Cidade Adentro: Letramento Político e Educação Integral
Neste artigo, o educador José Luiz Adeve (Cometa) fala da relação entre educação de jovens e democracia, sustentabilidade e tecnologias
O homem não vê o universo a partir do universo, o homem vê o universo desde um lugar.”
Milton Santos
Pensar a cidade como forma sensível de civilização exige processos e itinerários socioeducativos que dialoguem com inovações cívicas. As comunidades que vivem realidades complexas de subcidadania necessitam ter acesso às inovações e tecnologias que dialoguem com o desenvolvimento e a qualificação de sua participação comunitária. Isso envolve aliar tecnologias de comunicação, interculturalidades, linguagens midiáticas e fluxos informacionais que permitam funcionalidades informativa, participativa e interativa, a fim de promover participação social, processo educativo e entendimento por parte das pessoas que vivem as vulnerabilidades provocadas por modelos ineficazes de desenvolvimento urbano, que até hoje não garantiram o direito desse público à cidadania.
Assim, desde 2008, trilhamos um caminho com adolescentes e jovens de São Miguel, zona leste do município de São Paulo, dentro e fora da escola com projetos de educomunicação, intervenção social, processos e ações voltadas à conexão dos espaços educativos com os territórios, com os lugares onde se vive. São adolescentes, jovens e educadores com os quais desenvolvemos juntos, habilidades e jogos arte – comunicacionais para provocar descobertas e estímulos sensoriais – ecossistêmicos nas linguagens audiovisual, literária, musical, poética e de reflexão histórica – política – social.
Foto: NCC São Miguel no Ar
Assim, passamos a conviver com as possibilidades de produção de conhecimento alimentada por inteligências colaborativas, facilitadas também pelas tecnologias da contemporaneidade. Experimentações dentro e fora dos muros das escolas, modos e processos com finalidade “comunicativa – comunitária” organizados em sequências didáticas em sintonia com as atividades permanentes e ocasionais das escolas ou dos projetos, atividades nascidas e geradas nas descobertas dos jovens em relação aos campos de atuação, autorias e intervenções nos territórios físico e subjetivo.
Aprendemos nessa jornada que os impactos sonhados e projetados pelos jovens ao identificarem possibilidades da exercer ativamente a participação, o sentimento e a corresponsabilidade pela vida e pelo equilíbrio dos seres animados e inanimados de um lugar, num princípio de leitura do mundo, configura uma postura política. Isso sempre nos estimulou a prosseguir num caminho que identificamos talvez como transdisciplinar, o que, mais tarde, relendo Basarab Nicolescu (autor de Pedagogia da vida), propõe a consideração de uma realidade multidimensional, estruturada em múltiplos níveis, substituindo a realidade unidimensional, com um único nível.
Foto: NCC São Miguel no Ar
Dessa forma, adentramos um aprendizado que passa a ter o direito à cidade como pressuposto fundamental, visitando e compreendendo a importância das plataformas colaborativas, do controle social e do “mangue ativo gerador” de propostas para mudar as múltiplas realidades, advindas do interesse, sobretudo dos jovens, em estudar o lugar onde vivem, compreender a cidade sistêmica e organicamente a partir de aprendizados sobre a função social e a organicidade do território e, nessa ambiência, provocar o olhar para a comunidade e para a escola pública, nosso objetos mais afetivo numa certeza de que a escola se reinventa sempre.
Seguimos assim um caminho que, além de constatar e intervir, remete a todos com os quais aprendemos e nos relacionamos conhecer com profundidade o real e o possível somado à necessidade da existência de lampejos utópicos numa dimensão política, entre os sonhos e o necessário para a redução das desigualdades. Esse caminho requer trabalhar com o altruísmo da reciprocidade, com o compartilhamento e o engajamento em rede, considerando o presencial e a ocupação cultural e pedagógica do espaço público, importantes “arregimentadores” de saberes, sentidos e de ideias.
Entendemos também que as tecnologias da contemporaneidade impulsionam a multiplicação de espaços e rodas para semear um ativismo com potência democrática e estética política que permitem estudar as causas da pobreza e o surgimento de uma nova forma de se educar e viver para a igualdade e equidade. Isso implica ter consciência de que é nosso corpo, nossos sentidos e ideias que movimentam a rede (autoria), de que habitar é mais do que estar aqui, ali, acolá, habitar é se relacionar, compor e entender o organismo da cidade e seu funcionamento para interagir e, consequentemente, voltar-se para uma cultura participativa e democrática.
Foto: NCC São Miguel no Ar
Existem em São Paulo muitas experiências educomunicativas estimuladas, sobretudo, pela sociedade civil que dialogam com escolas públicas e territórios que provocam mais participação e ativismo comunitários. Nossas experiências na região de São Miguel e Itaim permitiram configurar um universo relacional de educadores e de educandos, colaboradores geradores de experiências, práticas e intervenções que dialoga com o ciclo autoral, também as recentes mobilizações dos jovens do ensino médio e, recentemente identificados com alguns itinerários formativos dos professores da rede municipal.
Assim, o que foi construído colaborativamente passou a contribuir para com as interações e relações entre as pessoas no sentido de fazer com que as potências juvenis, no nosso caso com uma metodologia que se identifica com os conceitos da educomunicação, possam comungar propostas e discuti-las. Para tanto, o Galpão de Cultura e Cidadania teve papel preponderante, pois abrigou desde 2008, um verdadeiro laboratório real e, sobretudo, encontros entre as escolas do Projeto Jovem Comunica, para que as trocas, o compartilhamento e um ativismo coletivo pudessem ser percebidos por todos, frutos do trabalho de educadores da Fundação Tide Setubal no chão das escolas com grupos híbridos de educadores e educandos.
Muitas das 23 escolas com as quais nos relacionamos ao longo desses oito anos desenharam a cada encontro uma rede de comunicação e de produção de conhecimento compartilhados sobre seus territórios e saberes, com suas intervenções e exemplaridades. Os momentos vividos e as experiências fortaleceram nossas intenções de levar adiante um desejo de dialogar ainda mais com as escolas públicas de São Miguel, numa perspectiva possível de investir num movimento que permita contribuir para um movimento epistemológico da periferia para o centro, compartilhando os saberes com a cidade.
Foto: NCC São Miguel no Ar
Hoje participamos do processo de provocar o pensar e o agir para o fortalecimento da escola pública, por meio das formações de educadores dos ciclos Interdisciplinar e autoral, aprendendo muito com educandos, educadores e gestores. E há dois anos um grupo de jovens do Projeto Intermídia Cidadã, participantes ativos das ações de mobilização comunitária no Jardim Lapenna, suas intervenções arte – comunicacionais no espaço público, verdadeiros colaboradores das ações nas escolas públicas e nas ruas de São Miguel do que passamos a chamar de letramento político, em meio ao desenvolvimento de habilidades e de conhecimento em sintonia com intencionalidades de sustentabilidade social, beneficiados por uma política pública municipal de transferência de renda, bolsa-trabalho, idealizaram um aplicativo denominado “Cidade Adentro”, que tem como proposta incentivar os debates virtuais a cerca do encaminhamento das políticas públicas e oferecer informações sobre a esfera política de uma cidade.
Mesmo que esse projeto não seja materializado, o processo de criação foi vivido com ações e estratégias protagonizadas por esses mesmos jovens na relação com a comunidade, também por meio, do que denominamos, letramento político. Essa ideia dialoga com tecnologias digitais e com telefonia celular pela sua ubiquidade, uma verdadeira proposta de mídia cívica com potencial para interagir com a cidade e exercer um papel preponderante para disseminar a cultura da participação na polis.
Essa cocriação juvenil despertou o interesse de atores que tem como viabilizar tecnicamente seu desenvolvimento, o processo de disseminação / difusão e a dinâmica participativa que advém de suas possibilidades. Quiçá um dia, pelo menos, possa ser considerado uma semente e colaborar para uma finalidade voltada ao desenvolvimento de localidades da periferia paulistana. Esse é um dos frutos dessa caminhada, o qual pode despontar, porém tantos outros olhares, significados, impactos e frutos já despontaram, como por exemplo, jovens que estão na universidade estudam e se aprofundam em questões que vivenciaram nas ações e provocações educomunicacionais identificadas com o desenvolvimento humano.
Foto: NCC São Miguel no Ar
Os jovens do Projeto Intermídia Cidadã, lá do Jd Lapenna, seguiram seus caminhos, porém deixaram um legado e uma experiência de que educar é mais do que aprender e ensinar é saber intervir. Como disse o geógrafo Milton Santos: “O homem não vê o universo a partir do universo, o homem vê o universo desde um lugar”. Olhando para o território em que vive sob a perspectiva dos direitos, desejamos, sempre, que a comunidade torne-se protagonista da sua luta por direitos, verdadeiros agentes transformadores da própria história.
Foto: arquivo pessoal
Sobre o autor
José Luiz Adeve, o Cometa, é educador, comunicador, escritor, poeta, músico, atuando como coordenador do Núcleo de Comunicação Comunitária na Fundação Tide Setubal.
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