O saudoso escritor Jorge Miguel Marinho traz os cheiros e sabores da infância em um texto que rescende a poesia. Publicado originalmente na Plataforma do Letramento.
Por Jorge Miguel Marinho*
O Rafa, um menino do tamanho de 8 anos, tinha muitos sonhos. Todos, sonhos muito grandes. Ser filho do Tarzan, conseguir passar por debaixo de um arco-íris e ficar uma coisa maior do que ele. Entrar no rádio da sua casa e virar Oliver Twist ou qualquer outro garoto de novela, fazer a boneca da sua melhor amiga falar e conversar com ela à noite, de luz apagada, para ela não se assustar com o seu próprio medo de coisa nenhuma. Cuspir um cuspe tão grande e veloz que acertava e apagava estrelas, e muitos, muitos outros sonhos. Todos, muito grandes. Só tinha um sonho pequeno mas, de tão sonhado que era, ficou sendo o maior de todos.
Comer banana-maçã. Que cheiro bom! Que gosto havia dentro do que havia dentro da casca? Comer banana-maçã era seu sonho mais introspectivo. Tão profundo que crescia lá dentro dele e ele ficava grande, vulcânico. Se sentia uma ameaça, um perigo bom e iminente, um recipiente íntimo e profundo, cheio de labaredas e lama escaldante que afloravam na superfície da pele. Uma pulsão magnética, tão contida e interior que um dia daria numa explosão, com cheiro de maçã e gosto de banana que ele sabia e não sabia.
Rafa já entendia a natureza dos vulcões, só faltava comer banana-maçã. Ele era um garoto muito pobre, pobre de um dia ou outro passar fome sabendo que, de algum lugar do mundo, comida sempre viria. E vinha. Era muito pobre o menino, mas não era por isso que nunca chegava o dia de comer banana-maçã. Banana-maçã tinha na feira, na quitanda, na casa de todo mundo, menos na sua. Banana-maçã estava ali muito perto. Bastava abrir a mão, fechar os olhos e aquela fruta tão possível podia cair do céu, porém banana-maçã nunca acontecia.
E por quê? Porque o menino havia nascido para viver a parte horrível do acaso. Quando a mãe tinha dinheiro, banana-maçã não havia e, quando havia banana-maçã, dinheiro não tinha. E o acaso maior é que nunca coincidia de brincar na casa de um amigo onde numa fruteira qualquer seu sonho podia existir como delícia tocável. Isso ele nem imaginava, era muito pouco pragmático, e esta era a sua maior pobreza.
Mas um dia aconteceu e, como todo sonho, grande ou pequeno, veio assim do acaso que também faz parte da natureza das mães e da vizinhança mais distraída:
− Rafa, você não quer comer essas três bananas, menino? Têm gosto de maçã bem docinha e vão estragar porque esses meus meninos aqui nunca comem direito.
Pegou as três delícias e não era verdade, era e não era, não podia ser, mas tinha cheiro de maçã e aquela curvatura macia, familiar, exatamente amarela, envolvendo a polpa, então era o seu sonho na mão, agora sim, tocável.
Agradeceu, saiu correndo, entrou no quarto, trancou a porta à chave, fechou e abriu os olhos, pôs as bananas debaixo do travesseiro, fingiu que elas não existiam para de repente se lembrar delas e ficar mais contente. Ficou sentindo o cheiro, mais vulcânico, quase explodindo. Pegou uma e, sem saber bem o porquê, por puro acaso, resolveu primeiro comer a casca e adiar, por um momento, o de dentro com a certeza da delícia que havia nas coisas sonhadas, na sua porção mais profunda, no âmago.
Comeu a casca, nem chegou a sentir bem o gosto porque aflorava na doçura travosa, pouco importava, de uma promessa gustativa.
Mordeu a banana polpuda e generosa com cheiro de maçã e então, com a matéria pastosa na boca, provou o gosto gosmento do nada. O de dentro.
Permaneceu um longo tempo olhando as outras duas, com a terceira banana na mão, inútil, fenecendo no calor do tato, derretendo, sumindo, agora com um forte odor de coisa nenhuma.
Foi então que, na sua revolta mais vulcânica, cuspiu o que havia dentro da boca com o ódio mortal dos sonhadores traídos e nem assim conseguiu acertar e apagar uma estrela. Não por acaso, era dia.
* Em vida, Jorge Miguel Marinho foi professor de Literatura Brasileira com pós-graduação pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador de oficinas de criação literária, dramaturgo, roteirista, ator, pesquisador de componentes lúdicos na crítica literária com os livros Nem tudo que é sólido desmancha no ar: ensaios de peso e A convite das palavras: motivações para ler, escrever e criar, autor de livros de ficção literária, entre eles, Te dou a lua amanhã: fantasia biográfica sobre Mário de Andrade e Lis no peito: um livro que pede perdão, premiados com o Prêmio Jabuti.
O Portal Cenpec usa cookies para salvar seu histórico de navegação. Ao continuar navegando em nosso ambiente, você aceita o armazenamento desses cookies em seu dispositivo. Os dados coletados nos ajudam a analisar o uso do Portal, aprimorar sua navegação no ambiente e aperfeiçoar nossos esforços de comunicação.
Para mais informações, consulte a Política de privacidade no site.
Para mais informações sobre o tipo de cookies que você encontra neste Portal, acesse Definições de cookie.
Quando visita um website, este pode armazenar ou recolher informações no seu navegador, principalmente na forma de cookies. Essas informações podem ser sobre você, suas preferências ou sobre seu dispositivo, e são utilizadas principalmente para o website funcionar conforme esperado.
O Portal Cenpec dispõe de cookies estritamente necessários. Esses cookies não armazenam informação pessoal identificável. Eles são necessários para que o website funcione e não podem ser desligados nos nossos sistemas.
Any cookies that may not be particularly necessary for the website to function and is used specifically to collect user personal data via analytics, ads, other embedded contents are termed as non-necessary cookies. It is mandatory to procure user consent prior to running these cookies on your website.