Deixa que Eu Conto: narrativas e brincadeiras em tempos de pandemia

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Deixa que Eu Conto: narrativas e brincadeiras em tempos de pandemia

UNICEF lança programa de podcasts com narrativas e brincadeiras com foco na cultura amazônica. A série é dirigida a crianças de 0 a 8 anos e suas famílias. Confira entrevistas com os apresentadores Andrea Soares e Leandro Medina, e com a oficial de educação no UNICEF Brasil, Julia Ribeiro

Murucututu, a coruja grande, Cachinhos de ouro, A cabaça encantada, João e o pé de feijão, A criação do mundo… Contos, mitos e brincadeiras da tradição oral brasileira e de outras origens culturais ganham asas na voz de artistas da palavra para chegar aos ouvidos de meninas e meninos de todo o Brasil.

Essa é a proposta da série Deixa que Eu conto, um programa diário de rádio com histórias e brincadeiras para crianças em idade de frequentar a Educação Infantil e em alfabetização. A iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) busca contribuir para a manutenção das aprendizagens durante o período da pandemia de Covid-19 e pós-pandemia. A ideia é promover a interação entre crianças e adultos no ambiente familiar por meio das narrativas gravadas em áudio.

Imagem de uma adulta com um personagem nas mãos enquanto conta história para uma criança, que também carrega uma personagem nas mãos enquanto ouve as narrativas.
Foto: UNICEF/reprodução

“Deixa que Eu Conto foi pensado para alcançar todas as famílias, levando em consideração as diferentes realidades brasileiras”, afirma Ítalo Dutra, chefe de Educação do UNICEF no Brasil.

Com as escolas fechadas, há o risco de o isolamento social agravar as desigualdades nas aprendizagens, impactando especialmente meninas e meninos em situação de maior vulnerabilidade – entre eles, moradores de comunidades e periferias, indígenas e quilombolas, e crianças com deficiência.”

Ítalo Dutra, chefe de Educação do UNICEF no Brasil
Símbolo podcast | Ícone Gratis

Os podcasts e vídeos da série estão disponíveis nas redes sociais do UNICEF: site, Facebook, Youtube e Spotify. Os arquivos em áudio podem ser baixados gratuitamente e transmitidos por rádios de todo o Brasil. Organizados em quadros com contação de histórias, músicas e brincadeiras, entre outros conteúdos, os programas podem ser editados pela emissora de acordo com sua programação e tempo disponível.


Cultura amazônica em cantos e contos

Em celebração ao Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, foi lançado o Deixa que Eu Conto Amazônia. Na série, os artistas Andrea Soares e Leandro Medina trazem histórias indígenas, ribeirinhas, quilombolas e saberes da região. O especial já conta com cinco episódios: A criação do mundo; A origem da noite; Poriokopô, a panela de barro; Wató, a Pedra do Fogo; e A origem do açaí.

Ouça um dos episódios:


Confira os podcasts e vídeos da série Deixa que Eu Conto no site, Facebook, YouTube ou Spotify do UNICEF Brasil


Narrativas: saber com sabor de imaginação

Confira a seguir a entrevista com a pesquisadora de culturas tradicionais Andrea Soares e o educador paraense Leandro Medina.

Portal CENPEC: Qual a importância da narração de histórias para crianças, especialmente neste momento?

Pintura de John Everett Millais, óleo sobre tela, 1870. Um marinheiro conta ao jovem Walter Raleigh e seu irmão histórias da vida no mar.  Imagem: Wikipedia/reprodução
John Everett Millais, óleo sobre tela, 1870. Um marinheiro conta histórias vividas no mar. Imagem: Wikipedia/reprodução

Leandro: A importância é enorme! Contar e ouvir histórias é um vínculo poderoso que se constrói entre o adulto e a criança. Como dizia Gaston Bachelard, “Imaginar é aumentar o real em um tom”. A narração de histórias, hábito milenar da natureza humana, sempre foi uma ferramenta maravilhosa para a primeira infância, pois estimula a brincadeira do faz de conta e abre o portal para o reino das possibilidades, promovendo viagens fantásticas dentro da nossa cabeça, através da imaginação.

O adulto acredita no que existe.

A criança existe no que acredita.”

Autoria desconhecida

Esse hábito amoroso dentro de uma família, que está isolada, também favorece o desenvolvimento da linguagem, já que amplia esse universo de significados, auxiliando a criatividade e o raciocínio lógico da criança. Além de aguçar o sentido da escuta, que é deveras importante nesse mundo virtual – totalmente visual – que vivemos hoje. Esse momento prazeroso e interativo, na família, permite que a criança construa sua identidade cultural e social. 

Andrea: Além disso, nas culturas antigas, ouvir narrativas é uma maneira de perpetuar saberes e propagar o próprio processo histórico de um povo ou de uma cultura. E isso também é fundamental num país culturalmente plural como o Brasil.

Portal CENPEC: Que elementos vocês trazem nos podcasts para apresentar a riqueza da região Amazônica e sua diversidade cultural? 

Mapa da Amazônia Legal. Fonte: ISA/reprodução
Mapa Amazônia Legal. Fonte: ISA/reprodução

Andrea: Nossa proposta foi que os programas não ficassem restritos às culturas indígenas e a temas ligados especificamente à floresta amazônica, que é a primeira ideia quando se pensa na região. A Amazônia Legal, nosso foco de pesquisa, é formada por nove estados. Além da Região Norte, ela se estende pela Região Nordeste, como parte do Maranhão, e da Região Centro-Oeste, no Mato Grosso.

É importante pensar que, dentro de seus dois biomas principais – o cerrado e a floresta -, existem muitos tipos de populações, logo, de culturas. Com base nesta realidade, resolvemos fazer um recorte que abordasse as culturas indígenas, ribeirinhas e quilombolas, e também desse um mergulho no universo dos Encantados, que de alguma forma perpassa a maioria das histórias desses outros universos culturais. O que estamos chamando de “Encantados” são aquelas histórias as quais todo mundo se refere quando pensa em mitos e lendas da Amazônia, como o Boto cor-de-rosa, a Iara, o Uirapuru.

Tivemos a preocupação de mergulhar mais fundo. Infelizmente não foi possível ir a campo, como seria o ideal, então a pesquisa teve que ser teórica: bibliográfica e virtual, e também através de uma rede de contatos com pessoas ligadas às comunidades, aos movimentos culturais, para resgatar e descobrir histórias que não sejam tão conhecidas e recontá-las. Nesse recontar, estamos compondo músicas, criando sonoridades, fazendo uma ponte entre o universo indígena e não indígena, para que o programa seja gostoso de ouvir por crianças de diferentes culturas, a fim de promover um intercâmbio cultural bastante importante para o País.

Portal CENPEC: Um dos objetivos do programa é suscitar reflexões sobre a dificuldades enfrentadas pela infância na região. Como apresentar essa pauta nos podcasts?

Andrea: Sendo uma iniciativa do UNICEF no Brasil, o programas Deixa que Eu Conto surgiu como uma tentativa de amenizar as situações de violência contra criança e adolescente, que durante a pandemia aumentou muito. É claro que o programa já está se revelando algo muito maior que isso, e acreditamos que quando passar esse período ele vai continuar sendo um material potente de apoio à educação não só nas casas, mas também nas escolas e em outros locais de educação continuada.

Os programas com o recorte “Amazônia” trazem aspectos da cultura local, gerando maior aproximação com a realidades das crianças da região. Por ser um material pensado para amenizar o quadro de violência e de exclusão vivido por esse público, é imprescindível que estejam presentes temas ligados ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim, na composição dos programas, nós amalgamamos formas de chegar às questões mais delicadas não só para a região, mas para grande parte da infância no Brasil, sem ser excessivamente didático nem gerar traumas nas crianças.

Apresentadores do Deixa que eu Conto estão representados pelos personagens Arapapá, e Vovó Arapapeia, que apresentam as narrativas para as crianças.
Arapapá, e Vovó Arapapeia. Foto: arquivo pessoal

Leandro: A melhor solução que achamos dentro dessa realidade foi a criação de um quadro com um passarinho criança, o Arapapá, e sua Vovó Arapapeia. Ele é um passarinho criança bastante divertido e curioso, que sempre chega com dúvidas sobre algum tema, ou cria uma situação que gera a conversa entre avó e neto. É nessas conversas que abordamos questões sobre alimentação, violência doméstica, a própria Covid-19 – o uso de máscara, o hábito de lavar as mãos – e trabalho infantil. Os temas vão brotando de forma lúdica. Como o programa é voltado não só para as crianças, mas para toda a família, o recado é dado também aos adultos. De alguma forma, as crianças constroem, desde pequenas, uma noção sobre o que é seu direito, o que não precisam ou não deveriam fazer, e os adultos são lembrados, constantemente, de que algumas coisas não podem ser exigidas de uma criança ou feitas contra ela.

Andrea: Mas além do Arapapá, as histórias trazem também ensinamentos. Elas são retratos de realidades, às vezes concretas, às vezes fantásticas, mas que ensinam crianças e adultos a pensarem e repensarem o seu viver. Através das histórias, a gente também consegue trazer pinceladas das questões mais importantes de serem abordadas nos programas com essa finalidade educativa de adultos e crianças para os direitos à vida e à dignidade da infância e juventude.

Portal CENPEC: Que dicas que vocês dão aos professores e educadores em geral que queiram explorar esses materiais em suas aulas?

Leandro: A UNICEF nos oferece uma assessoria permanente com Carol Velho, especialista em Educação Infantil, que participou da elaboração da BNCC. Assim, os programas estão sendo pensados para abarcar possibilidades de utilização em atividades educacionais. Os roteiros são analisados e recebem uma “assinatura” com base nos direitos de aprendizagem e nos campos de experiência. Há um olhar para a educação em rede das crianças.

Neste momento da pandemia, entendemos que a família faz muita diferença no processo de educação, mas também a escola. Como grande parte das escolas estão mantendo aulas remotas, os professores podem usar o programa para estimular atividades que estejam dentro do universo da BNCC. Eles podem solicitar às crianças que escutem e recontem as histórias, manifestem corporalmente os animais presentes no programa, repitam as brincadeiras dançadas, desenhem o que foi mais marcante, entre muitas outras possibilidades. Acreditamos que não há uma receita pronta. O importante é a clareza de não propor para as crianças atividades que fujam do que a BNCC aponta como essencial no processo educativo.

Andrea: O programa é feito em quadros que trafegam por muitas possibilidades: há um quadro sobre as curiosidades da Amazônia, outro sobre a fauna;  um quadro sobre alimentação, outro sobre as cores, há o Arapapá… São muitas possibilidades também para os professores ampliarem seus horizontes com relação às referências culturais que não são tão acessíveis. Sabemos que o processo de formação dos educadores ainda é muito falho neste sentido. Quando pensamos nas culturas africanas e afro-brasileiras, nas culturas indígenas, que são muitas e múltiplas – não existe “a” cultura afro-brasileira ou “a” cultura indígena. É uma pluralidade gigantesca, e sabemos que, às vezes, nem o básico, para conhecer e refletir sobre, está presente na formação de educadores. Nesse sentido, para o educador, o programa é também um processo formativo, uma oportunidade bem especial de se aprofundar nessas temáticas. Digo isso porque nós, enquanto criadores dos programas, também estamos em formação. Somos pesquisadores de cultura tradicional brasileira há muitos anos. Mas estamos nos deparando com nosso desconhecimento sobre muitas coisas, porque é uma abrangência muito grande. Então, também, à medida que criamos os programas, estamos num processo formativo de ampliação de horizontes estéticos e culturais sobre a Amazônia Legal.


Direitos de aprendizagem e campos de experiência

A seguir, Julia Ribeiro, oficial de educação do UNICEF Brasil, trata das potencialidades educativas do programa.

Portal CENPEC: Qual é o objetivo do programa Deixa que eu conto, neste momento de pandemia?

Imagem de Júlia Ribeiro, oficial de educação do UNICEF Brasil.
Foto: Júlia Ribeiro / Ação Educativa

Julia Ribeiro: O Deixa que Eu Conto é uma iniciativa do UNICEF no Brasil que tem como objetivo trazer para cada menino e cada menina, histórias, brincadeiras e curiosidades através de programas em áudio. Os episódios, com em média 30 minutos, têm uma curadoria cuidadosa e temática diversa. Nesse momento de pandemia e diante da necessidade de isolamento social, as histórias e experiências educacionais em áudio convidam as crianças à cocriação e à imaginação, num brincar com intencionalidade.

A iniciativa busca apoiar as Secretarias Municipais de Educação em suas atividades pedagógicas, bem como estimular a interação entre famílias e suas crianças. Elas não substituem as experiências coletivas vivenciadas no contexto das instituições de educação infantil, mas garantem a aproximação com as famílias, o que é muito importante neste momento que vivemos.

Portal CENPEC: O público-alvo do programa são crianças da educação infantil e em alfabetização. Por que essa escolha?

Julia Ribeiro: Inicialmente percebemos que havia uma menor quantidade de programas e materiais voltados para as crianças menores. Então, possibilitar esse espaço de um brincar intencional, estimular que as crianças escutem os programas podendo realizar outras atividades ao mesmo tempo (desenhar, brincar, dançar), é interessante. Além disso, nessa faixa etária, é importante ampliar o repertório de histórias e vocabulários, algo que pode ser acessado via programas do Deixa que eu conto e também ser um momento de interação e afetividade com a família.

Portal CENPEC: Por que a escolha do formato podcast para o programa?

Julia Ribeiro: O formato permite que seja usado por diferentes rádios Brasil afora e alcançar um grande número de crianças e famílias com histórias de qualidade, brincadeiras e uma diversidade de aprendizagens. Temos como objetivo chegar às crianças menores e às suas famílias. Para isso, disponibilizamos um material de qualidade, de fácil disseminação e de grande alcance porque pode ser utilizado por todas as rádios e fazer chegar àquelas crianças que vivem uma situação de maior vulnerabilidade e acesso precário e/ou inexistente à Internet. Pensando nisso, previmos que o direito autoral para uso dos programas é livre e eles podem ser baixados e veiculados ou distribuídos sem nenhuma restrição por rádios, sites, secretarias de Educação etc.

Portal CENPEC: Recentemente, vocês lançaram uma série especial sobre a cultura amazônica. O que motivou a escolha dessa região?

Julia Ribeiro: São dois os grandes motivos que nos moveram na escolha de programas que tratem da cultura amazônica. Primeiro, se refere ao acesso a Internet. Na região amazônica, temos menos famílias com acesso à Internet, e como os programas podem ser veiculados pelas rádios, rádios comunitárias, é possível contribuir para que mais crianças e mais famílias tenham acesso a conteúdos importantes ao seu desenvolvimento.

Outro motivo é a diversidade que temos de histórias, comidas, curiosidades dessa região, e que muitas crianças não conhecem. Vimos, então, como uma forma de não só homenagear essa região do Brasil, mas numa oportunidade de disseminar informações sobre os povos que a habitam e suas culturas para as crianças que vivem em outras regiões do país e que podem não conhecer muito sobre a Amazônia. Buscamos, ainda, apresentar reflexões sobre as dificuldades enfrentadas pela infância na região.

Portal CENPEC: Podem dar algumas sugestões para professores e famílias que desejam explorar esse material com as crianças?

Julia Ribeiro: As redes educacionais podem incluir links para os programas nos seus sites e mídias sociais para facilitar o acesso, orientar as instituições e escolas para que elas indiquem para as famílias e, a partir dos direitos de aprendizagem previstos em cada programa, organizar temas que possam auxiliar na formação continuada dos professores e profissionais da Educação Infantil. Já os professores conseguem organizar, em seus planejamentos, aprendizagens que podem ser vividas pelas crianças, mesmo a distância.

Todos os programas do Deixa que Eu Conto estão alinhados com os direitos de aprendizagem e campos de experiência da BNCC. Por exemplo, a partir de uma música, de acordo com cada faixa etária, é possível incentivar as crianças a se expressarem corporalmente e seguir o que a música indica ou até mesmo fazer questionamentos de acordo com as temáticas trazidas pela canção. Para as famílias, pode ser um momento privilegiado de estar junto e entrar no mundo da brincadeira, que é tão essencial para as crianças!


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