo pessoal
Thaís Rodrigues: Eu escolhi o curso por acaso, não por um interesse específico, mas desde o início eu me identifiquei com o curso. Durante a graduação, estagiei em algumas bibliotecas escolares e biblioteca municipal, mas a minha experiência como bibliotecária mesmo foi com a rede de leitura Terra das Palmeiras, a partir de 2013, e desde então com a Ilha Literária.
Portal Cenpec: Como você vê a importância da sua profissão e do trabalho que você faz?
Ketty Valencio: A biblioteconomia é um universo mágico mesmo! Ser bibliotecária é mais do que ser uma mediadora da informação, porque as informações têm poder.
Eu sempre tive essa preocupação com o cuidado da informação. Ao filtrá-la e manipulá-la, nós podemos determinar o apagamento de ideias ou invisibilizar uma obra, assim como promover a ascensão e visibilidade de certos povos e pensamentos.
Estamos em um espaço político que muda a sociedade. Sabendo ativar ou atuar nessa função política, as(os) bibliotecárias(os) podem mudar muita coisa. Com isso, fazemos uma revolução no silêncio, que as pessoas nem percebem.
Abrir a minha Livraria Africanidades foi uma resposta a uma certa angústia que eu tive durante a graduação, de não ver a interseccionalidade e a representatividade que eu acreditava serem importantes e de fazer um trabalho decolonial mesmo.
Quando eu atuava nas bibliotecas, gostava de ouvir as(os) jovens, entender o cotidiano delas(es) e pensar obras que tivessem a ver com o dia a dia deles, numa perspectiva bem de Paulo Freire e bell hooks. Muitas vezes, eu tinha que convencê-las(os) de que aquele autor ou livro poderia fazer a diferença para elas(es), ser importante, mesmo que fosse de uma visão eurocêntrica. Era um trabalho de formiguinha, de fazer essas(es) adolescentes entenderem que têm todo o direito de fazer parte desse universo literário, não somente como um agente passivo, mas com autoria e autonomia.
Na livraria, o esforço que tenho que fazer é menor. Ainda tem o trabalho de mediação, claro, mas percebo que as pessoas que entram aqui já têm certa visão crítica, sabem mais ou menos o que querem ler.
Thaís Rodrigues: Uma das coisas mais importantes do que fazemos, e que eu aprendi trabalhando na Ilha Literária, é a incidência em políticas públicas. Desde que éramos uma rede leitora, estamos lutando por um Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca. Nós participamos de seminários municipais e estaduais, temos assento nos conselhos de cultura e no Fórum Permanente do Livro e Leitura do Estado do Maranhão, estamos em audiências públicas na Câmara dos Vereadores etc.
Buscamos mostrar para o poder público que ele precisa sim dar atenção para essa temática. As bibliotecas comunitárias dão uma cara nova ao bairro – e as nossas são diferenciadas, porque elas não são lugar de silencia. São espaços de diálogo, de troca de ideias. É proibido pedir silêncio dentro das nossas bibliotecas.
Para a comunidade, uma vez que estamos em um território, buscamos mostrar a ela que o espaço está aberto para atender à sua demanda por cultura.
Fazemos atividades de formação e mediação, como projetos de leitura, oficinas, palestras, poesia de porta em porta, sala de leitura, cantinho de leitura etc. Quando as pessoas se envolvem, elas passam a participar, opinar, dar sugestões, se tornam leitoras e também voluntárias.
V Seminário Ilha Literária, 2018. Foto: reprodução
Um dos eventos mais legais é o mutirão de classificação. As(os) voluntárias(os) que participam vão entendendo mais sobre as obras, por que elas são importantes, qual o seu gênero literário, como encontrá-las no acervo etc. Elas(es) entendem os processos que desenvolvemos dentro da biblioteca e se apropriam dela.
Assim, estimulamos a gestão compartilhada, em que todas e todos que fazem parte da Ilha Literária sabem como ela funciona, ajudam a escrever projeto, identificam do que o espaço precisa etc.
Portal Cenpec: Como ampliar o acesso aos bens da cultura letrada, no sentido de combater as desigualdades, nas regiões periféricas?
Livraria Africanidades lança clube de assinantes com curadoria de autoras negras, 2020. Foto: reprodução
Ketty Valencio: Primeiro, as políticas públicas não veem a literatura como um direito das(os) jovens da periferia, principalmente das pessoas pretas. Elas as(os) marginalizam, as(os) veem apenas como ameaças. As(Os) jovens não podem tocar nos livros, não podem frequentar a biblioteca, não podem levar os livros da sala de aula pra casa.
Mas existe muita cultura nas periferias. Aqui nas quebradas de São Paulo, vemos saraus, poesias, slams, iniciativas culturais. A periferia lê e se interessa muito sim. E essas iniciativas todas que vemos por aí de incentivo à leitura, de bibliotecas comunitárias ou livrarias em bairros da periferia deveriam ser políticas governamentais. Estamos atuando na deficiência do Estado.
A falta de acesso à literatura tem relação com o não atendimento às necessidades básicas (alimentação, saúde, direitos em geral) de grande parte da população. Se a pessoa não tem o que comer e a barriga está roncando, como ela vai pensar em ler um livro? É o que acontece nas escolas, com estudantes que não são bem alimentadas(os) e não conseguem aprender.
Eu defendo que os livros deveriam estar dentro da cesta básica. Eles são o alimento da alma, são essenciais. Imagina colocar um livro da Carolina Maria de Jesus, uma autora que fala da fome, dentro da cesta? O quanto essa obra dialogaria com as pessoas!
Thaís Rodrigues: Acho que o primeiro ponto é que o preço do livro afasta as pessoas da leitura. Não é que o povo brasileiro não gosta de ler, mas ele não tem acesso ao livro. Para as pessoas das comunidades periféricas, comprar um livro se torna mais difícil. É oneroso. Elas precisam deliberar, dentro do seu orçamento, o que priorizar – e aí o livro acaba ficando em último lugar.
“Anjos Griot: guardiões da memória” é premiado pelo governo do Maranhão, 2021. Foto: reprodução
É preciso garantir espaços de bibliotecas comunitárias. E não só isso: elas precisam ser um espaço acolhedor, com um acervo atraente de livros de literatura (que não tenha só livro didáticos, por exemplo).
As pessoas precisam se ver como parceiras, voluntárias e se apropriar desse espaço, podendo sugerir títulos e participar de fato da manutenção e do cuidado desses equipamentos. Assim, a vontade e a curiosidade pela leitura afloram!
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