A crescente desobrigação dos Estados com a educação pública

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A crescente desobrigação dos Estados com a educação pública

Entrevista com o educador Fernando Cássio, signatário dos Princípios de Adijan

Fernando Cássio é professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC. Em fevereiro participou da discussão final e da assinatura dos Princípios de Abidjan, indicado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Em decisão histórica, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a resolução que reconhece, pela primeira vez, os Princípios de Abidjan.

Fernando conversou com o portal CENPEC Educação sobre a realização deste trabalho e sobre obrigações dos Estados Nacionais com relação à educação pública. Leia a entrevista a seguir.

Portal – Qual a importância da ONU reconhecer os Princípios de Abidjan?

Fernando Cássio Ao reconhecer os Princípios de Abidjan, a ONU afirma a oferta de educação pública e a regulação do envolvimento privado na educação como partes das obrigações dos Estados Nacionais relacionadas à garantia dos direitos humanos.

A ONU não apenas reconhece que a oferta de uma educação pública gratuita, livre, inclusiva e de qualidade é uma obrigação dos Estados Nacionais, mas também que o avanço das privatizações na educação – que minam a garantia dessa oferta – se materializa em violações concretas aos direitos humanos em diversos países. Isso não é pouca coisa.

Portal – Os Princípios também focam a privatização da educação, como isso impacta na educação pública?

Fernando Cássio

Fernando Cássio – Os Princípios de Abidjan foram produzidos a partir do conhecimento acumulado por diversas entidades da sociedade civil que, acompanhando de perto o avanço das privatizações na educação pública em diversas partes do mundo, têm reunido evidências de que estas podem produzir ameaças e violações do direito humano à educação.

O texto dos Princípios de Abidjan é bastante abrangente nesse sentido, e cobre situações que vão desde as escolas privadas de baixo custo na África Ocidental que aplicam castigos físicos nas crianças e levam famílias já muito pobres ao endividamento, até parcerias público-privadas que avançam na África do Sul, na Índia e na América Latina (incluindo, é claro, o Brasil), cristalizando desigualdades educacionais existentes e gerando novas assimetrias.

Conformismo e fatalismo

No debate educacional brasileiro, que considero um tanto despolitizado, muitos especialistas – especialmente os ligados ao setor empresarial – têm adotado uma postura em relação ao subfinanciamento da educação pública que oscila entre o conformismo e o fatalismo. Muitos defendem que o problema do subfinanciamento da educação pública pode ser redimido por melhoramentos nas técnicas gestionárias, naturalizando a visão de que uma melhor gestão dos recursos públicos escassos teria a primazia sobre os nossos esforços de problematizar a própria escassez dos recursos e empreender uma luta política para reverter esse quadro.

A aposta na redenção da falta de recursos públicos pelas tecnologias gestionárias vem quase sempre envernizada por um discurso de mitigação de desigualdades educacionais cujo ponto de partida é a impossibilidade da ampliação do gasto público em educação pública. Complementar a esse discurso, assistimos à defesa cada vez mais contundente de variadas formas de privatização e de mecanismos de financiamento na educação pública.

Desobrigações dos Estados Nacionais

Muitos dos especialistas envolvidos no longo processo de redação e de discussão dos Princípios de Abidjan têm se dedicado a estudar as formas pelas quais a desobrigação dos Estados Nacionais em relação à educação pública, bem como os processos de privatização da educação, criam condições para violações do direito humano à educação em diversos países. Posso citar um estudo recente que publicamos sobre a implantação de um Contrato de Impacto Social (CIS) em escolas de Ensino Médio da rede estadual de São Paulo. Ali mostramos que esse modelo de parceria público-privada – vendida no pacote dos chamados mecanismos “inovadores” de financiamento educacional – é capaz de produzir violações diretas de direitos sociais e individuais.

Os Princípios de Abidjan enfrentam esses problemas afirmando categoricamente a obrigação dos Estados Nacionais em relação à oferta e ao financiamento da educação pública, e exigindo dos mesmos uma forte regulamentação do setor privado com vistas a impedir violações à garantia do direito humano à educação.

A educação é um dos fundamentos mais importantes do desenvolvimento social de uma nação. A Constituição brasileira define a educação universal, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade como um direito social. Acima do conformismo, do fatalismo e do apelo à eficiência na gestão da miséria, está a garantia do direito humano à educação. É em nome disso que precisamos fazer mais e melhor pela nossa educação pública.

Portal – Quais caminhos possíveis para a garantia plena do direito à educação no Brasil?

Fernando Cássio – Temos que lidar com o problema do subfinanciamento da educação pública de maneira mais franca. Enquanto houver no Brasil escolas sem água, luz, coleta de esgoto, bibliotecas, laboratórios, computadores, internet e classes com tamanho compatível; estudantes sem transporte, sem alimentação e com dificuldade de permanecer na escola; professores mal remunerados, sem plano de carreira e sem condições adequadas de trabalho e de formação – violações cotidianas do direito humano à educação no Brasil – nossa agenda prioritária deve ser impedir que isso aconteça.

Já temos mecanismos construídos para isso. Além do Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi) e do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), definidos no Plano Nacional de Educação e nunca implementados, temos a obrigação de não aceitar que o debate sobre o Novo Fundeb seja feito a partir de propostas rebaixadas, expressão daquele fatalismo a que me referi anteriormente.

Sustentados nos princípios mais gerais da dignidade humana, os Princípios de Abidjan nos ajudam a não perder de vista aquilo que realmente importa quando somos levados a acreditar que a escassez de recursos públicos para a educação pública é um dado incontornável ou quando reduzimos o complexo debate das desigualdades educacionais à monotonia da eficiência gestionária.


Fernando Cássio é autor do livro Educação contra a barbárie, publicado pela Boitempo.



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