"A Rua da Esperança", de Jorge Marinho

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“A Rua da Esperança”, de Jorge Marinho

Memórias literárias do escritor falecido. Texto publicado originalmente na Plataforma do Letramento em 2015

O Portal CENPEC homenageia o amigo e escritor falecido ontem em São Paulo, recordando um de seus textos desenvolvidos para o trabalho educativo da nossa organização.

Eu estava querendo conversar com meu avô, mas ele estava com um livro na mão e já não me escutava direito. Engraçado é que ele tinha desaprendido a ler e eu nunca tinha visto meu avô com um livro, mas nesse dia parecia que ele sabia ou adivinhava o que havia dentro do livro. Acariciava a capa, percorria com o dedo indicador a lombada, gostava de cheirar o livro com os olhos fechados, abria uma página ao acaso, passava o dedo na língua para virar uma outra página, sentia o gosto do papel, acho que até ouvia o silêncio ou o barulho das palavras.

Às vezes, ficava quieto um tempão com o livro na mão, só olhando para a janela, acho que lembrando lá longe, no passado. Perguntei depois de um tempo imenso: “Vô, você está pensando o quê?”. E ele respondeu: “Quem lembra sempre põe os olhos lá longe.

Hoje eu estou lá longe. Lá na Rua da Esperança, que fica dentro de um bairro chamado Tucuruvi, que é um lugar dentro de São Paulo. Eu tenho sete anos e um pouco mais de tempo, e o Tucuruvi é lá longe, no final dos anos cinquenta, no século passado, é longe demais, é quase uma aldeia. Para ir ao centro da cidade e ver o Anhangabaú, a gente tem de andar três quilômetros só para pegar o ônibus. Mas não cansa, não cansa andar na Rua da Esperança, que é longe como um caminho sem fim.

Estação Tucuruvi no início do século XX

Hoje é antigamente, hoje é passado, hoje é só memória.” Por isso acho engraçado me lembrar agora do meu avô, do passado dele, igual como se fosse agora – sem saber se é ele ou se sou eu quem escreve, sem ver direito se é ele que não me olha, sem decidir afinal quem está tão distraído lá no fundo vendo a vida de uma janela.

Lá estou eu de calças curtas, sempre andando na Rua da Esperança, lá longe, lá no antigamente. Tem mais mato do que casa, tem mais terra do que pedra, não tem nenhum prédio para a gente olhar o mundo lá de cima. À tarde as mulheres estão sempre nos portões falando de nós, trocando receitas, cochichando coisas que eu não escuto, inventando o amanhã.

A Rua da Esperança era tão comprida e alegre que sempre tinha um arco-íris dizendo para a gente que nunca dava para passar debaixo dele, porque ele era bem mais longe do que a Rua da Esperança. Daí ninguém virava herói de gibi, cavaleiro da Idade Média, filho do Tarzan, garoto alado montado num alazão, me lembrei disso tudo agora.

Parece que você tem a maior saudade do passado lá longe, vô! Fala mais dele”, eu pedi bem baixinho. Ele me olhou e parece que foi mais longe ainda. Abraçou o livro, mas foi como se começasse a contar a história que estava dentro do livro…

Contou mais para ele do que para mim e é por isso que eu me lembro lembrando dele, sem saber direito de quem é esta voz:

A Rua da Esperança sobe e desce, é cheia de morro. No alto de um morro fica uma escola de madeira só com duas salas – é a minha escola. O banheiro é lá longe, não tem biblioteca e, quando a gente anda, as tábuas fazem barulho dentro da gente. A professora está sempre grávida e está sempre comendo banana como puríssima delícia. Eu imagino que a fruta engravida e o corpo da professora sempre está cheio de gente.

Um dia eu pedi para ela me deixar ir ao banheiro – estava apertado igual dor pulsando dentro de uma pedra. Ela disse que não. Pedi outra vez, ela negou mordendo a banana.

Não houve jeito: mais querendo do que não querendo, urinei nas calças curtas, o mijo foi descendo pela carteira, correndo pelas tábuas como um fio de água dolorida na direção dela, da professora. Parecia uma água benta que, ao invés de perdoar, condena. Ela, a professora, ficou branca, estatelada, com a banana assustada na boca.

E daí, vô, o que você fez?”, perguntei agora para mim supercurioso, quase implorando. Acho que meu avô nem me ouviu, mas eu escutei:

Eu saí, fugi, fui embora. Comecei a correr pela Rua da Esperança, que era muito comprida, cheia de mato, com pequenas ovelhas nos campos, toda ela só com subida e descida que ia até a Via Dutra e levava a gente lá para longe, onde se pode urinar e ser livre. Livre como passarinho dentro do vento, que era justamente como eu me sentia correndo pela Rua da Esperança, que fica dentro de um bairro chamado Tucuruvi, que é um lugar dentro de São Paulo, que até hoje ainda mora dentro de mim.

Meu avô fechou os olhos bem calmo, acho que dormiu. Eu também fechei os olhos e fiquei me sentindo como um pássaro muito solto, assoprado pelo vento, subindo e descendo na Rua da Esperança.

Depois eu peguei o livro que não queria se desprender da mão direita do meu avô, comecei a ler com dificuldade e só fiquei na primeira página, porque não havia nada escrito sobre a Rua da Esperança e nem sobre o meu avô. Acho que meu avô era um decifrador de palavras – tem gente que lê histórias que nem existem, sem saber o sentido das palavras, mas precisam ter sempre um livro nas mãos para acreditar numa história que vive se contando dentro da cabeça.

Não sei até hoje o porquê de toda esta história, mas a Rua da Esperança lá na imaginação minha e do meu avô, junto com a história que ele adiava porque eu podia ler e ele não pediu, não queria, não quis – esta Rua da Esperança foi o meu primeiro livro.


Professor de Literatura Brasileira com pós-graduação pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador de oficinas de criação literária, dramaturgo, roteirista, ator, pesquisador de componentes lúdicos na crítica literária com os livros Nem tudo que é sólido desmancha no ar – ensaios de peso e A convite das palavras – motivações para ler, escrever e criar, autor de livros de ficção literária, entre eles, Te dou a lua amanhã – uma biofantasia de Mário de Andrade e  Lis no peito – um livro que pede perdão, premiados com o Jabuti.