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    Interculturalidade na prática: o percurso de Canaã dos Carajás rumo a uma cidade educadora

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    O município de Canaã dos Carajás, no Pará, vive um dos processos de transformação urbana e demográfica mais acelerados do país. Entre 2010 e 2022, sua população cresceu 188,51%, impulsionada sobretudo pela expansão da atividade mineradora. Esse movimento atraiu fluxos intensos de migração, especialmente de pessoas do Centro-Oeste e do Maranhão, alterando profundamente a dinâmica social do município. 

    Diante desse cenário, a Secretaria Municipal de Educação (SEMED) passou a enfrentar um grande desafio: como implementar políticas educacionais capazes de reconhecer a diversidade cultural local, enfrentar desigualdades e promover participação social, reconhecendo e valorizando as diferentes identidades que ali convivem?

    Para apoiá-los nessa missão, a SEMED contou com a assessoria técnica do Cenpec que, a partir da perspectiva da Educação Integral, concebeu um projeto voltado à adaptação e implementação do conceito de Cidade Educadora e Intercultural para inspirar e orientar as políticas educacionais do município.

    Iniciado em 2024, com duração de pouco mais de um ano, o projeto teve como foco construir esse percurso formativo junto às equipes da secretaria municipal de educação, gestoras(es) escolares e educadoras(es) da rede de ensino. A proposta buscou fortalecer vozes locais, construir e tornar conhecido dados educacionais sobre a realidade da rede de ensino, além de apoiar na elaboração de instrumentos e práticas que consolidassem uma visão integrada de educação municipal.


    Diversidade cultural: o desafio transformado em potência

    O crescimento acelerado de Canaã trouxe novas identidades, culturas e referências para a cidade. Ao mesmo tempo, revelou tensões históricas, como a invisibilidade de algumas expressões culturais enraizadas no território. Além disso, a ausência de ações diagnósticas mais aprofundadas limitavam o conhecimento da gestão educacional e escolar sobre a vivência de populações negras, comunidades quilombolas e indígenas do território.

    Depoimento

    Foi a partir dessa leitura que o projeto ganhou direção. O trabalho começou pela elaboração de um diagnóstico do território e da rede municipal de educação de Canaã dos Carajás. Nele, trouxemos dados sobre o contexto sociodemográfico, destacando questões relacionadas às desigualdades territoriais, renda, raça/cor, além de aspectos sobre a oferta educacional da rede”, explica Priscila Beltrame, coordenadora de programas e projetos do Cenpec, responsável pela iniciativa.

    A partir da sistematização desses dados, a equipe do Cenpec produziu um relatório analítico que subsidiou, posteriormente, a produção do documento Recomendações para o Planejamento Estratégico da Educação, que contribuiu para a elaboração do planejamento estratégico municipal.

    Outras iniciativas foram realizadas em parceria com a rede, a exemplo do Seminário Canaã dos Carajás: Cidade Educadora Intercultural, em novembro de 2024, que reuniu profissionais da educação. Na ocasião, foram realizadas diversas palestras que trouxeram em perspectiva a equidade como eixo estruturante da interculturalidade, as contribuições indígenas e africanas à língua portuguesa, e a noção de território educativo.

    Depoimento

    Quando a gente fala em Cidade Educadora e Intercultural, estamos falando de reconhecer valores, saberes e modos de vida que compõem o território. Em Canaã, isso significou abrir espaço para dialogar com diferentes públicos e olhar para a educação integral de forma mais profunda. Tanto os seminários quanto as formações do projeto trouxeram temas que nunca tinham sido trabalhados dessa maneira no município. Para muitas e muitos educadores, foi um impacto grande, no melhor sentido: abriu novas perguntas e ampliou horizontes sobre o que a escola pode fazer quando acolhe a diversidade como potência”, afirma Juvenal Soares, especialista do Cenpec e gestor de implementação do projeto.

    Ao longo do processo, o Cenpec também elaborou um plano de formação de professoras(es) e instrumentais de apoio à gestão educacional, com ferramentas para registro, monitoramento, troca de práticas e acompanhamento de dados, que contribuíram para fortalecer rotinas colaborativas entre escolas e secretaria.


    Comunidades de práticas: um dos pontos altos do projeto

    Entre as ações desenvolvidas no projeto, a Comunidade de práticas se consolidou como um dos momentos mais transformadores para as(os) profissionais de educação de Canaã dos Carajás. A iniciativa reuniu diretoras(es) escolares em encontros periódicos, organizados por núcleos de escolas, a fim de criar um espaço seguro de trocas, escuta e aprendizagem coletiva.

    Nos encontros, cada grupo apresentava os projetos e as ações desenvolvidas na escola a partir das etapas de ensino, partilhava os desafios enfrentados pela gestão escolar e soluções possíveis para questões comuns dos grupos. A mediação dos encontros contava com especialistas do Cenpec, que mobilizaram estratégias para tornar o momento ainda mais formativo para esses grupos.

    Conforme explica Priscila Beltrame, do Cenpec, essa metodologia contribuiu para:

    • Romper a solidão da gestão escolar, permitindo que diretoras(es) reconhecessem no outro seus dilemas e potencialidades; 
    • Fortalecer vínculos e corresponsabilidades entre escolas e Secretaria;
    • Ampliar o repertório de soluções para os desafios cotidianos da gestão escolar;
    • Aproximar o diagnóstico realizado para o planejamento e a prática no chão da escola, favorecendo uma atuação mais integrada;
    • E valorizar as experiências existentes nas escolas, reforçando o protagonismo das equipes locais.

    Ao final do projeto, a Comunidade de práticas contou com a realização de um encontro de culminância, um grande momento de partilha que deu visibilidade às experiências de cada grupo de diretoras(es) e que permitiu movimentar ideias e construir pontes entre escolas do município.

    “A vivência conjunta, a troca de experiências e a valorização dos saberes de cada escola criaram um forte senso de pertencimento. O encontro de culminância foi especialmente significativo: um momento de escuta e reconhecimento que mostrou que todos têm algo a ensinar e aprender. Essa metodologia ajudou a superar resistências e reforçou a ideia de que cada gestora e gestor é agente ativo na construção de uma educação intercultural, afirma Juvenal.

    Em um município marcado por grandes transformações, a criação da Comunidades de Práticas se tornou uma estratégia potente de fortalecimento da gestão escolar, reforçando a ideia de que a colaboração entre pares é fundamental para promover uma cidade educadora e intercultural, e mais conectada às realidades do território. 

    Para muitas(os) participantes, esse processo marcou uma virada no projeto.

    Depoimento

    Minha experiência na Comunidade de Práticas foi extremamente enriquecedora, pois proporcionou um espaço vital para a troca de saberes e vivências com outros participantes, focando em como transformar o município em um território de aprendizagem inclusivo e que valoriza a diversidade cultural. Nos encontros e debates, pude aprofundar meu entendimento sobre o conceito de Cidade Educadora e, como Vice-Diretora, adquiri ferramentas e uma visão estratégica, essenciais para aprimorar minhas práticas de gestão e liderança na unidade escolar, e, mais importante, colaborar ativamente na construção de estratégias e diretrizes práticas para a rede de ensino de Canaã dos Carajás, contribuindo para que a educação municipal reconheça e utilize o potencial pedagógico da sua riqueza intercultural”, afirmou a diretora escolar Leila Lima.

    Depoimento

    Ao longo do processo, tive a oportunidade de trocar conhecimentos, vivências e estratégias com outros profissionais, o que ampliou minha visão sobre a prática pedagógica. As discussões, formações e atividades propostas contribuíram para o meu desenvolvimento pessoal e profissional, fortalecendo o trabalho colaborativo e a reflexão sobre os desafios da educação. Foi um espaço de aprendizagem contínua, que valorizou a escuta, o compartilhamento e a construção conjunta de soluções para melhorar a educação em nossa comunidade escolar”, concluiu a vice diretora Viviane Oliveira Silva.


    Premissas para a construção de uma Cidade Educadora e Intercultural

    O conceito tem origem na Carta das Cidades Educadoras, produzida no Primeiro Congresso Internacional das Cidades Educadoras, em Barcelona, na década de 1990. Nela, todos os espaços da cidade são compreendidos como espaços dotados de saber, potencialmente educativos, e que toda cidadã e cidadão – da criança ao idoso – tem algo a ensinar. Nesse sentido, a educação é um processo contínuo, democrático, intersetorial. 

    Para fazer sentido no contexto brasileiro, esse conceito exige um olhar atento para as desigualdades, a diversidade cultural, identitária e formas de promover participação cidadã. No caso de Canaã dos Carajás, o projeto desenvolvido pelo Cenpec baseou-se na perspectiva da Educação Integral, cuja concepção preconiza o desenvolvimento integral de cada estudante, considerando um olhar antirracista, inclusivo, de valorização das práticas culturais do território como partes fundamentais para a promoção de uma educação de qualidade, com equidade, para todas e todos.

    O trabalho sobre a interculturalidade, na perspectiva do projeto, não busca fusão, mas coexistência baseada no respeito, e sem hierarquias, entre culturas existentes no território.


    Evidências qualitativas de impacto

    Mesmo em um tempo curto de trabalho, o projeto deixou um legado singular na rede de ensino de Canaã dos Carajás.

    Um ponto importante dessa jornada e que se reflete no modo de fazer impacto do Cenpec é que a construção de uma Cidade Educadora e Intercultural não foi um produto entregue, mas um processo intenso de diálogo, análise coletiva e colaboração entre todos os envolvidos. 

    Nesse contexto, o projeto deixa como legado novas práticas relacionadas à integração entre equipes da Secretaria, possibilidades de usos de instrumentos que contribuem para um olhar sistêmico sobre a rede e a importância da formação continuada para o fortalecimento das equipes escolares. Além disso, o projeto é um exemplo real de que políticas educacionais mais democráticas e diversas só são possíveis quando as redes se reconhecem como protagonistas desse caminho.


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