Dia dos Povos Indígenas: educação contra preconceitos

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Dia dos Povos Indígenas: educação contra preconceitos

Frente a tantas ameaças aos direitos dos povos originários, a escola deve ser o espaço para conhecer, respeitar e valorizar a cultura indígena e combater estereótipos; saiba como

Por Stephanie Kim Abe

Nos últimos anos, direitos conquistados a duras penas pelos povos originários têm sido ameaçados constantemente, fruto de um governo federal permissivo a esses ataques e ausente em relação à defesa dessa população.

No Congresso Nacional, tramita, entre outros, o Projeto de Lei 490/2007, que traz novas regras para os processos de demarcação de terras indígenas no Brasil. No Supremo Tribunal Federal (STF), a ação do chamado “Marco temporal” busca determinar que os povos indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, ano em que a Constituição brasileira foi promulgada.

Na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, por exemplo, o garimpo ilegal cresceu 3.350% entre 2016 e 2020 no território, de acordo com o relatório Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomai e propostas para combatê-lo“. Em 2021, o avanço foi de 46% em relação ao ano anterior. O território, que desde a sua demarcação, em 1992, é alvo da ação ilegal de garimpeiros, tem sofrido mais invasões, com intensificação dos conflitos armados, do desmatamento e da contaminação dos rios. As consequências dessas degradações são sentidas pelos seus habitantes, que sofrem com escassez de alimentos, falta de acesso a serviços básicos (como atendimento médico), casos de malária, abusos e violência contra mulheres e crianças indígenas etc.  

Diante dessa triste realidade, vemos os povos indígenas cada vez mais mobilizados, – como no Acampamento Terra Livre (ATL), que este ano esteve em sua 18ª edição e é considerada a maior mobilização indígena desde as manifestações de 1988.

Mas é preciso que toda a sociedade se engaje nessa luta ao lado dos povos originários. Na educação, a escola tem um papel decisivo na promoção e no respeito à diversidade, no conhecimento e valorização da história e da cultura indígena e no combate aos preconceitos e estereótipos à população indígena.

Como lembra Fabio José Cardias-Gomes, professor na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Imperatriz, que estuda jogos tradicionais indígenas:

Fabio José Cardias-Gomes, professor na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em Imperatriz
Foto: acervo pessoal

Nós temos uma nação que desconhece o seu Brasil profundo, composto por mais de 300 povos originários, falantes de mais de 270 línguas. É de uma riqueza gigantesca e inigualável, porque cada povo é diferente – e a gente não sabe de nenhum, porque só sabe o que foi descrito pelo colonizador. Apesar de todas as leis e conquistas, estamos engatinhando, porque para que as leis se transformem em ações é preciso um reconhecimento efetivo desses povos e comunidades que estão ao nosso redor.”

Fabio José Cardias-Gomes


Enfrentando dificuldades e preconceitos

A arte-educadora, pedagoga e bordadeira Nádia Tobias Yanim sabe bem o que são os estereótipos e como são desconhecidas as culturas indígenas pela maior parte da população brasileira. Nascida em Manaus e com nome indígena Yanim, ela ficou muito impactada pela forma como as pessoas se dirigiam a ela, quando chegou a São Paulo, aos 46 anos: “A abordagem com o povo de um outro lugar foi muito dura e direta. Me perguntavam: você é índia? Você anda nua quando volta para Manaus? Isso em pleno ano de 2010”, conta ela.

Esse tipo de perguntas fez com que ela tivesse que revisitar lugares e se colocar em um processo de autoconhecimento – jornada que ela fez através da sua arte com o bordado e as danças circulares.

Nádia Tobias de Souza
Foto: acervo pessoal

Não é à toa que temos tantos jovens indígenas se suicidando. Se assumir enquanto indígena diante dessa realidade é muito difícil, e você precisa ter uma base muito forte para ouvir às vezes piadinhas, insultos, indiretas. É um processo que desconstrói várias questões, e a arte me ajudou bastante, porque ela acolhe a singularidade da pessoa e a diversidade cultural.”

Nádia Tobias Yanim

Para Raimundo Cohpyht Krikati, as dificuldades enfrentadas na sua profissão são outras. Professor de língua do povo Krikati na escola da aldeia São José, entre o município de Montes Altos e Sítio Novo, no Maranhão, ele fala da necessidade de apoio para poder garantir uma educação escolar indígena de qualidade para as(os) estudantes. Por exemplo, com a produção de materiais didáticos que contemplem uma visão real dos povos indígenas brasileiros e tragam informações relevantes e atuais sobre as suas culturas.

“Para isso, a gente precisa de pessoas que conhecem essa área, pra não fazer de qualquer jeito. Nesse sentido, a gente tem uma certa carência tanto de apoio pedagógico quanto financeiro por parte do próprio Estado mesmo, que também não reconhece nossos direitos como professores, dando condições como salários dignos”, comenta Raimundo.


O papel da escola e da arte

Apesar das dificuldades enfrentadas em 23 anos como professor, Raimundo nunca desistiu. É por essa batalha diária que ele e seus(suas) colegas encaram que há conquistas a serem comemoradas: “Hoje nossas(os) alunas(os) cantam e falam na nossa língua, que é 100% forte e ligada à nossa cultura”, comemora.

Para ele, a escola tem esse importante papel de ser o lugar onde é possível construir uma nova sociedade que veja os povos indígenas pelo que realmente são, e não uma visão eurocêntrica:

Raimundo Cohpyht Krikati
Foto: acervo pessoal

A gente sabe que a nossa história foi sempre contada por outras pessoas, e que o próprio sistema de educação generaliza o indígena. Por conta disso, criaram-se certos preconceitos. Precisamos quebrar isso, descolonizar essa ideia hereditária. E nós temos que fazer isso pela educação. Eu costumo dizer que precisamos começar pelas escolas, porque é por onde podemos levar verdadeiras informações, divulgando a nossa história, a história da nossa existência, desde o princípio da colonização.”

Raimundo Cohpyht Krikati

Como combater estereótipos e aflorar o interesse pelas culturas dos povos originários?

A arte-educadora Nadia ressalta a arte como uma ferramenta essencial para abrir a mente e começar uma discussão sobre diversidade:

Bordado de Nadia Tobias Yanim. Foto: reprodução

Nas oficinas que faço em espaços abertos, em universidades ou parques, vejo como a arte modifica o pensamento. Claro que não é para sempre, mas é como se você plantasse uma sementinha dentro de uma mente que antes era complemente fechada, que acaba trazendo escuta e novos olhares sobre o ser indígena – que não é um ser preguiçoso, que vive encostado, que é ruim etc. Eu percebo que faz a diferença, que as pessoas passam a entender um pouco melhor a razão por detrás do nosso povo, do estar dentro e presente na natureza, da importância de preservar esse lugar.”

Nádia Tobias Yanim

Conheça o trabalho de Nádia na arte-educação.

Veja como trabalhar as culturas dos povos originários nos espaços educativos


Aproximar a cidade da comunidade indígena

O professor Fabio José Cardias se inspira nas atividades que realiza com suas turmas de visita aos territórios indígenas para passar um tempo conhecendo, em campo, essa outra cultura como uma forma de incentivar essa abertura e esse novo olhar, levando a sala de aula para as aldeias:

Acho que o principal ensinamento que eu tive com os indigenistas é sair da sala de aula e ir para campo. Adentrar os territórios indígenas e conviver ali por um dia, uma semana, conhecendo a comunidade e a cultura in loco, vivenciando as festas e os rituais. Também convidar parentes para ir à escola, trazendo a comunidade para a sala de aula. Só o material didático, em sala de aula, não garante e não dá conta dessa aproximação intercultural tão necessária, que precisa ser real, de fato, em campo”

Fabio José Cardias-Gomes

Ele acredita que é preciso considerar as realidades locais, reconhecendo que, por estar em uma cidade cercada de territórios indígenas, é mais fácil se aproximar das comunidades originárias ao redor. “Se você mora na capital de São Paulo, por exemplo, imagino que tem poucas aldeias para visitar. Mas ainda assim, chega a ser assustador como ainda temos o reforço de estereótipos por aqui por parte de educadores, do ensino básico até superior”, diz.

Raimundo concorda que essa aproximação entre estudantes e comunidades indígenas é mais do que necessária – e vê esse propósito como um significado para a efeméride de hoje:

Está na hora de trazermos nossas(os) alunas(os) para a comunidade, para que vejam as nossas apresentações, rituais, danças. As escolas da cidade precisam fazer esse cruzamento com as nossas escolas indígenas. Precisamos ter esse contato mais presente, porque eles só têm visto histórias fragmentadas em sala de aula. E a nossa vida não é assim – ela é toda contextualizada dentro do nosso modo de viver. E é só participando e trocando que vamos nos descobrir e vamos estabelecer respeito, futuramente, entre nós e a cidade. Essa deveria ser a missão das escolas quando se trata do 19 de abril.” 

Raimundo Cohpyht Krikati


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