Cenários da Educação 2019

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Cenários da Educação 2019

Revisão curricular, residência pedagógica, Enade como porta de entrada para trabalhar em sala de aula. Confira os benefícios e os riscos de cada uma das medidas propostas pela Base Docente, na visão dos especialistas ouvidos por NOVA ESCOLA

Nova Escola | 21.12.2018
Por Laís Semis

Base Nacional Comum de Formação Docente propõe uma grande revisão na formação e na carreira docente. A consolidação de uma política nacional de formação de professores da Educação Básica está prevista pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Mas, assim como acontece com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), há uma série de visões sobre a proposta apresentada pelo Ministério da Educação (MEC) no último dia 13.

Além da revisão curricular dos cursos de Pedagogia e das licenciaturas, a Base Docente propõe criar diretrizes para a formação continuada atrelada à progressão de carreira, mudanças no ingresso dos profissionais e a substituição do estágio pela Residência Pedagógica (confira a proposta completa aqui).

Este é o início de uma discussão que deverá atravessar o Brasil nos próximos anos. O MEC considera essa versão do texto da Base Docente como a “versão zero”. Durante a cerimônia de lançamento do documento, o ministro da Educação Rossieli Soares afirmou que o texto passará por discussões com a sociedade, lideradas pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). O Conselho Nacional de Educação (CNE) também deverá discutir o documento. O órgão já formou a Comissão de Formação de Professores, que é presidida pela conselheira Maria Helena Guimarães de Castro e tem como relator Mozart Neves Ramos.

Para entender o que está em jogo com a criação da Base Nacional Comum de Formação Docente, confira abaixo a visão de especialistas sobre as principais medidas trazidas pela proposta.

Sobre a existência de uma Base Docente

Embora a reforma curricular dos cursos de licenciatura, o estímulo da renovação pedagógica e a articulação com a BNCC da Educação Básica sejam estratégias para atingir a Meta 15 do PNE, a própria existência de uma Base Comum é questionada por alguns especialistas. Catarina de Almeida Santos, pedagoga de formação, docente da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, acredita que a existência de um documento como esse para um país da dimensão e com a diversidade do Brasil pode empobrecer a formação. “Nós temos diretrizes de formação dos professores de Educação Básica. Acho que a gente não precisa de uma Base, mas sim fazer que as diretrizes aprovadas sejam efetivamente colocadas em prática”, diz.

Meta 15

Garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 (um) ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.

(…)

15.6) promover a reforma curricular dos cursos de licenciatura e estimular a renovação pedagógica, de forma a assegurar o foco no aprendizado do(a) aluno(a), dividindo a carga horária em formação geral, formação na área do saber e didática específica e incorporando as modernas tecnologias de informação e comunicação, em articulação com a base nacional comum dos currículos da educação básica, de que tratam as estratégias 2.1, 2.2, 3.2 e 3.3 deste PNE.”

Clique aqui para conferir os indicadores da Meta 15 no Observatório do PNE

A proposta apresentada pelo MEC não entra em conteúdos, mas em princípios e competências que os futuros professores deveriam desenvolver ao longo da formação inicial. As competências são divididas em três dimensões: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. Esse é outro ponto de atenção apontado por Catarina. “As competências estão pensadas em um processo de professor ‘executador’ de tarefas e de materiais didáticos”, aponta. Em sua análise, a proposta baseada em competências consolidaria uma formação restritiva, de um professor cujo foco é saber ensinar conteúdos. “O fazer docente necessita que o professor seja um grande conhecedor de vários aspectos do processo, e não simplesmente alguém que saiba ensinar os conteúdos estabelecidos em uma BNCC ou em currículos pensados por alguém para ser executado por esses professores.”

Para outros especialistas, a organização por competências faz sentido, considerando os desafios da profissão no século 21. “As competências estão em sintonia com as demandas contemporâneas. Elas falam muito em aprendizagem, sobre o professor que engaja”, afirma Fábio Reis, diretor de inovação acadêmica e redes de cooperação do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), que, apesar do nome, tem abrangência nacional.

Anna Helena Altenfelder, do CENPEC.

A existência do documento também é vista com bons olhos por Anna Helena Altenfelder, pedagoga presidente do Conselho de Administração do CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. “Uma Base bem elaborada valoriza a profissão, pois assegura o direito que os professores têm de se formar sem precarização, e os qualifica para o desafio de ensinar todos os alunos”, diz. Para ela, há três pontos de atenção quando se cria um documento como a Base Docente: 1) o documento ainda precisa ser discutido nas escolas, redes e universidades para refletir as necessidades e realidades da Educação Básica; 2) deve considerar a complexidade da atividade docente e ter cuidado para não reduzir a formação a uma dimensão técnica; 3) estar alerta para que a Base Docente não sirva de fundamento para políticas de meritocracia e responsabilização de professores, sem que haja condições de trabalho.

Em sua “versão zero”, o texto da Base Docente já traria a preocupação em não reduzir a profissão a um patamar mais técnico. “O texto traz dimensões afetivas, socioculturais, mostra preocupação com engajamento na aprendizagem dos alunos, formação permanente e acolhimento das diversidades”, cita Anna Helena. “Ao mesmo tempo, traz uma preocupação com saber planejar ações de ensino e avaliar aprendizagem. Acredito que nesse sentido a Base Docente amplia uma visão da carreira e foge de uma visão tecnicista.”

Residência pedagógica

Inspirada na residência médica, a proposta da política é quebrar a distância que existe entre as universidades (teoria) e escolas (prática). O programa é focado em alunos dos 3º e 4º anos e já está em vigência. No entanto, ele só atende parte dos estudantes. Com a Base Docente, a proposta é que a residência pedagógica passe a ser ofertada a todos os graduandos, substituindo o estágio. “A ideia da residência é algo maior que o estágio. É o vivenciar, experimentar, ir para a sala e trabalhar mesmo junto com o professor”, diz Fábio Reis.

No entanto, fica a dúvida de como isso funcionaria para os alunos do curso noturno, que trabalham em horário comercial. “Grande parte dos cursos que formam professores são privados e a maioria das ofertas de licenciatura são no período noturno”, indica o diretor do Semesp. “Então, precisamos pensar como ela vai acontecer na prática. Será que haverá bolsas de estímulo para as pessoas se dedicarem exclusivamente à carreira docente? Essa é uma preocupação, porque há muitos alunos trabalhadores”, aponta Fábio.

Para Catarina, há ainda uma questão conceitual na relação entre a residência pedagógica e a médica que pode ter impacto na sala de aula. “A [residência] médica é um processo de especialização que o aluno faz ao final do processo formativo.” A residência pedagógica colocaria o aluno em sala sem que ele ainda tenha as bases teóricas fundamentais. “Ela coloca esse aluno quase como um ajudante nos processos de ensino e aprendizagem”, diz a docente da UnB.

Enade

Pela proposta do MEC, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) deixaria de avaliar apenas o rendimento dos alunos que concluíram o curso e poderia virar uma espécie de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O Enade passaria a ser anual e serviria também como uma prova de habilitação à docência. Apto para a profissão, o profissional aprovado contaria com um exame de validade de cinco anos, que poderia também integrar parte do processo dos concursos públicos. “Pensando em municípios que não têm condições técnicas e financeiras de realizar concursos, é interessante pensar em um instrumento que ajude”, pondera Anna Helena. A integrante do CENPEC também acredita que, se bem-feito, o processo pode ajudar a qualificar os cursos das universidades.

A tão desejada qualificação pode trazer um viés inesperado: limitar a entrada na carreira. “A perspectiva é boa, mas a realidade é que hoje já temos uma diminuição da procura pela carreira docente. Estipular uma classificação para a entrada pode ser inibidor”, avalia Fábio Reis. Considerando a baixa atratividade da carreira e do salário, assim como as condições de trabalho, ele acredita que a profissão poderia correr “risco de apagão”.

“A gente tem um problema, no Brasil, de não pensar na formação. Pensa-se em ações que preparem as pessoas para ir bem nas avaliações de larga escala”, diz Catarina. Seria necessário, em sua visão, considerar processos específicos para o ingresso na carreira. “Precisamos garantir formação para nossos futuros professores, de modo que eles possam participar dos diversos processos seletivos depois de formados.”

Níveis docentes

A proposta atual da Base Docente aponta para uma divisão em quatro níveis de carreira docente: inicial, estágio probatório, carreira avançada e líder. “Certamente, as necessidades formativas de quem está no início de carreira são diferentes de quem já está há um tempo em sala de aula”, diz Anna Helena Altenfelder. “A perspectiva de avançar na carreira até um nível de líder me parece interessante porque pressupõe envolvimento entre pares também na formação”, considera. Mas isso não é consenso.

A progressão de carreira deve ser pensada como um plano de carreira e levar em conta diversos instrumentos, como a avaliação dos estudantes sobre o professor. “Uma Base Nacional não pode definir isso. Inclusive porque no Brasil o sistema de ensino tem autonomia para pensar suas questões”, defende Catarina de Almeida Santos.

Autonomia das universidades

A ideia de controle também preocupa alguns especialistas. Catarina enxerga as medidas como uma estratégia de controle desse processo, por estabelecer medidas atreladas à revisão curricular: “Com isso se estabelece que a formação de professores deve olhar para a BNCC e que o Enade deve definir a entrada na carreira. Depois da entrada, os níveis que serão exigidos para que o professor progrida. Ou seja, a gente vincula que a formação em nível Superior deve ser baseada pela Educação Básica”, diz Catarina.

Como o texto do documento não entra nos conteúdos, explorando apenas as competências e os princípios, o diretor do Semesp não acredita que a autonomia das universidades esteja ameaçada. “É ruim quando as políticas interferem na dinâmica das instituições, mas pelo que está sendo proposto não vejo isso”, considera Fábio Reis. No entanto, ele prevê que a Base Docente possa gerar reações nas universidades – especialmente em relação às mudanças no Enade e à criação do Instituto Nacional de Acreditação (ONA, organização nacional capaz de acreditar cursos de formação inicial que estejam de acordo com as políticas educacionais). Há dúvidas, diz, se essa criação é necessária. “Pode ser um problema, porque a postura desse tipo de organização – que existe também na saúde – nem sempre está organizada com as dinâmicas da realidade das escolas e universidades.” Para ele, o documento propõe debater questões relevantes para a educação, e é essencial que os diferentes agentes se envolvam nesse debate. “É um plano que está em discussão. E ele provoca as instituições de Ensino Superior a se aproximarem da realidade das escolas.”

Os consensos e dissensos de 55 outros profissionais

Em outubro de 2018, o CENPEC publicou uma pesquisa chamada Consensos e dissensos em torno da definição e usos de referenciais de atuação docente. Nela, 55 entrevistados opinaram sobre o tema dos referenciais docentes – a pesquisa foi concluída antes da apresentação da proposta do MEC e, portanto, contempla uma visão mais geral da existência de referenciais e não da proposta encaminhada ao CNE. Todos os entrevistados na pesquisa têm alguma participação no debate ou no âmbito de formulação de políticas públicas. Entre os participantes estão pesquisadores, membros e ex-membros do CNE, gestores públicos (atuais e antigos), gestores do terceiro setor, gestores de instituições de Ensino Superior da rede privada e um sindicalista.

Por se tratar de uma investigação qualitativa, e não quantitativa, a pesquisa não permite generalizações, mas pode trazer visões relevantes sobre o debate. “A metodologia utilizada evidencia os principais argumentos na fala dos entrevistados e possibilita levantar hipóteses sobre as tendências dos diversos grupos que participam do debate educacional”, cita a pesquisa.

Os participantes se dividem em quatro visões sobre referenciais docentes. Veja nos infográficos abaixo o que cada um dos grupos pensa.

Clique aqui e confira os detalhes da pesquisa

Confira a reportagem no site original da Nova Escola


Promover justiça social é garantir mais educação a quem mais precisa

“As respostas do poder público à desigualdade na educação precisam se pautar pela busca da equidade – ou seja, dar mais a quem mais precisa”, afirma Anna Helena Altenfelder

BLOG EDUCAÇÃO E ETC | O ESTADO DE S. PAULO | TODOS PELA EDUCAÇÃO | 12/12/20181

POR ANNA HELENA ALTENFELDER2

Os dados sociais brasileiros apontam para inúmeras desigualdades. No caso da Educação, infelizmente, a situação se repete: segmentos diferentes da população têm oportunidades bastante desiguais de formação. Esse direito impacta diretamente na cidadania e nas possibilidades de inserção profissional, e as desigualdades educacionais são, a um só tempo, causa e consequência dos abismos sociais do País.

Apesar de alguns avanços com as recentes políticas de cotas sociais e raciais, as disparidades no ensino ainda são alarmantes. Segundo a Pnad Contínua 2017 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE), enquanto a escolaridade média dos 25% mais ricos da população é de 12,2 anos, entre os 25% mais pobres, a média é de quase 4 anos a menos (8,4 anos). Enquanto 22,9% dos brancos têm Educação Superior completa, esse índice é de apenas 9,3% entre negros.

Outro fator que merece especial atenção é a espacialidade, pois ele articula num território específico todos os demais fatores de desigualdades. Como no Brasil raça-cor e origem social tendem a se refletir também na distribuição geográfica de nossa população, o acesso à Educação também é bastante diferente, tanto entre as diversas regiões do País, como entre cidade e campo e entre centros e periferias.

Mesmo em comparação com o restante das escolas de uma mesma rede de ensino, as unidades em territórios vulneráveis tendem a ser mais precarizadas. Um dos motivos que colaboram para essa situação é que, embora as escolas públicas não possam escolher quais alunos aceitar ou não, existem mecanismos velados de seleção e expulsão de estudantes considerados indesejados. Em geral, aqueles cujo baixo aprendizado tem sido naturalizado: pobres, negros e, no caso específico de matemática e ciências da natureza, meninas.

A pesquisa Processos velados de seleção e evitação de alunos em escolas públicas, realizada em 2012 pelo CENPEC em alguns colégios públicos da cidade de São Paulo evidenciou os meandros dessas práticas. 

Clique para baixar a pesquisa

Outro estudo do CENPEC, Desigualdades educacionais no espaço urbano:o caso de Teresina, encontrou evidências semelhantes em Teresina (PI). Em ambos os casos, descobriu-se que são barrados ou orientados a procurar outras escolas, crianças, adolescentes e jovens que já foram reprovados ou com histórico de indisciplina.

Até mesmo gestores e professores tendem a evitar as escolas com pior desempenho, onde as condições de trabalho costumam ser mais desafiadoras. Nesse sentido, as políticas de bonificação de professores adotadas em muitos estados têm sido extremamente prejudiciais. Como bonificam docentes em função de resultados em avaliações externas, os professores buscam ficar nas unidades com os alunos de melhor desempenho – geralmente aqueles com mais capital cultural de origem.

As respostas do poder público para o problema da desigualdade educacional precisam se pautar por uma visão sistêmica e pela busca da equidade – ou seja, dar mais a quem mais precisa. Isso começa, por exemplo, por melhorar a distribuição de recursos da União para estados e municípios e por estimular a fixação de professores mais qualificados nas escolas que atendem populações com mais desafios de aprendizagem.

Também é fundamental que se realizem mais estudos para compreender os fenômenos intra e extraescolares que influenciam as aprendizagens e que o tema faça parte da formação de professores e gestores. Isso poderia propiciar o aprimoramento do uso pedagógico das avaliações e a cooperação entre escolas e outros equipamentos de um mesmo território, além de permitir que eles escolham estratégias específicas para cada contexto.

1Atualizado/republicado em 21/12/2018. Clique para ver o artigo no site original do Estadão.

2Anna Helena Altenfelder é presidente do Conselho de Administração do CENPEC. Foi professora e coordenadora pedagógica da Educação Básica e é mestre e doutora em Psicologia da Educação.