Causos, cantos e encantos caiçaras

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Causos, cantos e encantos caiçaras

Conheça a série de animações em vídeo que une tradição oral e tecnologia digital em prol da diversidade cultural no litoral sudeste. Leia entrevista com Neide e Isabel Palumbo sobre o projeto Treboada

Venho de campos e matas
Terra verde, fértil e farta.
Nossa roça à beira-mar.
Canto a pesca e canto a planta
E a vida santa do lugar.
(Luis Perequê, Encanto caiçara)

Caiçara: do Tupi-Guarani caá-içara, cerco feito de galhos fincados na água para prender peixes. Com o passar do tempo, passou a ser o nome dado às palhoças construídas nas praias para abrigar canoas e apetrechos dos pescadores e, mais tarde, o termo usado para identificar as comunidades do litoral dos estados do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Na relação com a terra e com o mar, essas comunidades criaram narrativas, cantigas, vocabulário, rituais, festejos, hábitos e costumes que formam seu jeito de ser no mundo. A esse conjunto convencionou chamar de cultura caiçara.

Pesca artesanal caiçara. Foto: Hoja, 2015.
Pesca artesanal caiçara. Foto: Hoja, 2015.

“O caiçara é o povo do litoral que planta e pesca. É o pescador artesanal, que também tem a sua pequena plantação, servindo para sua sobrevivência. Normalmente tem um mandiocal, para fazer farinha, e uma canoa, que usa para pescar. Vive em uma casa de pau-a-pique, com chão batido e fogão de lenha. É uma espécie de ‘caipira do litoral’”, revela o compositor paratiense Luis Perequê.

O isolamento geográfico dessa população, que, na costa norte paulista e sul fluminense, se manteve até a abertura da BR 101, favoreceu a formação de uma identidade cultural, que hoje corre o risco de desaparecer. Uma das maneiras de preservar e valorizar a riqueza dessa cultura é promover a memória das novas gerações.

Para falar sobre esse tema, conversamos com Neide e Isabel Palumbo sobre o projeto Treboada, que realiza o registro audiovisual de causos caiçaras de São Sebastião, litoral norte do estado de São Paulo.


Treboada – Causos Caiçaras

Neide Palumbo. Foto: arquivo pessoal
Neide Palumbo. Foto: arquivo pessoal

Aliar as tecnologias digitais à preservação da cultura oral caiçara: esse foi o mote do projeto Treboada (variante caiçara de “trovoada”). A ideia surgiu do desejo de difundir, por meio de vídeo, os causos narrados pela mestra da cultura popular Neide Palumbo.

Trata-se de histórias e cantigas que ela foi coletando e transformando ao longo de sua vida como professora em comunidades então isoladas de São Sebastião, litoral norte do estado de São Paulo.

Em 2017 o projeto realizou um financiamento coletivo para a gravação do trabalho de Neide e produção de um filme animado e musicado sobre o causo do cachorrinho Treboada, que dá nome ao coletivo. O trabalho recebeu o prêmio Proac de cultura Tradicional do governo do Estado de São Paulo, em 2019.

Veja Neide Palumbo contando o causo do cãozinho Treboada:

Confira a seguir nossa conversa com Neide e sua filha Isabel Palumbo, que, além de realizar a divulgação do projeto Treboada, é gerente de mídias sociais no programa Vozes do Brasil e na Rádio Vozes, da agência EBC.

Portal CENPEC: Como nasceu o projeto Treboada? 

Isabel Palumbo. Foto: arquivo pessoal
Isabel Palumbo. Foto: arquivo pessoal

Isabel Palumbo: O projeto Treboada nasceu da necessidade de se eternizar o trabalho de Neide Palumbo com os causos caiçaras. Nós tínhamos o desejo de que essas tradições se perpetuassem, ficando como um registro dessas histórias que ela conta de um jeito único.

Para que isso se espalhasse e chegasse às novas gerações, se decidiu criar o Projeto Treboada. Inicialmente o intuito era criar um aplicativo. Fizemos uma campanha de financiamento coletivo e com as doações fizemos um primeiro vídeo com uma mostra do nosso trabalho. A partir desse vídeo, conseguimos uma verba do Programa de Ação Cultural (Proac) para desenvolver a série de vídeos de animação.

Portal CENPEC: Qual é a importância de registrar e compartilhar os causos caiçaras?

Isabel Palumbo: Além do valor histórico desse trabalho, que revela o modo de vida do caiçara na década de 1950, tem uma importância cultural, inclusive de registro linguístico, ao trazer o sotaque, o vocabulário dessa população. É importante ensinar às novas gerações como era o cotidiano dessas pessoas, em uma realidade muito diferente de hoje.

Ouça Isabel Palumbo

Portal CENPEC: Quais são as singularidades da cultura caiçara no litoral sudeste? 

Isabel Palumbo: Trata-se de uma cultura de subsistência. No litoral sudeste, essa cultura está muito ligada à pesca, à roça de mandioca e à produção de farinha. O caiçara desta região não vê o mar como lazer. O mar para ele é o trabalho.

O caiçara não vai à praia tomar banho de mar ou ver o pôr do sol. Ele vai ao mar para trabalhar, pescar o alimento da família, vai à roça tirar sua mandioca para fazer farinha. É outra relação com o litoral, diferente do olhar contemplativo do turista.

Portal CENPEC: O compositor Luis Perequê, de Paraty, fala da necessidade de um “defeso cultural”, com o objetivo de fortalecer a cultura popular da região. Para isso, defende a importância de políticas públicas para proteção das tradições religiosas e culturais da comunidade. O projeto Treboada pode ser considerado uma iniciativa de defeso cultural?

Isabel Palumbo: Eu acredito que o Treboada seja um projeto de defeso cultural porque estamos trazendo para a mídia atual, as redes sociais, um conteúdo que seria local, transmitido apenas presencialmente pela contação de causos de Neide Palumbo, e agora está entrando nesse universo da Internet, onde as pessoas hoje buscam informação. Ainda mais agora nesta época de pandemia, é esse o canal onde as pessoas vão buscar o contato com a cultura. Por isso acho que se trata de uma ação de defeso da cultura caiçara. Estamos ampliando o conhecimento e o acesso a essa cultura regional tão importante.

Portal CENPEC: Além das temáticas locais, é notável a variante oral empregada nos causos. Essa variante ainda é presente entre as comunidades costeiras de São Sebastião? Como é a relação das novas gerações com essa variante? Elas a usam?

Esse sotaque caiçara, que era o português arcaico, era falado aqui no litoral sudeste, principalmente nas comunidades isoladas da Ilhabela, e também na costa sul de São Sebastião antes da chegada da estrada e da Petrobras. Hoje, nas comunidades isoladas da Ilhabela, quando estão conversando entre si, os moradores mais velhos ainda usam esse sotaque. Em outras situações, eles preferem não falar dessa maneira, não sei se por inibição ou por influências externas. Na costa sul quase não existe mais.

A circunstância de parcial isolamento geográfico da população caiçara […] possibilitou a manutenção de procedimentos musicais e de linguagem como que resguardados em nichos: expressões que evocam o português antigo, procedimentos vocais e instrumentais que fazem lembrar traços do barroco europeu, o gosto pelos ornamentos nos toques da rabeca e violino caiçaras, minúcias do instrumental europeu que convivem com as marimbas de possível origem angolana, indispensáveis nas congadas do litoral paulista. Estas unidades básicas do saber caiçara são interligadas e estão ainda em uso, num processo que se realimenta pela oralidade, e merecem ser conhecidas e estudadas.”

Acervo Memória Caiçara

Portal CENPEC: Neide, você foi professora por muitos anos em comunidades caiçaras. Pode contar um pouco dessa experiência de ter um pé na cultura escolar e outro na cultura popular?

Ouça Neide Palumbo

Portal CENPEC: Qual é a importância de trazer as culturas locais para a educação escolar? 

Ilustração de Isabel Galvanese para a animação Ibama. Projeto Treboada. Reprodução
Ilustração de Isabel Galvanese para o vídeo “Ibama“. Projeto Treboada.

Isabel Palumbo: Eu vejo como essencial trazer esse material às escolas. A maioria das crianças que está na rede municipal local não tem conhecimento dessa cultura. Esse é um patrimônio que vem do século passado, 1950, 60… Um universo que está muito longe delas.

É importantíssimo que essas crianças e jovens conheçam o histórico cultural da cidade em que vivem. Mesmo porque há muitos estudantes que vieram de outros lugares. É essencial que conheçam a cultura local até para criarem um vínculo afetivo com esse território onde estão vivendo.

Os vídeos do Treboada são bem lúdicos, as crianças gostam muito. É uma forma diferente e atrativa de apresentar a cultura caiçara na escola. Acho importante exibir os vídeos e propor atividades relacionadas às histórias, explorar a criatividade das crianças ao se relacionar com esse conteúdo.

Em “Trazón”, por exemplo, vemos uma família que nunca tinha ido ao cinema. Propor uma reflexão, um exercício de imaginação, de se colocar no lugar do outro: como é possível uma família nunca ter ido ao cinema? Será que existe isso ainda hoje no Brasil? Aqui estão presentes questões sociais, além da cultura. Por que não discutir essas temáticas em sala de aula?

Ouça Neide Palumbo contando essa história:

Portal CENPEC: Como os professores podem explorar essas histórias em sala de aula?

Isabel Palumbo: Há várias outras formas de trabalhar esses materiais. Em aula de Língua Portuguesa, explorar os elementos do vocabulário. Em aula de História, trabalhar a relação da chegada da estrada com essa cultura ou com o fim desse linguajar, por exemplo. No que essa estrada influenciou a cultura local, trazendo pessoas de fora, com hábitos e formas de pensar diferentes? Ou ainda, qual é a origem desse linguajar: por que o português arcaico está presente no litoral sudeste, no estado de São Paulo? Há muitas maneiras, temas e estratégias que os professores podem criar e explorar em sala de aula.

Confira entrevista sobre uma experiência de educação intercultura caiçara, desenvolvida em escolas costeiras de Paraty (RJ). Leia aqui.

Portal CENPEC: Sobre os vídeos, pode falar um pouco de como é trabalhar com as várias linguagens presentes: a oralidade, a ilustração e a trilha sonora? Como é a interação entre essas linguagens e os diversos criadores para se chegar ao produto final?

Isabel Palumbo: Os vídeos do projeto Treboada só deram tão certo porque a equipe trabalhou muito bem junto. A Neide Palumbo só fez o que ela faz de melhor: sentar e contar essas histórias do jeito que ela conta sempre já há pelo menos 30 anos. Os outros integrantes da equipe trabalharam com base nessas histórias.

Treboada Ilustração:  Isabel Galvanese
Ilustração: Isabel Galvanese

Coletivo Treboada: Neide Palumbo (criação e narração); Paulo Alberton (direção e montagem); Isabel Galvanese (ilustrações); Rowena Crowe (animações); Priscila Prisco (reparação de imagens e animação); Bia Porto (design gráfico); Felipe de Souza (trilha sonora); Emanuel Araújo (projeto educativo); Isabel Palumbo (imprensa e mídias sociais); Marcos Tozzi (programação do app); Ana Cláudia Prado (execução do projeto educativo).

Folia de reis. Foto: reprodução
Folia de reis. Foto: reprodução

As ilustrações de Isabel Galvanese casaram lindamente com os causos e deram vida aos vídeos. Além da música, que foi espetacular para criar a atmosfera das histórias. Foram usados instrumentos musicais típicos da cultura caiçara: a rabeca, que é um tipo de violinozinho usado na Folia de reis, a marimba, que é um instrumento de percussão muito usado na Ilhabela. Esse cuidado de pesquisa tornou o trabalho lindo e fez toda a diferença. Todo o trabalho de produção – animação, o desenvolvimento do vídeo – tornou o trabalho muito harmônico, completo. 

Acesse o canal do Treboada no YouTube e assista a outros vídeos da série


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