A luta por educação inclusiva continua

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A luta por educação inclusiva continua

Ainda que tenhamos 90% das(os) estudantes da educação especial matriculadas(os) em classes comuns, é preciso avançar na permanência e garantia de melhores condições para estudantes com deficiência; saiba mais

Por Stephanie Kim Abe

O Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (dia 21/09) foi criado por lei em 2005 para chamar atenção para e celebrar a busca por inclusão das pessoas com deficiência e o combate ao capacitismo. 

De lá pra cá, avanços importantes foram conquistados – como a de inclusão de estudantes com deficiência em salas comuns, em contraposição às classes especiais ou escolas especializadas. 

Se, em 2008, quando a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) foi lançada, as matrículas de estudantes com deficiência em classes comuns girava em torno de 54%, em 2022, essa taxa era de 89,9%. 

Em 2022, o Brasil tinha 1,5 milhão de estudantes da educação especial (3,2% do total de estudantes da educação básica).

Karolyne Ferreira, da área de Advocacy e Núcleo de tecnologias do Instituto Rodrigo Mendes, explica o que significa esse aumento substancial de estudantes em ambientes inclusivos e por que isso é importante:

Foto: acervo pessoal

A escola comum reflete a diversidade que tem na sociedade. Quando você sai à rua, vai ao supermercado, você encontra pessoas com características distintas, então a escola tem que espelhar o que a vida em sociedade é. Por isso essa inclusão é bastante importante, não só para os estudantes com deficiência, mas também para todas e todos estudantes estarem juntos, aprendendo e se desafiando nesses ambientes“. 

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Entendendo a inclusão e sua importância

A professora de língua portuguesa Etelvina Lira conta que tinha uma visão bem diferente sobre o que é inclusão. 

Professora há 24 anos na rede municipal de Maués (AM), tendo trabalhado em todas as etapas e localidades, ela lembra de ter se deparado com estudantes com deficiência em suas turmas apenas há cinco anos. 

Foto: acervo pessoal

Não tínhamos essa questão de alunos com deficiência há algum tempo atrás. Tanto que a rede até oferecia formações para educação inclusiva, mas eu nunca quis fazer, assim como meus colegas, porque achava que não tinha nada a ver ou porque era uma área meio desconhecida para nós. Não parecia tão interessante. Abri mão e me especializei em Educação de Jovens e Adultos (EJA), depois na educação no campo”, reflete. 

Etelvina Lira, professora de língua portuguesa

Daniel é o nome do seu primeiro aluno com deficiência, um estudante autista do 9o ano que não gostava de ler, só jogava joguinho no celular. “Logo de cara, eu pensei que precisava estudar, precisava saber trabalhar com ele para que não se sentisse excluído“, lembra.

Mas ela não precisou ir muito além do que já fazia para conseguir resultados: as rodas de conversa do projeto de leitura. 

Toda sexta-feira eu trabalho alguma coisa diferente. Para o projeto de leitura da escola, em que cada ano focava em um livro, eu fazia rodas de conversa. Cada um lia uma parte e falava um pouco do que entendia. Os estudantes falavam e eu ouvia – porque gostam muito de ser ouvidos. O Daniel não falava, mas acredito que estava bem prestando atenção“, conta Etelvina. 

Depois de um tempo, a mãe do estudante quis agradecer pessoalmente à professora pelo trabalho que ela realizou com Daniel. 

Ele se apaixonou pelo livro O Auto da Compadecida, obra que fizemos também a dramatização. A mãe me disse que quase não acreditou quando o viu pela primeira vez na saída da escola com o livro na mão, ao invés do celular“, relata.

Para Etelvina, esse primeiro contato de sucesso foi definitivo para que ela percebesse a importância da inclusão e de estar preparada para fazer esse trabalho com maestria:

Eu comecei a ter um olhar diferente, porque antes eu olhava para as(os) estudantes com deficiência com pena. Passei a olhá-las(os) como as(os) outras(os) alunas(os), com as suas limitações, mas que também tem vontade de brincar, fazer atividades. Eu imaginava a inclusão muito diferente, que seria uma sala só para essas(es) estudantes com deficiência. Mas não, cada uma(um) tem as suas particularidades, e elas(es) têm o direito de estarem ali convivendo com todas(os) as(os) outras(os) estudantes e tendo um acompanhamento maior. Por isso passei a me aperfeiçoar e estudar mais sobre inclusão“. 

Etelvina Lira, professora de língua portuguesa

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Garantir o acesso e a permanência

Etelvina chegou a encontrar com o estudante Daniel alguns anos depois, no ensino médio, quando levava a sua filha para a escola. Ela lembra de ter sido reconhecida por ele e pela mãe como “a professora mais legal de português que ele já teve”. “Eu fiquei muito feliz, porque foi o reconhecimento de que eu fiz a diferença na vida desse aluno com autismo”, diz.

Infelizmente, Daniel não representa a trajetória da maioria das pessoas com deficiência na educação. 

Segundo dados da Pnad Contínua de 2022 do IBGE, existem cerca de 18,6 milhões de brasileiras(os) com 2 anos ou mais com alguma deficiência (8,9% da população). Apenas uma em cada quatro pessoas com deficiência concluíram o ensino médio (25,6%). Entre as pessoas sem deficiência, essa taxa é de 57,3%. 

O analfabetismo também é maior entre pessoas com deficiência (19,5%) do que as pessoas sem deficiência (4,1%), e a conclusão do ensino superior também (apenas 7% para pessoas com deficiência contra 20,9% para as sem deficiência). 

Mesmo entre as(os) estudantes que frequentam a escola, há ainda o desafio da permanência. As taxas de reprovação, abandono e distorção idade-série são maiores entre estudantes da educação especial do que entre as(os) demais – e isso desde os anos iniciais.

Para Carla Mauch, coordenadora geral da ONG Mais Diferenças, há diversos fatores que explicam essas diferenças na trajetória das(os) estudantes da educação especial:

Foto: acervo pessoal

Primeiro, há uma questão cultural, que tem a ver com a pouca percepção da sociedade como um todo de que a educação das pessoas com deficiência é um direito incondicional e irrestrito. Então precisamos avançar para que todas(os) entendam que toda e qualquer criança, adolescente e adulto tem direito à educação. Em segundo lugar, há a questão das práticas capacitistas que ainda prevalecem em escolas e redes de ensino. Ainda que hoje seja difícil negar a matrícula, sabemos que existem mecanismos de discriminação que acontecem no interior das instituições de ensino. E, por fim, a falta de financiamento”.

Carla Mauch, coordenadora geral da ONG Mais Diferenças

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É preciso mais investimento 

Há muito que melhorar nas escolas e nas redes de ensino para garantir uma educação de qualidade para todas e todos, principalmente para as(os) estudantes com deficiência. 

O investimento que precisamos passa por adequação dos espaços arquitetônicos das escolas; pelo desenvolvimento e pela oferta de materiais pedagógicos acessíveis inclusivos (como brinquedos na educação infantil, livros didáticos e literários); pela criação de salas de recursos multifuncionais para garantir o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que também envolve tecnologia assistiva; e, não menos importante, pela formação de profissionais de diferentes áreas”.

Carla Mauch, coordenadora geral da ONG Mais Diferenças

Foi apenas em 2020 que o Censo Escolar passou a coletar dados sobre itens de acessibilidade nas escolas – e eles também estão disponíveis no Painel de Indicadores da Educação Especial do Portal Diversa. 

Cerca de 27% das escolas de educação básica não possuem nenhum recurso de acessibilidade. Mesmo entre aquelas que têm matrículas de educação especial, cerca de 20% não apresenta nenhum desses recursos (rampas, corrimão, banheiros para pessoas com necessidades especiais – PNE, sinal sonoro, piso tátil, elevador etc).

“É importante lembrar que as barreiras físicas são os primeiros impedimentos que as(os) estudantes da educação especial encontram ao chegar na escola. Então é bastante importante ver esse dado para pensar o prédio escolar, pensar o desenho universal e pensar em formas de acolher bem esse público”, lembra Karolyne Ferreira.

Ela chama atenção para as barreiras atitudinais, que são aquelas que não são medidas por dados mas que contam muito na hora de entender como as crianças e adolescentes com deficiência são acolhidas(os) dentro do sistema educacional:

Se o estudante com deficiência chega na escola e é recebido com o olhar atravessado ou um olhar de coitadinho, não é só a sua autoestima que será impactada, mas também a segurança da família em acreditar que essa escola poderá bem atendê-lo. Da entrada da escola à direção, passando por professores e funcionários em geral, é preciso que toda a comunidade escolar se conscientize para não serem capacitistas e romperem com essa barreira atitudinal no atendimento e no trato com os estudantes com deficiência, buscando práticas inclusivas“. 

Karolyne Ferreira, da área de Advocacy e Núcleo de tecnologias do Instituto Rodrigo Mendes

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Formação para práticas pedagógicas inclusivas

O caso da professora Etelvina é representativo da questão da formação docente em relação à educação inclusiva. 

A taxa de professoras(es) regentes de classes comuns com formação continuada sobre educação especial é baixíssima: subiu meros 1,6% de 2008 a 2022 (de 4,2% foi para 5,8%), segundo dados do Inep. Mesmo entre docentes do Atendimento Educacional Especializado (AEE), a formação atinge menos da metade dessas(es) profissionais (44,3%). 

O Censo Escolar contabiliza aqui somente os cursos com carga horária mínima de 80 horas, que aborda temas/conteúdos relacionados ao desenvolvimento de práticas pedagógicas para garantir os serviços de apoio especializado à escolarização de alunos com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades ou superdotação.

É preciso fortalecer o AEE, no sentido desse professor trabalhar de forma colaborativa com o professor regente, para desenvolverem estratégias pedagógicas que auxiliem na eliminação de barreiras. Além de ser importante esse trabalho conjunto, ele pode colaborar para trajetórias de sucesso escolar”, diz Karolyne. 

Karolyne Ferreira, da área de Advocacy e Núcleo de tecnologias do Instituto Rodrigo Mendes

A coordenadora geral Carla Mauch enfatiza que é necessário pensar qual a perspectiva da formação que tem se dado às(aos) docentes, para garantir que a inclusão esteja de fato presente: 

Temos visto que, muitas vezes, ainda prevalece uma formação instrumental, voltada para a perspectiva da educação especial. É quase como se se transpusesse a lógica da escola especial para processos formativos numa escola inclusiva. O que é muito diferente de pensar uma formação, desde a sua origem, na perspectiva da educação inclusiva”. 

Carla Mauch, coordenadora geral da ONG Mais Diferenças

Uma lógica adaptativa seria aquela em que as(os) profissionais de educação recebem formações específicas sobre diferentes tipos de deficiência: ensinar libras para toda a comunidade escolar para trabalhar com estudantes surdos, oferecer formação para trabalhar com estudantes com deficiência intelectual ou visual, de forma a adaptar o currículo para esse público. 

Devemos sim considerar a singularidade, as necessidades e as especificidades de cada estudante, mas é preciso pensar em práticas pedagógicas que acolham todo e qualquer estudante. A educação inclusiva luta para que avancemos nas possibilidades de oferta de práticas muito mais interativas e diversificadas para todos os estudantes, independentemente de terem deficiência ou não“, explica. 

Carla Mauch, coordenadora geral da ONG Mais Diferenças

Se uma criança com paralisia cerebral precisa de uma adequação de um lápis ou caneta para uma atividade, é possível trabalhar essa adequação para todos. Assim, em vez de fazer apenas o desenho em uma folha de papel A4 com lápis, por que não permitir também o uso do carvão e de uma cartolina? Ou talvez o desenho na parede, para mudar a posição em que se está desenhando, ou com um cabo de vassoura? “Dessa forma, estou, como professora, possibilitando diferentes experimentações acerca da representação gráfica para todos os estudantes. São as multisensorialidades, e não uma única forma“, diz.

Para que isso aconteça, é preciso investir em processos de planejamento:

Uma aula diversificada não brota do nada. É um trabalho de estudo, de ampliação de repertório dos educadores, de produção de materiais para que a gente garanta muitas formas de acessar o mesmo conteúdo e conhecimento, pensando muito no Desenho Universal da Aprendizagem. A formação deve trabalhar como desenvolver uma prática pedagógica e um currículo que acolha múltiplas possibilidades de aprender – e de ensinar, portanto –, partindo muito mais de uma lógica de práticas pedagógicas acessíveis, diversificadas e inclusivas do que práticas pedagógicas adaptadas, que colocam os estudantes em caixinhas e focam em suas incapacidades“.

Carla Mauch, coordenadora geral da ONG Mais Diferenças

Entenda os princípios para a construção de materiais para uma educação inclusiva


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