Da leitura do mundo à leitura da palavra

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Da leitura do mundo à leitura da palavra

Na quarta reportagem especial #100anosPauloFreire, exploramos a importância do ato de ler para o(a) educador(a) e contamos iniciativas de promoção de leitura e formação de leitores

Por Stephanie Kim Abe

Amazon.com.br eBooks Kindle: A importância do ato de ler em três artigos  que se completam: Volume 22 (Coleção Questões da Nossa Época), Freire, Paulo

“A leitura de mundo precede a leitura da palavra”

Essa é uma das frases mais célebres de Paulo Freire. Ela aponta a relação imprescindível entre o contexto e o texto que o educador explora na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, em novembro de 1981, com o texto “A importância do ato de ler”, presente na obra A importância do ato de ler: em três artigos que se completam (1982).

“Linguagem e realidade se prendem dinamicamente.”

Cuaderno de Bitácora: La importancia del acto de leer y el proceso de  liberación - Paulo Freire
O pequeno Freire. Reprodução

É muito bonito acompanhar a “tomada de distância” que Paulo Freire realiza nessa obra, para repensar quais foram as suas primeiras leituras de mundo. Inevitavelmente, ele volta à sua infância no Recife, relembrando a casa em que nasceu e todo o entorno em que está inserida. Ele lembra desse cenário não como algo estático – muito pelo contrário, recorda de tudo muito dinâmico e vivo: as copas das árvores, os cantos dos pássaros, o mau humor do cachorro do pai, o acendedor de lampiões da sua rua, como a água da chuva formava lagos e ilhas. E, claro, as conversas dos vizinhos:

Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar.”

Paulo Freire, 1981

Foi no ambiente de sua casa, nessa realidade, que ele começou a ser alfabetizado, processo esse que continuou em sua escola, sem a ruptura dessa “palavramundo”. Com as experiências da adolescência e mocidade e depois como professor, ele percebe a “compreensão errônea” que às vezes temos do ato de ler – como quando o foco está muito mais na quantidade de livros lidos do que na qualidade e propósito da leitura:

A leitura de um texto, tomado como pura descrição de um objeto feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura, nem dela portanto resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala.”

Paulo Freire, 1981

Leia aqui a obra A importância do ato de ler

Esse movimento que coloca a leitura da palavra fluindo da leitura do mundo, e vice-versa, serve de inspiração e base para muitos projetos de fomento à leitura e de formação de leitores no Brasil e mundo afora. Nesta quarta reportagem do Especial #100AnosPauloFreire, convidamos três articuladores(as) que desenvolvem iniciativas nesse sentido a rememorar suas experiências com os livros e como a sua leitura de mundo influenciou a leitura da palavra.

Conheça as suas histórias e os seus projetos a seguir.


Selo #100AnosPauloFreire

Acompanhe todo o nosso Especial #100AnosPauloFreire, que traz reportagens mensais sobre o patrono da educação brasileira ao longo deste ano, em homenagem ao seu centenário e em reconhecimento ao seu importante papel no pensamento e nas práticas educacionais brasileiras.


Rafael Oliveira, educador e fundador do Clube Literário Tamboril, em Pirapora (MG)

Foto: arquivo pessoal

“O velho Chico nasce na Serra da Canastra, centrinho de Minas Gerais, mas é aqui em Pirapora, no norte do estado, que começa o trecho navegável do rio, que vai até Juazeiro (BA) e Petrolina (PE). Por isso, Pirapora ficou sendo uma cidade ribeirinha formada por gente muito diferente, povoada de mitos, de causos, de história de pescador, de uma religiosidade mística, que mistura as religiões de matriz africana que vieram do Nordeste e essa devoção mineira dos congados. Somos mais Nordeste do que Minas Gerais, eu diria.

Tudo isso pra dizer que as narrativas orais estão presentes na vida da minha gente há muito, muito tempo, e foi por meio delas que eu conheci a literatura. Por aqui, o pessoal senta na porta da calçada ao cair da tarde para falar como foi o dia e contar piada – e por isso nós crianças nunca queríamos ir dormir cedo, para ouvir os adultos contar mil e uma lorotas.

Lembro muito nitidamente das preces e brincadeiras cantadas que a minha mãe fazia comigo antes de dormir aos três, quatro anos de idade. Nos almoços de domingo, quando a minha grande família (tenho 14 tios!) já estava ‘alteradinha’, todo mundo pegava baldes e o que fizesse barulho para começar a cantar quadras e outras canções populares. Na época da quaresma, sempre ouvíamos lendas urbanas sobre certas coisas que aconteciam na cidade, até para evitar que quiséssemos ficar na rua à noite. 

Na escola, a professora partilhava desse universo. Não líamos contos clássicos dos irmãos Grimm ou livros europeus. Eram sempre histórias que povoavam o nosso imaginário. Sendo alfabetizado, eu lia os livros e encontrava as quadrilhas, as parlendas e os mitos que eu já tinha ouvido. Isso foi muito poderoso pra mim, porque descobri que não precisava ficar cochilando na calçada esperando os adultos chegarem do trabalho à noite para ouvi-las. Descobri que eu já podia vasculhá-las nos livros.

Vindo de família carente, que não tinha livro em casa, nunca esqueço do primeiro livro que ganhei, aos 6 anos: O Bode que Pode. Ele era todo em rimas e eu o levava debaixo do braço para tudo quanto é lugar – e por isso não durou muito.

A vida me levou a ser educador e quando trabalhei na Secretaria Municipal de Educação sempre incentivei projetos de promoção de leitura dos professores. Quando descobri que a biblioteca municipal fora fechada, juntei alguns colegas mais amantes da causa e que entendiam o papel político da leitura e começamos a mobilizar a comunidade não só para a biblioteca fosse reaberta, mas para realizar ações de incentivo à leitura.

Comunidade literária em Pirapora - BDMG Cultural
Foto: acervo Tamboril

Em 2015, montamos um estande de empréstimo de livros na feira de artesanato da cidade e começamos a receber muitas doações. Foi então que resolvemos aplicar a ideia das gelotecas na cidade, já que não tínhamos lugar para colocar esse acervo.

Essas minibibliotecas de geladeiras com livros foram colocadas em diversos espaços da cidade, como no Mercado Municipal, no terreiro do grupo de capoeira, e na escolinha de percussão que fica na periferia. Se em 2017 tínhamos 2 mil livros, em 2019, já somávamos 10 mil. Com o acervo desse tamanho, criamos a biblioteca comunitária Tamboril.

A oralidade continua sendo o ponto de partida das nossas atividades na biblioteca. Temos clubes de leitura, contação de história, apresentações culturais, grupo de RPG para os jovens etc. As crianças que não têm o hábito de ler e não têm pais leitores vêm para a biblioteca pra ouvir as histórias e, chegando aqui, descobrem que ela não é um depósito de livros. Pelo menos a biblioteca comunitária não é, porque ela depende da população para existir. Somos mais ‘comunitária’ do que ‘biblioteca’, porque funcionamos como um centro de convivência vivo, de troca de conhecimento, de vivência cultural.

O compromisso ético e político que Paulo Freire sempre pregou norteia todas as nossas ações. Nós nos imbuímos muito desse compromisso com a abertura para o diálogo, para que a literatura ultrapasse a mera decodificação do texto, a questão da quantidade de livros lidos ou dos títulos que estão na moda.

A literatura é o caminho para expandir o nosso mundo e o campo de visão sobre as coisas. Queremos que os nossos leitores possam ir além da leitura do livro e que essa ação não se esgote em si mesma. A partir do livro, propomos debates sobre questões ambientais, culturais, de costumes que nos rodeiam para que eles possam se aprofundar na temática, expor suas vivências, ter pensamentos autônomos e se emanciparem.”

Conheça a oficina pedagógica que recria histórias de tradição oral com crianças


Ladailza Gonçalves Teles, articuladora e mediadora de leitura da Biblioteca Comunitária Paulo Freire, em Salvador (BA)

Foto: arquivo pessoal

“De início, devo dizer que não venho de uma família leitora. E, na escola, tinha biblioteca, mas não fui estimulada à leitura por meus professores. Tive acesso a obras literárias, mas sempre para responder a demandas escolares. Assim, as minhas primeiras leituras foram mesmo de mundo (nos diálogos com meus pais, irmãos, nas relações com a comunidade, nas brincadeiras com colegas), no modo como via e sentia as coisas acontecerem à minha volta.

O meu interesse pela leitura da palavra escrita (livros literários) se deu quando fui convidada a coordenar a Biblioteca Comunitária Paulo Freire, que nasceu há 20 anos. A escolha do nome da biblioteca se deu com a explícita intenção de evocar a memória de Paulo Freire, o seu ideário humanista, e, dessa maneira, presentificar o seu projeto de uma educação libertadora.

Havia, na equipe inicial da biblioteca, a experiência prévia das comunidades eclesiais de base (CEBs). Assim foi que os ensinamentos do mestre Paulo Freire chegaram até a nossa biblioteca: com ele aprendemos a valorizar mais os saberes de experiência feita; a respeitar a diversidade, pois ‘não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes’ e, sobretudo, estávamos convencidos de que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

Nesse sentido, em nossas práticas procuramos valorizar todas as experiências, na perspectiva do exercício da aprendizagem do diálogo, do estímulo à participação, com a valorização da escuta, da interação social numa leitura dinâmica, flexível e crítica.

Foto: acervo BC Paulo Freire

É muito importante ter em mente que a BC Paulo Freire está localizada na região do Subúrbio Ferroviário de Salvador, formada por bairros e comunidades populares, onde se observa uma das maiores densidades populacionais e concentração de pobreza na capital baiana.

O planejamento e as ações da BC Paulo Freire sempre expressam uma relação de organicidade com a realidade das comunidades, com o mundo das pessoas que frequentam a biblioteca. É de suma relevância ter uma biblioteca comunitária com diversidade de obras literárias por aqui.

A leitura produz um impacto muito positivo na vida de uma pessoa, para o seu desenvolvimento como sujeito crítico, para a ampliação cultural e sua inserção social e econômica ativa, para a criação e a difusão de conhecimentos. Neste sentido, a leitura é humanizadora, é um importante instrumento de emancipação pessoal e comunitária. A leitura em todas as suas manifestações: leitura de mundo, da palavra, de imagens, de diferentes linguagens, verbais e não verbais.

Com a prática da mediação de leitura, fui me aproximando dos livros. Para preparar as ações de estímulo à leitura na biblioteca, era preciso ler muita literatura infantil porque era o público que mais atendíamos. Essas leituras começaram a fazer sentido pra mim porque falavam das minhas vivências, traziam imagens do meu cotidiano. Posteriormente, os vários cursos de mediação que fiz para aprimorar minha atuação também colaboraram para que o livro e a leitura se tornassem algo prazeroso e libertador pra mim.

Hoje sou leitora, leio por prazer e acredito que a leitura de mundo e da palavra são essenciais para o exercício de nossa cidadania. E a literatura é um direito humano, assim como diz Antônio Cândido.”


Patrícia Auerbach, escritora, ilustradora de livros infantis e idealizadora do Movimento Leve História

Foto: arquivo pessoal

O meu encantamento com os livros veio na adolescência. Não fui uma criança com muitos livros em volta, nem tive uma família que lia pra mim quando eu era pequena, mas eu vivi desde muito cedo o privilégio de ter grandes contadores de história na família. Eu me encantei primeiro com meus avós e bisavós contando suas histórias de infância.

As páginas dos livros foram a maneira que encontrei de expandir essas conversas gostosas que aconteciam com a famílias reunidas em volta da mesa de almoço. Foi o jeito que encontrei de trazer personagens diferentes e cenários inusitados para aquele repertório familiar construído com tanto afeto. Comecei a gostar de ler na adolescência, mas foi quando meus filhos nasceram que eu descobri a literatura ilustrada e me apaixonei por ela.

Um livro que marcou minha trajetória como leitora foi Bisa Bia Bisa Bel, da Ana Maria Machado. Acho que foi com ele que eu me senti pela primeira vez leitora de verdade. Lembro de um dia em que cheguei no carro e encontrei minha mãe emocionada terminando de ler a obra que eu tinha esquecido no banco de trás.

Ali eu me dei conta de que literatura não tinha idade e não era o número de páginas, nem a complexidade do texto que definiam o poder de encantamento de um livro. Acho que a forma como esse episódio tão simples marcou tanto minha relação com os livros diz bastante sobre a importância dos encontros em volta da leitura.

O Movimento Leve História tem a ver com isso: construir afeto em volta de livros para formar leitores. Somos uma rede de pessoas voluntárias que incentiva familiares e escolas da rede particular a doarem livros de literatura infantojuvenil, que serão entregues para crianças e jovens de baixa renda. Não só isso – ao fazer essa ponte, nós promovemos ações de incentivo à leitura, como rodas de leitura virtuais e suporte aos mediadores que vão distribuir as obras.   

A ideia é que seja um movimento de leitor para outro leitor, com livros com dedicatória por exemplo, e que as estratégias para a distribuição das obras nas escolas públicas sejam pensadas levando em conta a realidade e as práticas já existentes na sala de aula e no território. Principalmente, que educadores possam aproveitar esse momento em que os alunos estão retornando aos poucos às escolas para ter um contato mais próximo, para acolhê-los e encantá-los pela leitura.

Trabalhando dessa forma colaborativa, queremos promover encontros tão potentes que possam marcar a vida de muitas crianças e jovens. E só conseguiremos isso apoiando os professores no que for possível e sensibilizando-os para que encontrem a forma certa de tocar cada aluno e cada família. Afinal, o amor pela leitura não se ensina com aula, se transmite com afeto.

Estamos à procura de multiplicadores(as) das escolas públicas que queiram fazer parte do projeto e receber essas doações e ações de incentivo à leitura, e de escolas particulares que queiram participar desse movimento, de qualquer lugar do Brasil. Vamos juntos?”

Clique aqui para saber mais sobre o Leve História e fazer parte do movimento


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