Panton pia’: histórias ameríndias ao lado da história brasileira

-

Panton pia’: histórias ameríndias ao lado da história brasileira

Devair Fiorotti (UFRR) conta sobre projeto que envolve as artes verbais dos povos originários de Roraima

O que têm a nos contar (e cantar) os povos ameríndios nossos contemporâneos, descendentes dos primeiros habitantes das terras a que hoje chamamos Brasil? Quais são seus mitos, sua visão de mundo, suas reflexões sobre a existência, a sociedade, a natureza que os cerca?

Essas foram algumas das perguntas que inspiraram o pesquisador Devair Antônio Fiorotti a desenvolver um projeto com estudantes na Universidade Estadual de Roraima (UERR). Professor de Letras, atualmente lecionando na Universidade Federal de Roraima (UFRR), Fiorotti é movido pelo desejo de conhecer as narrativas e os cantos que compõem as artes verbais indígenas da região.

Resultado de imagem para Devair Antônio Fiorotti
Devair Fiorotti

A inquietação pela falta de registro dessas artes levou-o a buscar ouvir as vozes desses narradores e cantores, muito além da transcrição e reescritura pela ótica dos não indígenas.

O trabalho de registro despertou o professor à importância de divulgar esse repertório artístico e cultural. Para isso, criou o site  Panton pia’, que tem o objetivo de apresentar e valorizar a identidade cultural desses povos. Saiba mais na entrevista a seguir.

CENPEC Educação: Pode contar um pouco de sua trajetória profissional?

Devair Fiorotti: Nasci no interior do Espírito Santo e, até os 24 anos, trabalhei como agricultor, no município de Itarana, além de atuar como músico. Quando resolvi dar continuidade aos estudos, na década de 1990, fui para Brasília (DF). Lá morei na vila de Paranoá, na época um local muito pobre e com altos índices de violência. Para me manter, tinha um pequeno trailer de lanches. Assim consegui me formar em Letras/ Português, fiz mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Teoria da Literatura. No final do doutorado, em 2006, participei de um concurso público para lecionar na recém-criada Universidade Estadual de Roraima (UERR). Fui aprovado e assim começou meu envolvimento com Roraima.

Foto: Devair Fiorotti

CENPEC Educação: Como nasceu o projeto Panton pia’? Aliás, qual é a origem e o significado do nome desse projeto?

Devair Fiorotti: Já no começo da minha carreira docente, percebi que tudo que tinha feito até então, estudar os clássicos gregos e a própria língua grega, bem como estruturas poéticas clássicas, de alguma forma, se chocava com a realidade local.

A realidade que encontrei em Roraima questionava e questiona tudo que estudei, aponta o dedo se perguntando sobre o Brasil, sobre o que também somos. Aqui estamos cercados por indígenas, convivemos com eles no dia a dia. Foi quando me perguntei por que não estudar as histórias desses povos.”

A primeira ideia foi estudar os mitos e as lendas dos povos indígenas e teve apoio de outros professores da UERR. Com o passar do tempo, os professores foram seguindo seus caminhos próprios de pesquisa e eu criei o Panton pia’, com o objetivo claro de registrar e analisar as artes verbais desses povos, além de pensar a realidade deles.
O nome veio por sugestão de um indígena macuxi, Rivelino, da comunidade Sorocaima. Rivelino, falecido há uns dois anos, tinha como apelido, panton, que significa “história” em macuxi.

Panton pia’ significa ‘junto da história’, ‘ao lado da história’. Hoje muito mais que um nome de um projeto, Panton pia’ é uma homenagem a meu amigo morto de forma trágica em uma pescaria: afogou-se enrolado na rede, ou, como dizem os indígenas, foi levado por Mãe d’Água, pelos seres dos rios.”

CENPEC Educação: Qual é a importância de pesquisar a cultura oral dos povos originários na academia?

Foto: Devair Fiorotti

Devair Fiorotti: Posso afirmar, sem medo de errar, que a área de Letras foi extremamente omissa em relação às artes verbais dos povos ameríndios, originários. Primeiro, é fundamental mostrar que essas artes existem e, no momento atual, registrar o que ainda há relacionado ao passado mítico-histórico desses povos.
Estamos falando de quase 200 línguas, com suas artes verbais, sendo que há poucos registros sobre isso. Sem contar as centenas de línguas e povos já extintos, cujas artes morreram junto a eles. Vivemos, no presente e no passado, um etnocídio, com morte de milhões de indígenas no Brasil (que, de aproximadamente 5 milhões de pessoas em 1500, caiu, na década de 1970, para cerca de apenas 100 mil).
Assim, esse trabalho atua em várias frentes: desde a necessidade imediata de registro, a valorização cultural, o reconhecimento dessas artes como parte das artes brasileiras, até uma contribuição mais significativa, política, pelo fim do genocídio contra indígenas, genocídio que está em pleno andamento, como demonstram os relatórios do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) desde que começaram a ser produzidos e publicados, em 1996.

Praticamente não há registros, somente casos isolados e, ainda, em processos de reescritura, sem trazer o texto na língua original, o que acaba interferindo profundamente naquilo que é, a meu ver, o mais importante, a voz dos narradores, dos cantores, daqueles que dominam as artes verbais desses povos.”

CENPEC Educação: Como as universidades podem potencializar o diálogo entre culturas locais e global?

Foto: Devair Fiorotti

Devair Fiorotti: O primeiro passo é reconhecer a existência de culturas locais, no plural. Isso é mais difícil do que se imagina na academia. O quadro tem mudado um pouco, com as políticas públicas de inserção de minorias nas universidades, mas até há pouco tempo, a academia era um lugar de homens brancos, estabelecendo o que e como deveria ser estudado. Esse ranço, ouso dizer, está fortemente presente nas academias, nos cursos de Letras, onde predomina o elitismo teórico, temático e de objeto. 
A inserção de artes verbais ameríndias nesse contexto acadêmico, caso se efetive plenamente, abala as estruturas dos próprios cursos, que deveriam, por exemplo, pensar a literatura para além do livro; estudar e registrar aspectos da produção literária até então desconsiderados.

A universidade pode potencializar esse diálogo reconhecendo e estudando a diversidade das manifestações artísticas periféricas, sem um olhar torto, como em geral se vê.”

CENPEC Educação: Como tem sido a experiência de desenvolver esse projeto com os estudantes universitários? Como promover um encontro multicultural real e profundo entre esses sujeitos?

Devair Fiorotti: A experiência é incrível, pois há uma mudança de pensamento visível nos estudantes envolvidos. Muitos deles foram fazer mestrado e já estão se encaminhando para doutorado (em Roraima, esse último nível é mais difícil, pois não há doutorados em letras por aqui nem em áreas correlatas). Principalmente, esses estudantes e pesquisadores passaram a entender a forma peculiar de produção artística existente entre os povos indígenas. 

A promoção se dá pelo encontro com os indivíduos e suas manifestações artísticas. Aliás, esse é um entrave para a grande massa de brasileiros: qual a construção imagética que se tem dos indígenas no Brasil, qual a representação construída nesses mais de 500 anos? Em geral, pessoas nuas e cheias de cocares. Isso quando não nos deparamos com perguntas como: ‘mas ainda existe índio de verdade no Brasil?’. Os indígenas brasileiros são muito mais do que isso e, principalmente, são nossos contemporâneos, muitos vivendo muito próximos a nós e nem por isso deixa(ra)m de ser indígenas.”

Uma situação bem ilustrativa disso, ouvi da boca de um dos entrevistados no Panton pia’: uma comunidade havia requisitado às autoridades locais a construção de moradias populares. Havia na época um projeto estadual que fazia esse tipo de construção. Contudo, quando um dos representantes foi lá conversar com a comunidade, a resposta foi negativa. A justificativa foi a de que eles eram índios e índios moram em casas de palha. Assim fica fácil ver que eles continuam a ser algo que deve atender à imagem que nós (não índios, “brancos”) temos do que é o indígena, satisfazer esse nosso fetiche em relação a eles. Mas só quando conveniente, é claro. 

Foto: Devair Fiorotti

CENPEC Educação: Quais são os maiores desafios e aprendizagens adquiridos nesse processo?

Devair Fiorotti: O maior desafio é não olhar para os povos ameríndios cheio de preconceitos, reconhecê-los como eles são sem querer modificá-los. Uma visão pessoal minha: o que estamos fazendo com esses povos, principalmente pelo contato desastroso de religiões, pelo descaso com a diferença que eles representam, é um caso de polícia.

CENPEC Educação: Como surgiu a ideia de criar um site para compartilhar os materiais coletados no projeto? Quais foram seus objetivos ao criar esse site?

Devair Fiorotti: O desejo de divulgar os registros feitos pelo projeto Panton pia’ é muito antigo, mas sempre encontrava algum problema. Uma ideia era reuni-los em um livro, mas Roraima não há uma cultura editorial e gráfica, o que dificulta a publicação das narrativas da forma com a qual elas mereciam. Aliás, temos apenas uma livraria em todo estado, para dar dimensão dessa ausência. Assim, criamos o site Panton pia’, para tornar acessível o material que produzido, principalmente a fim de apresentar e valorizar a cultura dos povos indígenas. 

Acesse o Panton pia’.

CENPEC Educação: Quais são os principais temas presentes nos cantos e nas narrativas coletadas?

Devair Fiorotti:  Ao falar dos temas presentes nas artes verbais dos povos indígenas, temos de pensar a história desses povos, sua organização social, o que comem, o que dançam, em que acreditam. As narrativas tratam de como eles surgiram, de como surgiram ferramentas ou plantas, o que eles usam pra se tratar de doenças ou seres que podem causar mal, míticos ou não, esses são exemplos. Já os cantos têm temáticas muito variadas, de temas infantis a bebidas, danças e festas, como o parixara, que é uma dança macuxi que envolve canto, instrumentos musicais e adornos específicos. Logo, temos de imaginar que esses povos cantam e contam sobre a vida deles e toda complexidade cultural que isso representa.

Dança parixara macuxi (RR)

CENPEC Educação: Parte deste material será publicado em um livro. Como está a organização da obra?

Devair Fiorotti: Já tenho quatro volumes de registros: três de narrativas e um de cantos, além de dois livros oriundos dessas narrativas já publicados: A história do timbó  e Merina eremu, lançados em uma parceria entre a editora Wei, nascida a partir do projeto Panton pia’, e a editora Patuá, de São Paulo. O volume I de narrativas já está disponibilizado gratuitamente pelo site. Essas obras partem de entrevistas com indígenas realizadas nas Terras Indígenas do Alto São Marcos e revelam muito do contato com os não indígenas. Foi delas que surgiram os cantos e narrativas. Já o livro de cantos já está licitado pelo Museu do Índio (RJ) em parceria com a Unesco e sairá em breve. Ainda neste ano, a editora Wei deve publicar mais dois livros de histórias (do Urubu-rei e do Makunaíma). Mas, no futuro, minha ideia é que todos esses livros sejam disponibilizados gratuitamente no site.

Foto: Devair Fiorotti

CENPEC Educação: Há ideias de integração com escolas para promover a divulgação e a valorização das culturas indígenas?

Devair Fiorotti: Há muitas ideias nesse sentido, mas o problema que enfrento é de tempo, da capacidade humana de gerenciar todas as possibilidades oriundas do projeto. Isso tem sido feito aos poucos dentro das possibilidades e condições que possuo. Quando criei o site, disponibilizando gratuitamente muita informação, a ideia é justamente promover essa integração: qualquer professor, escola pode acessar o material e trabalhar com ele.  

CENPEC Educação: Hoje tem se falado bastante em um currículo descolonizador, que traga outros referenciais culturais além do hegemônico europeu e estadunidense. Você pode citar algumas iniciativas e caminhos nesse sentido, que estejam sendo desenvolvidos em Roraima ou outras regiões amazônicas?

Devair Fiorotti: Não trabalho diretamente com currículo e não tenho acompanhado isso de perto na Amazônia. Contudo, essa é uma discussão mais que necessária e premente. O desconhecimento é generalizado e a opressão causada pela hegemonia cultural, principalmente norte-americana, é descomunal, nefasta, só consigo pensar em adjetivos desse campo semântico. Minorias são simplesmente ignoradas, esmagadas, e a escola tem se silenciado a esse respeito em quase totalidade dos casos.

Capa do livro
Urihi (reprodução)

Tenho visitado muitas escolas em Boa Vista, particulares e públicas, pois um livro de poesia meu, Urihi (editora Patuá), foi adotado como obra de referência pro vestibular da UFRR. A obra trata da violência que o garimpo causou e está causando aos yanomamis. Minha fala é sempre de conscientização, contudo percebo que sempre preciso trazer informações extremamente básicas, como número de indígenas já mortos no país, sobre um genocídio que continua até hoje, além de aspectos básicos sobre cultura e diferença.
Mesmo Roraima sendo o estado mais indígena do país, percentualmente falando, a impressão é de que esse assunto não foi trabalhado. Ou mudamos isso ou continuaremos sendo promotores do genocídio indígena.

Um currículo que efetivamente permita pensar a diferença e nossa condição de colonizados culturalmente é um passo essencial para isso. Vale um adendo: a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) não está alheia de toda a essa contenda. Vamos ver até que ponto as escolas e o poder público conseguirão construir currículos minimamente inseridos nessa discussão.”


Pesquisa premiada

Um dos frutos do projeto Panton pia’ é a dissertação de mestrado Do Parixara ao Areruia, de autoria de Jucicleide dos Santos com a orientação do professor Devair. Jucicleide, indígena da etnia Wapichana, receberá um prêmio nacional por essa pesquisa que trata de cantos religiosos indígenas.

Veja também:

Especial multimídia: Alfabetização e letramento indígena

Oficinas: Brincadeiras indígenas do Xingu e Ações afirmativas para quê?

UNESCO disponibiliza mostra online de cinema indígena

Portal Conselho Indigenista Missionário (Cimi)