Protagonismo juvenil: meninas que fazem a diferença

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Protagonismo juvenil: meninas que fazem a diferença

Conheça três jovens que têm promovido mudanças na escola ou por meio da educação e saiba como incentivar a mobilização das estudantes.

Por Stephanie Kim Abe

“Você já deixou de fazer algo na escola ou na vida pelo fato de ser menina?”. Essa simples porém potente pergunta pode ser o ponto de partida para começar a discutir a questão de gênero em sala de aula. Ou ainda, aproveitando datas como o Dia Internacional das Mulheres (8 de março): “você admira alguma mulher na sua família ou na sociedade? Por quê? O que ela te traz de positivo?”.

Guia Quando a nossa voz ganha o mundo – garotas pelo direito à educação no  Brasil – Ação Educativa
Capa: reprodução

Essas são duas das diversas sugestões de perguntas que aparecem ao longo do guia Quando a nossa voz ganha o mundo: garotas pelo direito à educação, da Ação Educativa, com apoio do Fundo Malala. O documento é voltado para as meninas e jovens brasileiras que querem conhecer e discutir o seu direito à educação e como garanti-lo.

Saiba mais sobre as mulheres na educação e a importância do 8 de março

Para isso, o guia traz informações que versam sobre diferentes questões que podem impactar no acesso à educação das garotas: a violência de gênero, a cultura do machismo, a dupla jornada etc. Há tanto indicações das principais leis que garantem o direito à educação (como a Constituição de 1988 e o Plano Nacional de Educação), como de sites e filmes para as(os) estudantes que quiserem saber mais sobre o assunto.

A publicação também enfatiza a importância da gestão democrática e da participação das(dos) estudantes. Ela dá como exemplo os movimentos secundaristas contra a reorganização da rede estadual de ensino de São Paulo em 2015, a mobilização de alunos(as) contra a reforma do ensino médio em 2016 e a vitória dos(as) estudantes cariocas ao tornar lei a realização de eleições para diretores(as) de escolas públicas do Rio de Janeiro, após apoio à greve dos professores em 2016.

Com o depoimento de Jhuly Anne de Paulo Valério, ex-aluna da Escola Estadual Pandiá Calógeras (São Gonçalo-RJ) sobre o episódio, podemos entender melhor a importância dessas mobilizações, as nuances de suas organizações internas e as reflexões e marcas que elas deixaram nas(os) estudantes envolvidas(os).

Na ocupação a gente viu outra forma de entender a vida. A escola virou nosso lar, nossos amigos viraram nossa família. Uma questão de afeto, de entrega. Começamos a avaliar como nós iríamos gerir a escola. Nossa democracia era direta, nós tínhamos reunião todos os dias, comissões responsáveis por setores – comunicação, cozinha, segurança. A partir dessa organização, pensamos que, depois que a escola fosse desocupada, nós teríamos que ter uma escola ocupada por alunos, fazendo nossas atividades cotidianas e cuidando da escola.”

Jhuly Anne de Paulo Valério, em Quando a nossa voz ganha o mundo: garotas pelo direito à educação

Para falar do protagonismo de jovens mulheres, compartilhamos, a seguir, a história de três garotas do Rio de Janeiro, Maranhão e Bahia. Cada uma à sua maneira e em parceria com outras mulheres, essas meninas criativas e cheias de iniciativa têm promovido mudanças na escola ou com base na educação.


No RJ: Amanda e o combate à pobreza menstrual

Foi por causa de um caso de assédio em uma escola militar da Bahia em 2019 que a estudante carioca Amanda Menezes de Sena, de 18 anos, descobriu o Girl Up Brasil – um movimento que apoia, inspira e conecta meninas para que sejam ativistas pela igualdade de gênero. Amanda explica:

Foto: arquivo pessoal

Muitas meninas começaram a falar sobre o assédio, e uma das que eu seguia nas redes sociais disse que tinha um grupo, Girl Up. Fui pesquisar e achei legal a ideia de ter um clube com amigos meus, pessoas próximas, pra conversar sobre assuntos que temos em comum acerca de machismo, feminismo etc. Decidi então criar um clube, porque queria muito ter essa rede de apoio de pessoas em quem confiar e que pudessem tentar, juntos, mudar as coisas.”

Amanda Menezes de Sena

Batizado Girl Up Elza Soares, o grupo agrega hoje cerca de 30 meninas da zona norte do Rio de Janeiro e é um dos mais de 150 coletivos da rede espalhados por 20 estados. Ao longo de todo o ano passado, elas se mobilizaram em torno de uma pauta importante, mas pouco falada: a pobreza menstrual. Esta se caracteriza pela falta de acesso a produtos menstruais, a informações sobre menstruação e à infraestrutura adequada para higiene menstrual.

As meninas começaram a se mobilizar sobre a questão ao descobrirem que os absorventes, em geral, não são considerados itens essenciais e portanto não fazem parte da cesta básica. “Como que as pessoas vão usar absorvente? Agora mais ainda com a pandemia, se nem têm dinheiro pra comida, elas não vão ter como comprar absorvente. Muito rolê”, explica Amanda.

Foto: arquivo pessoal

Primeiro, o grupo criou a campanha Absorvente Urgente, em abril, para arrecadar dinheiro e comprar esses itens para enviar às ONGs que estavam doando cestas básicas. A captação foi um sucesso, tendo mobilizado grupos em sete estados e beneficiado milhares de mulheres.

Só que a gente começou a refletir: ‘cara, a gente não vai conseguir arrecadar isso todos os meses, ajudar todo mundo desse jeito. Então tentamos procurar uma ajuda do Estado pra garantir esse direito para outras pessoas que menstruam. Daí surgiu a ideia do projeto de lei 2667/2020.”

Amanda Menezes de Sena

Depois de muitos e-mails e mensagens sem respostas, elas conseguiram o apoio do gabinete do deputado estadual Renan Ferreirinha (PSB), que as encorajou a escrever o PL e se comprometeu a protocolá-lo. A Lei 8.924 foi sancionada pelo governador Wilson Witzel no dia 3 de julho de 2020, garantindo a inclusão de absorventes e fraldas geriátricas e descartáveis infantis aos itens da cesta básica no estado do Rio de Janeiro.

Como a pobreza menstrual afeta a educação

Livre para Menstruar/reprodução

Ao escrever o projeto de lei, as jovens se depararam com um problema: a falta de pesquisas e dados sobre a pobreza menstrual. Foi por causa dessa mobilização que o Girl Up Brasil montou a plataforma Livre para Menstruar, que traz o histórico dessa construção e um panorama da questão no mundo e no Brasil.

De acordo com o relatório do movimento, no mundo, 500 milhões de meninas e mulheres não dispõem de instalações para cuidar de sua higiene menstrual. No Brasil, são cerca de 7,5 milhões de meninas que menstruam na escola – mas as instituições de ensino não estão preparadas para recebê-las.

O relatório mostra também que 213 mil meninas não têm banheiro em condição de uso na escola, sendo que 65% delas são negras. E nas escolas em que há banheiros, há outros problemas enfrentados por elas, como a falta de papel higiênico e sabonete ou mesmo de pia.

Uma das coisas que mais acontecem é que a menina está menstruada e, como ela não tem absorvente ou o que usar, ela não vai pra escola. A menstruação dura uma semana, então é uma semana que ela falta às aulas. Eu falto um dia e já perco um monte de matéria e fico sem entender nada, imagina essa menina que só está indo três semanas no mês à escola? Além disso, a pobreza menstrual afeta a socialização, porque a menina acaba ficando mais insegura, com vergonha de estar na escola.”

Amanda Menezes de Sena

Criar e implementar políticas públicas, como a universalização do saneamento básico e subsídios para a compra de produtos menstruais, além de investir em educação menstrual, são algumas das recomendações do movimento para enfrentar a pobreza menstrual no Brasil.


No MA: Pâmela e o apoio às jovens empreendedoras

Quando os professores de Empreendedorismo e Logística apresentaram a ideia do Projeto Empreenda para a sua turma, a estudante de 17 anos Pâmela Eduarda Silva Momento se voluntariou de pronto a participar. Ela já faz parte de vários projetos no Instituto Estadual De Educação Ciência e Tecnologia, escola em que estuda em Bacabeira (MA), e esse seria mais um desafio que ela nunca tinha realizado. A estudante conta:

Foto: reprodução

O projeto surgiu para dar visibilidade para as jovens estudantes da escola que possuem negócios. Nós fomos atrás dessas meninas, que têm diferentes empreendimentos, que são jovens protagonistas que desde cedo tiveram o empreendedorismo como base. É um projeto pequeno, mas eu acho que já ajuda muito.”

Pâmela Eduarda Silva Momento

Pâmela e duas amigas fizeram uma pesquisa on-line com diversas turmas da escola e, com base nas respostas, elas selecionaram seis meninas para participar do projeto piloto. As entrevistas feitas com essas jovens empreendedoras resultaram em um vídeo, que foi usado para divulgar os negócios em grupos de WhatsApp de turmas da escola. Além disso, elas criaram imagens de divulgação, com fotos das empreendedoras em suas lojas e com seus produtos.

Criativos da Escola

No ano passado, o Empreenda foi um dos projetos premiados da 6ª edição do Desafio Criativos da Escola, na categoria Igualdade. Com a premiação, as jovens compraram novos equipamentos, para potencializar as produções de divulgação. Como as três estão no 3º ano do ensino médio, elas também esperam abrir novas vagas para que outras meninas da escola possam dar continuidade ao projeto ano que vem.

Como a pandemia afeta as mulheres

A pandemia tem afetado muito a economia e a garantia dos direitos sociais da população brasileira. As mulheres têm sentido bastante essa precarização do trabalho. De acordo com a pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizado pela Gênero e Número e SOF Sempreviva Organização Feminista, 40% das entrevistadas afirmaram que a pandemia e o isolamento social colocaram em risco o sustento da casa. Elas relataram dificuldades no pagamento de contas básicas ou do aluguel. A maior parte das mulheres que têm essa percepção são negras (55%).

Em reportagem da Gênero e Número sobre a pesquisa, Alessandra Benedito, professora de direito do trabalho na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e coordenadora da área sobre equidade em empresas do Núcleo de Justiça Racial da FGV-Direito SP, explica:

Foto: reprodução

A possibilidade de mulheres negras serem inseridas e incluídas dentro do mercado de trabalho formal é muito baixa. Há um grande número de empreendedoras – e ser empreendedora é algo que você pode ansiar -, mas esse empreendedorismo não é um empreendedorismo pensando em crescimento, na possibilidade de ampliar os negócios. É o empreendedorismo de sobrevivência. É o mínimo para garantir que consiga se alimentar e pagar a casa onde mora.”

Alessandra Benedito

Foi essa situação que as meninas do Projeto Empreenda constataram ao realizar o seu trabalho ao longo de cinco meses de 2020. As empreendedoras viram as suas rendas diminuírem bastante, pois ainda que tivessem suas lojinhas, elas acabavam vendendo uma boa parte de seus produtos na escola. Pâmela explca:

A maioria utilizava esse negócio para ajudar a família. As vendas também eram uma forma de renda dentro de casa. Como o movimento caiu com a pandemia, as meninas foram muito afetadas.”

Pâmela Eduarda Silva Momento

Na BA: Clarisse e o direito à educação indígena

Imagine os senhores e senhoras aqui presentes, o que vai acontecer com a educação, caso o Fundeb não seja aprovado? Imagine como vai ser o futuro das meninas e meninos indígenas e quilombolas que não cursarem a educação básica? Não vamos deixar que isso aconteça. E peço para os senhores e as senhoras que façam o mesmo, lutem pela nossa educação.”

Clarisse Alves Rezende
Foto: reprodução

A fala acima foi proferida pela jovem pataxó hã-hã-hãe Clarisse Alves Rezende, de 17 anos, em discurso para membros do Congresso Nacional em novembro de 2019. Ela participou de audiência pública em defesa do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). 

Principal mecanismo de financiamento da educação brasileira, o Fundeb tornou-se permanente em agosto do ano passado, com a promulgação da Emenda Constitucional 108/2020. Até então, ele era regulamentado pela Lei 11.494/2007, e caso não houvesse essa mudança, teria deixado de existir em 31 de dezembro do ano passado.  

De acordo com a nota técnica “O Novo Fundeb e a Educação Escolar Indígena, Quilombola e em Territórios de Vulnerabilidade Social”:

Segundo o Censo Escolar (2017), o país possui 3.345 escolas indígenas que atendem 256 mil estudantes. A precariedade marca o atendimento da educação escolar indígena: a maior parte das escolas não conta com tratamento de água (1.970), esgoto sanitário (1.634) nem energia elétrica (1.076). Quase totalidade não tem biblioteca (3.077) 18 nem banda larga (3.083). Cerca de 30% (1.029) não funcionam em prédios escolares e quase metade (1.546) não utiliza material didático específico da educação indígena.”

Ação Educativa, 2019

Clarisse faz parte de um grupo de 60 meninas indígenas escolhidas pela ONG Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) para receber apoio e treinamento para se tornar uma jovem ativista defensora da educação, apoiadas pelo Fundo Malala. 

As meninas têm tido encontros periódicos virtuais (devido à pandemia), em que compartilham experiências e conversam sobre as situações cotidianas e os problemas comuns que acontecem em suas escolas. Antes da audiência pública citada acima, as participantes compartilharam histórias e aprenderam mais sobre o Fundeb e o financiamento educacional no país.

Eu tenho aprendido muita coisa. O que eu passo na minha escola, por exemplo, com estrada ruim, ônibus que quebra, falta de merenda e água, as outras meninas também passam. Mas há outros problemas: na aldeia de uma delas, não há biblioteca pra elas poderem fazer pesquisa. Na minha tem. Então a gente quer que todas as indígenas sejam ouvidas para poder ajudar na busca da melhoria da educação.”

Clarisse Alves Rezende

As manifestações da jovem têm surtido efeito e trazido melhorias para o Colégio Estadual da terra indígena Caramuru, onde estuda, no município de Pau Brasil (BA). De agosto de 2019 a março de 2020, foram reformados os banheiros e as janelas quebradas de algumas salas. 

Atualmente, a maior preocupação da jovem tem sido a falta de aulas. Clarisse conta que, desde que a pandemia começou, ela só teve aula por três meses ano passado. As atividades estavam sendo realizadas on-line, mas como muitos estudantes não tinham acesso à internet, elas foram suspensas. A jovem critica:

“O governo não tem nos ajudado muito. Eles não dão uma resposta de como vai ficar a escola pública. O governo podia arrumar uma solução pra questão da internet, que é a nossa maior dificuldade.”

Clarisse Alves Rezende

Cursando o 3º ano do ensino médio, Clarisse pretende prestar o Enem, tirar uma boa nota e entrar para um curso de Direito na faculdade. 

Sempre quis cursar Direito, mas fazer parte desse grupo me ajudou a querer ir mais em busca do meu objetivo e a trazer o que eu for aprender para minha aldeia e ajudar o meu povo também.”

Clarisse Alves Rezende

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