Professoras autoras: quando a experiência docente origina poesia

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Professoras autoras: quando a experiência docente origina poesia

Professoras que publicaram livros literários contam como suas escritas são inspiradas pela experiência em sala de aula – e vice-versa

Por Stephanie Kim Abe

Flávia Ferrari e Gisele Teixeira são duas professoras da rede municipal de São Paulo (SP) que publicaram livros. Mas elas provavelmente não são as únicas educadoras autoras por aí – afinal, a docência parece andar de mãos dadas com a escrita. 

É o que indicam, pelo menos, as falas de ambas sobre essa relação:

Foto: acervo pessoal

O ofício de ser professora envolve pesquisar, investigar, observar as crianças e os seus interesses, os seus campos de estudos preferidos. Ele traz um olhar para a infância muito acurado. Ser professora é ser uma eterna pesquisadora de práticas e envolve, desde sempre, a escrita”, diz.

Gisele Teixeira, professora e autora

Foto: acervo pessoal

A docência é uma atividade muito humana, em todas as dimensões. A escola é atravessada por tudo o que acontece no mundo e as crianças, ao nos questionarem sempre, nos desafiam muito a pensar em estratégias, a nos reinventar, a buscar coisas diferentes. Muitas situações são vividas na escola em um dia, ora cômicas, ora tristes, ora difíceis, e as relações construídas são de muita proximidade, com altos e baixos. Isso tudo, no processo de elaboração do que aconteceu no trabalho, acaba virando fonte de inspiração para a escrita”, diz. 

Flávia Ferrari, professora e autora

Ambas também sempre escreveram, desde a adolescência. 

Gisele, apesar de todos os dias fazer relatos de classe em texto prosa, se sente mais confortável com a poesia: “a minha linguagem escrita sempre foi mais poética. Não sei explicar porque, mas a poesia sempre foi um canal de conversa comigo mesma, onde as coisas fluem melhor”.

Já Flávia começou com contos infantis, justamente pela interação que fazia com as crianças na escola. “Sempre escrevi poesia, mas não levava esses textos para a sala de aula. Foi apenas com a pandemia que eu passei a me engajar com grupos de poetas on-line e a compilar e compartilhar o que eu já havia escrito em forma de poesia”, conta. 

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Livros filhos da pandemia

Dessa revisão de suas poesias, Flávia organizou e publicou o seu primeiro livro Meio fio, poemas de passagem (Editora Toma Aí um Poema), em 2021. O segundo, É tudo ficção, pela mesma editora, veio no final de 2022. Ambos são voltados para o público adulto, apesar de algumas poesias poderem ser lidas por crianças e adolescentes também. 


AMPULHETA

Descobri muito cedo a ampulheta
Invólucro de um tempo qualquer
Ordinária e persistente
Que me convida ao foco
Ato raro de obediência
Frágeis grãos de desamparo
Melhor seria deixarmo-nos cair
Até sermos amortecidas pela terra
E incorporadas a toda a neblina de poeira
Efêmera e despretensiosa
Que se espalha sem contar do tempo

(Flávia Ferrari, em É tudo ficção)

Capa do livro de Flávia Ferrari.

O livro de Gisele Teixeira também é fruto da pandemia – é, inclusive, “um grito político dos absurdos que passamos naquele período”, como explica ela. 

Minha filha nasceu em março de 2020, e eu pensava em como seria possível apresentar esse mundo para uma criança, sem afugentá-la da vida. A poesia veio para dar esse abraço de esperança, porque a literatura tem esse poder de nos transportar para outros lugares e mundos, mundos melhores“, diz. 

Gisele Teixeira, professora e autora

O livro Absurdos (Editora Tuya) foi lançado em julho de 2023 e traz poeminhas curtos que contam diferentes absurdos na natureza. Apesar de voltado para bebês e crianças pequenas, Gisele acredita que a obra cresce com as crianças, porque elas vão se apropriando do que está escrito de diferentes formas conforme o seu desenvolvimento.


Eu vi uma aranha dando de mamar para oito aranhinhas.

(Gisele Teixeira, em Absurdos)

O bebê escuta poeticamente as rimas, a melodia da leitura. Na etapa da educação infantil, as crianças de quatro e cinco anos começam a sacar mesmo o sentido dos absurdos, porque começam já a colocar o mundo em caixinhas, classificar e entendê-lo. E aí eles se chocam, dão risadas, e tentam explicar o porquê daquilo ser um absurdo. ‘Epa, o camelo não tem asa. A aranha não é bicho que mama’. O texto é vivo, e acaba crescendo com as crianças”.

Gisele Teixeira

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Escritas que influenciam a docência

Apesar de achar muita responsabilidade escrever para crianças, Flávia está atualmente trabalhando em uma terceira obra, voltada para esse público, que parte dos temas que ela tem coletado de suas experiências com seus(suas) estudantes de fundamental I. “A morte, o pet, a diversão na piscina, a praia… faz alguns anos que comecei a escrever poemas sobre diferentes temas trazidos pelas crianças”, diz. 

Ao mesmo tempo que a docência inspira a escrita, o ato de escrever também contribui para a prática docente.

“As crianças têm uma percepção de mundo muito sensível, então elas percebem as coisas mais sutis, como se alguma coisa na escola mudou, ou se as folhas da árvore caiu, ou se há um colega triste. Testemunhar tudo isso pelo olhar das crianças acaba aprofundando e ampliando o meu. Quando escrevo sobre isso, essas situações viram memórias de histórias para contar. A escrita também é uma forma de lidar com tanta informação e tanta coisa emocionante, e de nos ajudar a manter viva essa capacidade de se encantar“, diz.

Flávia Ferrari, professora e autora

Para Gisele, a escrita faz parte de sua identidade como docente e trazer para a sala de aula uma obra sua, se colocando nesse lugar de autora na frente de seus(suas) estudantes da educação infantil, ajuda a deixar mais palpável o lugar da autoria para as crianças:

Por todos os lugares que eu passei, desde que comecei no exercício do magistério, a literatura sempre esteve comigo. Em todas as minhas aulas, sobre tudo o que eu falava, eu sempre buscava ferramentas na literatura para conversar com as crianças. Ao apresentar a minha obra para as crianças, elas conseguem ver que eu sou uma pessoa de carne e osso, alguém terráqueo. É importante para desmistificar essa lugar da autora, e mostrar que um livro, uma história é imaginada por uma pessoa – e que essa pessoa pode estar muito próxima, num lugar que elas também podem alcançar“. 

Gisele Teixeira


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