Eu sempre fui fascinado por adultos não alfabetizados e moradores de grandes cidades: eles vivem numa sociedade que se organiza com base na escrita, que estigmatiza aqueles que não dominam as habilidades de ler e escrever com alguma proficiência e onde é a assinatura que vale, não a palavra dada, como em muitas comunidades em que a oralidade ainda reina.
Como eles conseguem se virar nesse mundo que, em princípio, os exclui? Que estratégias encontram para trabalhar, para se movimentar na cidade, para ter acesso a informações, para conhecer e assegurar direitos, para participar da vida política, para construir uma identidade?
Quase sempre, quando conversava com esses adultos, em situações cotidianas ou de pesquisa, o que primeiro aparecia era a quase impossibilidade de se dizer: analfabeto, analfabeto. “Ando com a vista ruim”. “Estou precisando de óculos”. “Estudei muito pouco”. “Lá na roça não tinha escola”.
A memorização e a oralidade são as estratégias mais importantes para os adultos não alfabetizados se inserirem na cultura letrada.
A minha impressão é de que aqueles que mais recusavam o estigma eram os que tinham maiores “níveis” de letramento ou, dizendo de modo mais preciso, eram os que mais participavam da cultura letrada. Haviam vindo para a grande cidade há mais tempo; estavam integrados ao mundo do trabalho; alguns tinham uma intensa participação social, por meio de associações comunitárias, religiosas ou políticas.
A participação na cultura letrada se fazia por meio de diferentes estratégias. Duas eram as mais importantes e motivo de muito orgulho para essas pessoas. A primeira é a memorização – desde receitas dadas por uma “patroa” ou aprendidas por meio da televisão até nomes de produtos à venda na mercearia em que se trabalha.
A segunda é a própria oralidade, por meio da qual o não alfabetizado lê e escreve com apoio de alguém ou de uma rede de pessoas que estabelece uma mediação com o mundo da escrita: pergunta-se, pede-se para escrever, conversa-se sobre o que está escrito, debate-se.
A alfabetização é parte do direito à educação. Numa sociedade que não assegurou a muitos esse direito, é preciso ainda assegurá-lo. Em qualquer idade.
Eu já aprendi muito com todos esses adultos sobre modos de ver o mundo, seja com os que participam mais da cultura letrada, seja com aqueles que têm uma participação muito limitada nessa cultura. O maior ou menor iletrismo não impedia suas possibilidades de participação política, não impedia que tivessem consciência, mais que outros grupos mais letrados, das dificuldades que viviam e de injustiças que sofriam. Mas queriam aprender a ler e a escrever. Queriam, mesmo os que, em algum grau, participavam da cultura letrada, se alfabetizar.
Queriam por dois motivos. Primeiro, para romper a exclusão simbólica, o estigma, e suas consequências objetivas, que o estatuto de não alfabetizado gera, como, no caso dos mais jovens, o acesso ao mercado de trabalho e à escolarização e seus certificados. Segundo, especialmente no caso dos mais velhos, para conquistar uma independência e uma autonomia sempre fugidia.
Eu fico pensando nesses adultos, quando se debate idade certa para se alfabetizar. Para se fazer um compromisso ou um pacto da sociedade pela alfabetização, o “slogan” ou “mote” é bom. É preciso, com certeza, de um ponto de vista curricular, definir em que momento da escolarização se espera que as crianças estejam alfabetizadas (embora, sem dúvida, muitas possam se alfabetizar antes desse marco final). É fundamental fazer essa definição. Mas é incorreto usar o termo “idade”.
A alfabetização é parte do direito à educação. Numa sociedade que não assegurou a muitos esse direito, é preciso ainda assegurá-lo. Em qualquer idade.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2017, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 11,5 milhões de pessoas com mais de 15 anos não alfabetizadas, o que corresponde a 7% da população. Esse índice representa queda de 0,2% em relação ao ano anterior, mas não se alcançou a meta de 6,5% estipulada pelo Plano Nacional de Educação (PNE) ainda para 2015. Entre pessoas de 60 anos ou mais, a taxa é de 19,3%.
Antônio Gomes Batista
Doutor em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é professor associado da mesma instituição e professor convidado do curso de Especialización y Maestría de la Universidad Nacional de La Plata (Argentina). Pesquisa a alfabetização e a cultura escrita, assim como a produção dos saberes escolares na disciplina Português. Atualmente integra o Conselho de Administração do CENPEC Educação.
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