Educação caiçara: diálogo sensível com saberes ancestrais

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Educação caiçara: diálogo sensível com saberes ancestrais

Conheça uma experiência que promove o diálogo entre os conhecimentos escolares e a cultura local: a educação intercultural caiçara, desenvolvida em comunidades costeiras de Paraty (RJ)

Estabelecida na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como a terceira entre suas 10 competências gerais, a presença de um repertório artístico e cultural múltiplo na escola está relacionada à importância de desenvolver o pertencimento dos estudantes em relação à comunidade, assim como de conhecer e valorizar perspectivas culturais diversas. 

Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.”

MEC, BNCC, 2017
Iaci Mattos. Foto: arquivo pessoal
Iaci Mattos. Foto: arquivo pessoal

Como a cultura tradicional caiçara pode ser incorporada ao currículo e às práticas escolares? Para conhecer uma experiência nesse sentido, conversamos com a professora Iaci Sagnori de Mattos. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), leciona para turmas do ensino fundamental II nas escolas da Praia do Sono (Martins de Sá) e do Pouso da Cajaíba, da rede municipal de Paraty (RJ). Pesquisadora, Iaci integra o Coletivo de Educação Diferenciada de Paraty, em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), campus Angra dos Reis (RJ). Saiba mais na entrevista.


Portal CENPEC: Quais são as singularidades e os desafios de lecionar com comunidades caiçaras?

Iaci Sagnori de Mattos: Como acadêmica, penso em uma série de questões relativas à cultura local. Eu sou professora da área de Linguagens, então fui lecionar em comunidades costeiras com a ideia de trabalhar a partir do texto escrito, com leitura, interpretação. Mas ao iniciar o trabalho e entrar em contato com a realidade local, logo percebi que o contato com o mundo letrado é muito restrito.

Oficina de fotos: pescador e sua rede na Praia do Sono, 2017. Foto: reprodução
Oficina de fotografia: pescador e sua rede na Praia do Sono. Foto: reprodução

A transmissão e construção de conhecimento não passa pela leitura e escrita, que para nós, professores, principalmente da área de Linguagens, é a principal forma de apreensão do conhecimento. Esse fato por si já põe em suspenso toda a nossa prática e os conceitos que a embasam.

Foi necessário rever esse olhar, partir de outro lugar. O texto escrito não pode ser o ponto de partida e talvez nem o ponto de chegada. Ele pode ser um intermediário nessa interlocução. Mas, para estabelecer um contato com esses estudantes, o dispositivo tem que ser outro. Esse foi o primeiro choque para mim. Outro traço singular é a oralidade como a principal via de transmissão do conhecimento através dos mais velhos, por meio de conversas na família. Para quem vem de uma cultura urbana letrada, com pouco espaço para escuta e interlocução com os idosos, esse é um aspecto que chama muito a atenção.

Quando pensamos em lecionar nessas comunidades, desenvolvemos teorias e planejamentos sobre o trabalho com os estudantes. Mas é a prática que realmente possibilita ver como é a dinâmica desse diálogo entre o conhecimento letrado escolar e o conhecimento resguardado por essas populações e que não pode ser colocado em segundo plano.

Construir uma prática pedagógica nesse viés é uma singularidade muito grande. O norte para esse trabalho é entender que existe um saber ancestral preservado não em livros, mas sim na fala, nas práticas cotidianas dessas comunidades, e pensar canais de diálogo entre essas duas formas de conhecimento.

Portal CENPEC: Por que é importante construir e pôr em prática um currículo escolar diferenciado para essas comunidades? 

Oficina de fotografia. Projeto Guia turístico da Praia do Sono. Foto: reprodução
Oficina de fotografia. Projeto Guia turístico da Praia do Sono. Foto: reprodução

Iaci Sagnori de Mattos: Quando passamos a conviver no cotidiano local, percebemos o valor do conhecimento preservado e transmitido oralmente. Não há um momento específico para esses ensinamentos, ele acontece a todo momento, no convívio com os mestres, os mais velhos dessas comunidades.

A importância de um currículo escolar diferenciado é justamente de registrar esses saberes. Embora eles estejam resguardados, sabemos que há um movimento externo de globalização, no sentido de universalização do conhecimento e padronização cultural.

Por terem vivido muito tempo isoladas, essas comunidades preservaram muitos conhecimentos específicos. Uma prática pedagógica que não tenha um olhar sensível para o valor e a necessidade de preservação desses saberes se torna um agente de silenciamento e consequente morte de um patrimônio que compõe a base cultural e o cotidiano local.

Se a escola coloca seus conhecimentos como superiores aos saberes ancestrais, levando as crianças e os jovens daqueles locais a menosprezar e substituir suas tradições pelos saberes urbanos, globalizados, está colaborando para a destruição dessas singularidades culturais. Isso teria consequências muito graves, pois tornaria essa comunidade uma comunidade qualquer e se perderiam conhecimentos valiosos para a preservação ambiental e da própria espécie humana.

Portal CENPEC: Quais são os desafios de elaborar um currículo caiçara? Como selecionar os conteúdos a serem trabalhados com os estudantes de forma harmônica com o que propõe a BNCC?

Iaci Sagnori de Mattos: Nós atuamos com o segundo segmento do ensino fundamental (6o ao 9o ano), que foi uma conquista junto ao município de Paraty em 2016, pois antes só as escolas nessas comunidades dispunham do primeiro segmento.

Ao construir esse currículo, propomos duas dinâmicas para levantar os principais temas que aquela comunidade espera que a escola trabalhe com os estudantes. A primeira dinâmica é a FOFA (sigla para Fortalezas, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças), feita com as mães para verificar os temas mais recorrentes nas respostas delas. Partimos da ideia de que nessas respostas poderíamos encontrar algumas expectativas do que essas mães entendiam importante que as crianças aprendessem na escola.

Oficina de bordado realizada no projeto de guia turístico. Foto: reprodução
Oficina de bordado realizada em projeto de guia turístico. Foto: reprodução

A segunda dinâmica é um questionário aprofundado com os alunos, contendo questões pessoais e solicitando que eles expressem sua opinião sobre a cultura tradicional de sua comunidade, sobre a preservação dessa cultura e expectativas de futuro, tanto para a comunidade como para cada um deles.

Com os resultados dessas duas dinâmicas, criamos gráficos e organizamos uma rede temática. Essa rede é baseada nos temas geradores de Paulo Freire e na pedagogia de projetos. Com base nos temas geradores levantados, nós montamos os projetos, em torno dos quais todas as disciplinas constroem sua grade curricular.

A intenção é, por meio do conhecimento escolar, trazer algumas respostas a questões do dia a dia da comunidade. Cada disciplina pensa como pode contribuir para responder demandas e perguntas que nascem no cotidiano da comunidade.

Projeto de guia turístico. Foto: reprodução
Projeto de guia turístico. Foto: reprodução

Um dos projetos que desenvolvemos foi um guia turístico local, em que os estudantes apresentam a comunidade, pensando em um público que escolheriam. (Clique aqui para baixar o guia.)

Com base nisso, foram desenvolvidos conteúdos curriculares, escolares para dar suporte a esse projeto, pensando sempre num formato interdisciplinar para que esses conhecimentos sejam significativos para os estudantes. A experiência foi registrada no Caderno Pedagógico para Projetos de Educação Escolar Diferenciada e Intercultural nas Escolas Caiçaras: A produção do Guia Turístico local nas Escolas Municipais de Martin de Sá, na Praia do Sono, e Cajaíba, no Pouso da Cajaíba, Paraty-RJ, organizado pelos professores Lício do Rego Monteio, Domingos Nobre e Mara Batista de Oliveira.

Portal CENPEC: Como trazer na prática os saberes da comunidade para dentro da escola?

Iaci Sagnori de Mattos: A proposta de trazer o conhecimento comunitário, tradicional, perpassa a maior parte dos nossos projetos. Essa interlocução está presente em todo o nosso trabalho, trazendo pessoas da comunidade para dentro da escola como parceiras desse processo educativo.

Oficina de cestaria. Foto: reprodução
Oficina de cestaria. Foto: reprodução

Quando pensamos em como seria uma escola caiçara, a ideia era ter um agente social, ou seja, um professor da comunidade que faria essa articulação com a cultura local, nos orientando em como acessar e trazer esses saberes e seus detentores, os mestres, para dar sustentação ao trabalho. Como esse profissional precisaria ser contratado pela prefeitura, por questões burocráticas não conseguimos concretizar essa ideia. Mas alguns atores da comunidade se fazem presentes de acordo com a temática de cada um dos projetos.

Na escola, tenho como parceira a professora Nelza Galosse, de Ciências da Natureza, que está comigo desde o início desse trabalho. Agora temos mais dois professores que integram o quadro docente: Luciane Marques, de Matemática, e Tiago Hydalgo, de História e Geografia.

Portal CENPEC: Você é professora de Língua Portuguesa. Pode falar um pouco do seu cotidiano escolar e como articula os conhecimentos, habilidades e competências a serem trabalhadas na área de linguagens com o repertório da cultura local?

Iaci Sagnori de Mattos: Minha área é de a de Linguagens, leciono Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Artes. Dessa perspectiva das linguagens de expressão, trabalho segundo o viés da rede temática e do ensino por projetos, tendo a consciência de que a cultura letrada não está em primeiro lugar nessas comunidades.

Oficina de gravura. Foto: arquivo pessoal
Oficina de gravura. Foto: arquivo pessoal

Procuro estabelecer parcerias com pessoas que trabalham as diversas linguagens nas comunidades. Na Praia do Sono, temos o artista plástico Tiago Alvarenga, que já participou de vários projetos nossos; o poeta Flávio de Araújo, que nasceu no Sono, já morou no Saco do Mamanguá (outra comunidade costeira de Paraty) e trabalha a temática caiçara em sua obra.

As temáticas para os projetos vêm dos próprios alunos e em torno delas fazemos a seleção dos textos e de outros materiais. Não trabalhamos com os livros didáticos da rede. De acordo com o levantamento de temas e interesses, selecionamos os materiais que darão subsídio ao trabalho, não tem nada pronto.

Gravura produzida por estudantes para livro de cordel. Foto: reprodução
Gravura produzida por estudantes para livro de cordel. Foto: reprodução

Para dar um exemplo, cito um projeto que realizamos, intitulado “O mar é nosso”. Dentro da temática do mar, estudamos poemas, histórias, canções, pinturas… Nos textos, tanto em português como em inglês, exploramos o vocabulário, formas de expressão que introduzem esse universo do mar e instrumentalizam os estudantes.  

Portal CENPEC: Existe parceria com universidades no desenvolvimento dos projetos dentro da proposta de currículo caiçara?

Iaci Sagnori de Mattos: Nós temos parceria com a UFF de Angra dos Reis, por meio da formação continuada com os professores desenvolvida pelos professores Lício Monteiro e Domingos Barros Nobre, que nos orientam na elaboração dessa proposta de currículo diferenciado.

Projeto "Uma outra história de Paraty”, registro pelos estudantes de narrativas de anciãos das costeiras em Paraty.  Foto: arquivo pessoal.
Registro pelos estudantes de narrativas de anciãos das costeiras em Paraty. Foto: arquivo pessoal

Além do guia turístico, realizamos, com orientação da UFF, uma pesquisa baseada em entrevistas com anciãos das comunidades da Praia do Sono e do Pouso da Cajaíba. Esse projeto deu origem ao Caderno Pedagógico Uma outra história de Paraty, organizado por mim junto com Lício Monteiro, Domingos Nobre e Indira França, com a participação de diversos autores.

A proposta do projeto era, com base nessas entrevistas, compilar as narrativas que contassem um pouco da história de cada comunidade. Essas narrativas seriam registradas pelos estudantes e comporiam um livro para ser apresentado na Festa Literária de Paraty (Flip) do ano passado. O formato desse material foi sendo construído ao longo do projeto.

Oficina de cordel. Foto: arquivo pessoal
Oficina de cordel. Foto: arquivo pessoal

Na última edição da Flip, o autor homenageado foi Euclides da Cunha, cujo principal livro é Os sertões. Estudamos um pouco sobre Canudos, a composição social da época, trouxemos a linguagem do cordel e da gravura. Tiago Alvarenga, artista plástico que citei, nos ajudou nesse projeto, desenvolvendo uma oficina de gravuras em E.V.A., um material que temos na escola e é mais simples de ser manipulado. A ideia inicial era criar um texto em versos inspirado na linguagem de cordel como uma introdução ao livro de entrevistas com os anciãos. Mas o trabalho foi ganhando corpo e ao final o livro todo foi escrito nesse formato.

No ano passado, a Flip contou com uma Casa de Cordel e nosso livro, intitulado O Pouso, Caiçara e a Luta – em referência às três partes que compõem a obra de Euclides da Cunha (A Terra, O Homem e A Luta) – foi apresentado lá e em outros espaços. Os alunos recitaram seus versos, mostraram as gravuras que criaram, deram autógrafo… A turma do 9o ano, a primeira a se formar no segundo segmento nessas comunidades, vendeu seus cordéis para organizar uma viagem que fizemos no final do ano para a cidade do Rio de Janeiro.

Capa do livro O Pouso, Caiçara e a Luta. Foto: reprodução
Capa do livro. Foto: reprodução

Sou caiçara do Pouso
Adoro este lugar
Aqui tem tantas belezas
Que por aí não vai encontrar


Chovendo ou com sol a brilhar,
O mar daqui é tão perfeito
Pra nadar, remar ou mergulhar,
Que nos divertimos de todo jeito.”

Poema “O Pouso”. In: O Pouso, Caiçara e a Luta.

Portal CENPEC: Na sua visão educadora, qual é a importância de projetos como o Treboada, de reconto de causos caiçara? E como esse trabalho pode contribuir para uma educação significativa aos estudantes oriundos de comunidades caiçaras?

Iaci Sagnori de Mattos: Eu conheci o trabalho de Neide Palumbo por meio da campanha de financiamento do projeto Treboada. Cheguei a ver um vídeo em que ela contava um causo e achei muito interessante. É uma pessoa que tenho muita vontade de me aproximar. Inclusive estamos em contato com as Secretarias Municipais de Educação de Ilhabela e São Sebastião, que conheceram nosso trabalho e manifestaram interesse em levar essa formação diferenciada para os professores das comunidades caiçaras locais.

Conheça o projeto Treboada, aqui no Portal CENPEC Educação

Sobre o Treboada, destaco a importância do registro dessas histórias e manifestações culturais, que são conhecimentos orais, transmitidos de geração a geração. Mas a globalização está chegando aos lugares mais remotos e a tendência é que esses conhecimentos se apaguem nesse processo.

O trabalho de uma professora e contadora de histórias com ela, que há tantos anos trabalha com essas comunidades e conhece a fundo os meandros desses saberes, é fundamental. É uma forma de o mundo letrado, o conhecimento escolar, acadêmico vir não para silenciar, mas sim para salvaguardar os conhecimentos oriundos da oralidade, valorizando essas tradições dentro da comunidade e cultivando entre as crianças um olhar de admiração para que elas próprias se tornem as guardiãs desse patrimônio.

O ideal seria que cada comunidade tivesse uma guardiã com Neide Palumbo, com tanto amor, empenho e conhecimento sobre a cultura tradicional. Educadoras como ela e iniciativas como a Treboada inspiram os professores mais jovens. Espero ter a oportunidade de conhecê-la e compartilharmos experiências.


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