A gestão de Paulo Freire

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A gestão de Paulo Freire

Entrevista com a educadora Meyri Venci Chieffi, do Coletivo Paulo Freire: prioridades e os desafios que Paulo Freire enfrentou à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, entre 1989 e 1992. Especial #100AnosPauloFreire

Por Stephanie Kim Abe

“Aos que fazem a educação conosco em São Paulo”. Esse é o nome do primeiro documento de Paulo Freire como Secretário Municipal de Educação da capital paulista, publicado no Diário Oficial no dia 1º de fevereiro de 1989 (imagem abaixo).

Foto: reprodução

A educadora Meyri Venci Chieffi relembra esse momento:

Olha já o jeito afetivo dele. A gestão começou assim, com uma carta aos professores, em que ele vai falando que escola é essa, que tem que ser séria, mas bonita, que tem que ter alegria. A primeira frase é ‘aprender é gostoso. Mas exige esforço’.”

Meyri Venci Chieffi

Meyri foi diretora da divisão de ensino de 1º e 2º graus da Diretoria de Orientação Técnica durante a gestão de Paulo Freire, que durou entre 1989 e 1992, no governo de Luiza Erundina (PT). Ela também integrou os quadros do Cenpec Educação, fazendo parte da equipe do Projeto Raízes e Asas.

Foi, talvez, o primeiro grande projeto do CENPEC. Foi uma via de mão dupla: nós trouxemos as aprendizagens da experiência no governo municipal, e o Cenpec nos acolheu. Durante muitos anos desenvolvemos um trabalho de currículo reconhecido e valioso em redes de estados – que nós não tínhamos experiência até então.”

Meyri Venci Chieffi

Raízes e Asas

Por meio do apoio técnico e profissional a escolas e profissionais da educação com participação da comunidade, a iniciativa Raízes e Asas tinha como objetivo melhorar a qualidade do Ensino Fundamental, garantindo o sucesso escolar dos(as) alunos(as) na escola pública. O projeto ocorreu de 1993 a 1998, com apoio do Itaú, do Ministério da Educação (MEC) e do Unicef.

A iniciativa deu origem à coleção Raízes e Asas, que discute caminhos e alternativas para a concretização do projeto político pedagógico da escola. O material é rico e possui publicações e vídeos que trazem experiências inspiradoras desenvolvidas em diversas regiões do país. Os vídeos estão todos disponibilizados na área Acervo do Portal Cenpec.

Acesse aqui todo o conteúdo sobre a Coleção Raízes e Asas


Atualmente, Meyri integra o grupo de coordenação do Coletivo Paulo Freire, que tem dois grandes objetivos: a defesa da escola pública e do legado do pensador brasileiro, principalmente referente à sua atuação como gestor. O Coletivo tem produzido conteúdo, mobilizado educadores(as) e se posicionado frente a sérias questões da educação brasileira, além de feito lives sobre a educação na pandemia e o centenário de Paulo Freire.

Selo #100AnosPauloFreire

O Portal Cenpec também celebra a data, publicando, ao longo de 2021, o Especial #100AnosPauloFreire, com matérias mensais sobre o educador, em homenagem e reconhecimento ao seu importante papel no pensamento e nas práticas educacionais brasileiras.

Na entrevista a seguir, Meyri conta quais foram as prioridades, os desafios e as mudanças promovidas pela gestão de Paulo Freire na rede municipal de São Paulo. Confira.


Portal CENPEC: Em que contexto e com qual expectativa se deu a vinda de Paulo Freire ao cargo de Secretário Municipal de Educação?
Meyri Chieffi. Foto: arquivo pessoal

Meyri Chieffi: Era um momento muito especial da história brasileira, pois sua gestão ocorreu entre 1889 e 1992 – justamente o período da redemocratização em nosso país. Era um período de muita esperança pra nós, professoras e professores municipais que tínhamos passado toda a nossa juventude e desenvolvimento da nossa docência em uma época de ditadura. Eu, por exemplo, trabalhava na rede há mais de 20 anos, conhecia-a muito bem.

Além disso, estávamos saindo de uma prefeitura do Jânio Quadros (1986 – 1989) que foi extremamente autoritária. Pra você ter uma ideia, ele começou o seu governo queimando todo o material que o governo anterior, de Mário Covas (1983 – 1985), mais progressista, tinha produzido juntamente com educadores, e punindo uma série de professores da rede.

Então nós não contávamos com a eleição da Luiza Erundina. Foi surpreendente e sabíamos que estávamos diante de um momento muito especial. Era a primeira vez que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumia a cidade de São Paulo, em sua complexidade, e a primeira vez que uma mulher assumia a prefeitura da capital. Aliás, uma mulher nordestina comprometida com as causas sociais, em uma cidade conservadora como essa. Eu fico arrepiada de lembrar desse momento!

Estávamos saindo desse sufoco autoritário, quando de repente a gente vê que a Luiza convida Paulo Freire para o cargo de gestor, e ele aceita. Acho que, nesse momento, os professores progressistas da rede se irmanaram, se deram as mãos, e pensaram: nós vamos fazer de tudo pra fazer uma política decente pra essa cidade!

Se por um lado estávamos felicíssimas com essa vitória, estávamos preocupadíssimas também, porque teríamos que implementar uma política que fizesse jus a tudo aquilo que a gente acreditava.

Portal CENPEC: Em sua visão como educadora que viveu o período, qual foi o principal legado deixado pela gestão Paulo Freire?

Meyri Chieffi: Foi a própria construção e o desenvolvimento da proposta de gestão pública criada nesse período. Com o professor Paulo Freire na sua condução, criamos uma proposta inovadora, democrática e participativa.

Nossos três grandes princípios, que iluminavam nossas ações, eram autonomia, participação e descentralização. De cara, tínhamos quatro grandes prioridades: 

  1. democratização da gestão, que era criar mecanismos para aumentar a participação na tomada das decisões. Nós reativamos os conselhos escolares, que garantiam a participação das famílias e alunos(as) e haviam sido criados em administraçãões anteriores, e começamos a fazer colegiados nos órgãos intermediários e centrais. Realizávamos reuniões semanais, fazendo com que as informações começassem a circular. O que vinha da ponta da rede chegava para nós, que tínhamos que tomar as decisões. 
  2. nova qualidade de ensino, que era muito em cima do que eu e a minha equipe trabalhamos. Isso significava tanto uma reorientação curricular na escola (ou seja, o que e como ela deve ensinar, como avaliar etc.), como a formação dos educadores. Havia a possibilidade de assessoria e de pagamento extra para os professores para as reuniões, em ambas as atividades.
  3. democratização do acesso e da permanência – nós queríamos abrir mais vagas pra colocar mais gente dentro da escola. Entrava aqui a construção e reforma de prédios, as compras, a abertura de vagas no período noturno – naquela época, as escolas muitas vezes ficavam fechadas à noite. Foram construídas 90 escolas nesse período, o que mostra que nós apostamos na educação pública como responsabilidade do estado – diferente de gente que hoje em dia aposta na privatização do ensino.
  4. política de educação de jovens e adultos (EJA), um tópico muito próximo do professor Paulo Freire. Como a rede municipal poderia trabalhar no sentido de atender jovens e adultos(as) trabalhadores(as)? Fomos criando possibilidades para a EJA dentro e fora da rede. Além de abrir as escolas à noite, tivemos a criação do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova) – que existe até hoje e que trabalha a educação não formal, fora da escola -, as associações de bairro, igrejas e empresas etc. Criamos também, entre outras estratégias, a Frente dos Funcionários, que oferecia cursos para os trabalhadores de outras secretarias que não tinham o ensino fundamental completo.

Tudo isso foi costurado pela valorização dos educadores, uma ação fundamental pra que tudo isso acontecesse. Naquela época, o professor ganhava pelo tempo em que ficava em sala de aula, com algumas horinhas a mais para reunião. Começamos a dar adicional de 30% a mais para trabalhadores do noturno e 50% para os educadores que trabalhavam em escolas de difícil acesso. No final do governo, nós instituímos a jornada de tempo integral. Ele trabalhava 20 horas, ficava 10 horas a mais na escola e ganhava por 40.

Foi esse conjunto de ações que definiu a nossa política, que foi uma construção conjunta, e que hoje é referência de gestão pública em educação. Não teríamos a capacidade de construir sozinhos. Então, na minha visão, o principal legado que o professor Paulo Freire e nós todos deixamos foi dizer que é possível fazer uma gestão pública compromissada com a escola de qualidade social –  que pensa a emancipação do sujeito, que tem um currículo que explica a realidade, que vê o estudante como um cidadão que vai questionar e entender os seus direitos -, desde que você tenha vontade política e gente preparada pra isso. 

Portal CENPEC: E os principais desafios enfrentados?

Meyri Chieffi: Foram muitos. A começar pelo conservadorismo – eu diria até reacionarismo -, que tivemos que enfrentar o governo inteiro, que vinha da grande mídia, dos grupos políticos, da cidade.

Depois, aqueles intrínsecos ao nosso trabalho, como os desafios típicos de um processo participativo como o que construímos: chegar a consensos, manter a unidade na diversidade etc.

Esse processo enfrentou dificuldade também porque exigia uma mudança interna de nós, educadores. Quando você está acostumado, já tem hábitos arraigados e uma prática de coordenador pedagógico ou de professor, não muda de uma hora pra outra. Quando você se vê questionado a descontruir essa tua prática é preciso um processo e mecanismos que te ajudem a fazer isso em conjunto, ajudando o outro a fazê-lo.

Um exemplo bobo: a lista de meninos vinha antes da lista de meninas. Por quê? O que isso pode significar? Não tem nada a ver? Significa que os meninos vêm antes das meninas? Era preciso problematizar desde questões simples até coisas mais sérias – como os índices de retenção. Na 5a série (atual 6o ano), o índice era de 30%, e achávamos normal. Era o esperado, no final do ano.

Começamos a nos questionar sobre tudo isso, através dos grupos de formação, tentando mudar e refletir sobre a prática e a partir dos atores que estão por trás dela, os docentes. Foi um desafio.

Portal CENPEC: Falando sobre mídia, A Folha de S. Paulo publicou uma reportagem, logo que Freire assumiu a gestão da Secretaria, em 1989, que se iniciava assim:

“‘A gente cheguemos’ não será uma construção gramatical errada na gestão do Partido dos Trabalhadores em São Paulo”.

Essa frase gerou grande polêmica. Qual era o olhar de Paulo Freire para as diferentes culturas e leituras de mundo dos/das estudantes?

Meyri Chieffi: Essa reportagem já sinalizou pra gente o que seria a oposição da grande mídia. O professor Paulo Freire foi o primeiro a ser escolhido, entre todo o secretariado – que era muito bom, e composto por profissionais competentes, do ponto de vista político e técnico. Dizíamos que a cidade contava com um “verdadeiro ministério”.

A frase da reportagem é uma meia verdade, pois foi usada parcialmente pela Folha. Ela expressa a convergência entre essa reflexão da academia sobre a língua com a concepção freiriana da educação. Ela trata do que a gente chamava de “variações linguísticas”. Nós já havíamos discutido essa questão há alguns anos e havia grupos avançados da USP e da PUC olhando pra isso.

A gente entendia que a população tem variações linguísticas, que estavam presentes em todos os alunos e professores da rede municipal. Cabia à escola não ter preconceito linguístico e ensinar a norma culta. Explicar para os meninos que todos fazem escolhas linguísticas diante do contexto em que estão. Se está entre um grupo de amigos, a pessoa faz algumas escolhas linguísticas da informalidade; se está falando com um chefe, há uma formalidade maior.

Então a ideia era lidar com essas questões no currículo escolar, respeitando o jeito e a forma de comunicação do aluno quando ele chega na escola. Se o professor julga essa fala como errada, significa que ele não tem comprensão das variações e que está indicando que a cultura do aluno é inferior. E a nossa concepção era de que há culturas diferentes, não inferiores ou superiores. Foi na gestão freiriana que esses conteúdos vieram mais fortemente para discussão, em formação continuada.

Variações línguísticas e oralidades: navegue pelo nosso mapa colaborativo
Produzido com a assessoria do linguista Carlos Alberto Faraco (UFPR), o especial multimídia conta com reflexões teóricas e dicas pedagógicas para trabalhar os diferentes sotaques, sintaxes e vocabulários, além de áudios e vídeos enviados por falantes da língua portuguesa de diferentes regiões do Brasil e do mundo.
Confira!

Portal CENPEC: Um dos princípios defendidos por Freire, apresentado com destaque em sua obra Pedagogia da autonomia, é: “Ensinar exige pesquisa”. Como foi o trabalho de vocês na formação de professores?
Amazon.com.br eBooks Kindle: Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à  prática educativa, Freire, Paulo
Capa: reprodução

Meyri Chieffi: Esse foi o nosso coração, porque muitas de nós éramos professoras e coordenadoras pedagógicas. Nós sabíamos que não adiantava fazer um cursinho aqui, outro ali, que era preciso uma formação permanente. Também sabíamos que não adiantava fazer formação para o coordenador pedagógico ou para o professor de história, achando que ele vai mudar a escola.

Era preciso atender o maior número possível de profissionais, porque, quando a escola entra coletivamente numa formação, cria um movimento de transformação. Quando pouca gente entra, mesmo que queiram falar da formação, não tem clima ou espaço. E também não podia ser uma formação que não se refletisse na mudança na prática do professor. Aquela que você assiste, acha linda, mas chega na escola e não tem nada a ver.

Logo no começo do governo, fizemos uma grande problematização sobre o currículo, que durou dois dias e ocorreu em todas as escolas. A coordenação desse processo estava à cargo da professora Ana Maria Saul, freiriana da PUC. Eram questões simples para os professores discutirem em grupo: o que e como estão desenvolvendo, quais conteúdos, como estão avaliando, se gostariam de fazer algo que não estavam desenvolvendo, se havia conteúdo desnecessário, que espaços gostariam de ter pra realizar suas atividades.

Fizemos essa ação com grupos de pais e alunos também. Depois de sistematizarmos, ficamos com a visão dos pais, dos professores e dos alunos, e desenhamos a formação permanente e reorientação curricular a partir desse grande diagnóstico participativo.

Um dos formatos utilizados nas formações foi o “grupo de formação”, que bebia um pouco dos círculos de cultura. Os professores falavam das suas práticas e a partir desse olhar elegiam-se temas para estudar, que depois voltávamos para a prática. Tinha todo um ritual, com lanche, que criava um momento de acolhimento para estabelecer vínculos e dar coragem para os educadores externarem os seus dilemas pedagógicos. A metodologia foi muito reconhecida pela rede.

A reorientação curricular fornecia elementos pra tomada de decisões quanto à formação permanente. Conforme os educadores discutiam o projeto da escola e percebiam que, em determinado ponto eles sentiam dificuldade com o conteúdo, nós íamos mudando o programa de formação de educadores para incluir esses temas.

Foi assim que abordamos questões como orientação sexual; prevenção da aids; projeto pela vida, não à violência; combate à discriminação racial, educação ambiental e por aí vai. Eram temas debatidos em seminário, mesa redonda, curso etc.

Mas nós também sabíamos onde estavam os gargalos, por isso trabalhamos com professores da 5a série, com os das salas de leitura, com a questão das pessoas com deficiência. E propunhamos temas que não vinham da base – caso dos direitos humanos, que ninguém pediu e ainda assim criamos um trabalho de formação permanente nessa direção.

Foi um trabalho muito bonito. Demos cursos sobre o que são direitos humanos; preconceito e discriminação; Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que era bem recente; violência introjetada, direitos humanos e América Latina; dívida externa etc.

Seminários de Formação com Paulo Freire, 1990. Foto: Marcio Novais/Memorial da Educação Municipal de São Paulo

Foi nessa época que descobriram as ossadas de Perus, cemitério clandestino que escondeu corpos de presos políticos mortos na ditadura, e isso foi tratado nos cursos também. Foi a primeira vez que temas delicados entraram em discussão. Tivemos gente chorando na formação, professor que relatou ter sido torturado, preso político etc.

Além disso, pudemos contar com intelectuais de renome que tinham conhecimento para debater esses temas, que se disponibilizaram a dar formação para os educadores e ir para os mais diferentes bairros, do centro a Guaianazes ou São Miguel. Dalmo Dallari, Maria Victoria Benevides, Antonio Carlos Cesarino, Paulo Singer, Ricardo Kotscho, Milton Santos, Antônio Carlos Fester foram alguns deles. 

Houve uma troca intensa com as universidades durante todo o governo. Enquanto docentes da PUC, USP e Unicamp traziam para nós os conhecimentos que estavam sendo debatidos na academia, eles mergulhavam na educação pública e levavam para a universidade o que verdadeiramente estava acontecendo na sala de aula. Eles verbalizaram isso pra gente o tempo inteiro.

Conheça aqui práticas educativas em direitos humanos.

Portal CENPEC: Conta um pouco sobre a reorientação curricular que vocês fizeram. Como era o currículo antes e que tipo de mudanças vocês trouxeram nessa reorientação?

Meyri Chieffi: Eu comecei a trabalhar na rede municipal em 1965, então passei por várias administrações. No início, o currículo era composto por pontos que deveriam ser tratados, por série escolar, e as avaliações vinham do departamento. Depois, nós tivemos guias curriculares, mais detalhados que os pontos anteriores, elaborados pela Secretaria e enviados pra nós. Quando começou a indústria do livro didático, eram esses livros que definiam o currículo.

Na administração de Mario Covas, houve um processo participativo de construção curricular. A Secretaria fazia uma proposta, enviava para as escolas, que discutiam e participavam. Elas mandavam de volta pra gestão e avançávamos um pouco mais. Era uma proposta bastante interessante, mas de currículo único, ou seja, igual pra toda a rede. Quando o Jânio entrou, houve o episódio da queima de livros em praça pública que falei anteriormente, e o livro didático voltou a reinar.

Nós fomos muito contrários a esses currículos prontos, que vêm de cima pra baixo. Mas, na nossa administração, não proibimos nada. Não proibimos o material didático e ainda devolvemos os guias curriculares produzidos no governo Mario Covas.

O que fizemos foi estimular um processo de que as escolhas curriculares seriam feitas nas escolas. O que queríamos era que o professor se sentisse sujeito na construção desse currículo também, e que fosse um currículo vivo.

Para essa reorientação curricular, seguimos dois caminhos: estimulamos as escolas a propor e realizar projetos próprios, e lançamos um nosso, que se chamava Projeto da Interdisciplinaridade Via Tema Gerador. A escola que aderisse organizava um estudo da realidade local, junto com os professores, alunos e famílias.

Eles tinham um tempo, que não era pequeno, pra investigar e discutir sobre os arredores. Pensar o que essas pessoas comem, onde elas trabalham, o que fazem, que transporte usam, o que fazem nas horas livres, pra que era utilizado o rio ao lado etc. Quando os dados chegavam na escola, os professores os colocavam em grandes quadros (segurança, lazer, transporte, habitação, educação), e viam que escola era aquela e como podiam tratar dessas questões no currículo, de forma interdisciplinar.

Era um projeto ousado, porque a gente percebeu que não conhecia os alunos e o entorno da escola, e que os professores podiam tomar decisões curriculares baseada nessas informações. No final da gestão, nós tínhamos 180 escolas por adesão envolvidas.

Sabíamos que o professor ia trazer esse cotidiano e essas questões da realidade pra dentro da escola. Também contamos com os temas das formações (como direitos humanos), porque conforme o pessoal ia se engajando na formação permanente, o currículo da escola melhorava, ficava mais consistente e denso. Ao juntarmos as escolas, começamos a ter uma unidade nessa diversidade.

Portal CENPEC: Quais condições foram dadas pra que essa reorientação curricular acontecesse e como ela foi recebida pelas famílias?

Meyri Chieffi: Nós demos muitas condições, porque sabíamos que se você faz uma proposta desse curriculo criado, vivo, participativo, você tem que ter um processo, que não para. Pra apoiar essas discussões, você tem que ter pessoal, assessorias, material, horário de trabalho coletivo, material na sala de leitura etc. Os educadores só se mobilizam dessa forma se acreditarem na proposta, porque não é fácil.

Quando levamos essa questão das famílias, o professor Paulo Freire falou: “Professoras, nós temos que pedagogizar os pais. Eles não tem obrigação de saber qual escola é melhor do que outra, porque o universo deles não é educação”.

Daí a importância do trabalho que a escola ia fazer com os conselhos escolares, de trazer a família e dar elementos para que ela pudesse entender o que é uma boa escola – que é a que está a favor da população, de uma transformação social, e da autonomia, e não aquela que está trabalhando na direção contrária, ou seja, voltada para a submissão dos sujeitos, uma educação bancária.

Portal CENPEC: Uma das propostas de Paulo Freire na Secretaria foi a eleição de diretores pela comunidade escolar. No entanto, essa proposta foi rejeitada por professores e gestores. Embora tenha aceitado a derrota, Freire comentou:

“O obstáculo maior que enfrentamos e temos que enfrentar para realizar a mudança da cara da escola é o ideológico. Não é fácil remover de nós o gosto das posturas autoritárias”.

Pode comentar esse episódio e apresentar sua leitura sobre essa fala de Freire?

Meyri Chieffi: O professor Paulo Freire gostava muito de contar casos e construir suas ideias a partir do cotidiano. Era gostoso ouvi-lo, tanto que quando ele falava, as salas sempre se enchiam de pessoas. Um dos causos que ele contou uma vez acho que ilustra essa questão. Ele foi a um lugar ser homenageado, e entrou na fila do elevador. De repente, outra pessoa chegou e passou na frente de todo mundo. O ascensorista deixou a pessoa ir antes e pediu para os outros esperarem. Quando chegou a sua vez, o ascensorista perguntou ao professor o que ele ia fazer em tal andar, e Paulo Freire explicou que era o homenageado. “Por que o senhor não me falou? Você tinha que passar na frente de todo mundo”, disse o ascensorista.

Para Paulo Freire, essa situação ilustra como o autoritarismo e a hierarquia estão introjetados na sociedade em geral. Inclusive nele e em nós, professores, e possivelmente nas nossas práticas. Por isso ele falava que tudo tinha que ser debatido, e que não obrigaríamos ninguém a nada.

Encontro de serventes e vigias com Luiza Erundina e Paulo Freire na EE Caetano de Campos, 1989. Foto: Marcio Novais/Memorial da Educação Municipal de São Paulo

No caso dos diretores, o professor Paulo Freire acreditava que, por ter como foco os relacionamentos com os estudantes, os familiares, as instituições fora da escola, o objeto do trabalho deles era político.

Já o dos coordenadores pedagógicos era técnico, porque precisavam saber como o aluno aprende, as questões das diferentes áreas etc. Por isso ele defendia que os coordenadores deveriam ser concursados, e os diretores eleitos.

Como tudo era discutido, nós levamos aos conselhos, e o que chegou da rede era que eles não queriam eleição para diretores. Isso foi respeitado.

Portal CENPEC: O que faltava a Paulo Freire como gestor?

Meyri Chieffi: O professor Paulo Freire era um pensador da educação, um filósofo, muito querido pelos professores e que inspirava práticas e reflexões pedagógicas ousadas em todos os profissionais da rede. Ele não se interessava por aquela coisa burocrática, em responder ou saber perguntas como “quantas cadeiras têm na sala”. As pessoas do gabinete nem deixavam essas questões chegarem a ele, porque ele não se interessaria e não nos ajudaria.

E tudo bem, porque a equipe toda entendia muito bem dessas questões. Por exemplo, quando começamos com a ideia do projeto de interdisciplinaridade, sabíamos que precisávamos dar condições para os professores realizarem os estudos. Pensamos em 10 horas semanais, e levamos para o Mário Sérgio Cortella, que na época era o chefe de gabinete. Ele nos perguntou quantos docentes, fez as contas, olhou o orçamento e viu que era possível fazer a proposta da jornada integral. A questão nem foi levada a Paulo Freire, porque todos sabiam que ele fazia questão que o professor fosse bem pago.

Então diria que faltou aquilo que muitas pessoas poderiam pensar que era importante num secretário, que é o traço do gestor público burocrático, e que nós nunca achamos que fosse.


Live “A gestão de Paulo Freire na cidade de São Paulo” na sexta-feira, dia 19

Com a participação da professora Ana Maria Saul (PUC-SP) e o professor Mário Sérgio Cortella (USP), o Coletivo Paulo Freire promove a live “A gestão de Paulo Freire na cidade de São Paulo” nesta sexta-feira, dia 19/03, às 17h. A transmissão acontece pelo canal no YouTube do Coletivo. Faça aqui a sua inscrição.

Ana Maria foi diretora do setor técnico durante a gestão de Paulo Freire, e Cortella substituiu o gestor ao deixar o cargo, em 1992, dando continuidade às políticas implantadas. Os dois convidados realizam um diálogo entre o que foi a gestão freiriana e o que ela seria hoje – paralelo que deve interessar aos que não viveram o período.

Inscreva-se e acompanhe a live no canal do YouTube do Coletivo Paulo Freire.


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