Reduzir a maioridade penal é reduzir as perspectivas dos jovens

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Reduzir a maioridade penal é reduzir as perspectivas dos jovens

Artigo da cientista social Daniela Schoeps

Daniela Schoeps

O CENPEC é contra a redução da maioridade penal. Seu posicionamento parte do princípio de que a educação é um direito humano inalienável. Trata-se de um processo social contínuo que implica o envolvimento de diferentes atores e o reconhecimento de diversos saberes e ambientes de aprendizagem. Nesse sentido, a mudança na legislação pode significar que mais uma vez nossos adolescentes poderão responder injustamente pela falta de investimentos do Estado em políticas públicas para a população que vive em situação de vulnerabilidade social.

Não faltam números para mostrar que antes de mudar a legislação, o Brasil deve assegurar direitos. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 57% dos adolescentes não frequentavam o ensino formal no momento da internação. Um estudo realizado pelo Cenpec em 2014, intitulado A Voz dos Meninos, com adolescentes participantes do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais demonstrou que 89% deles apresentavam distorção idade-série acima de dois anos. Além disso, 42% dos jovens relataram não terem tido acesso à cultura antes da internação. Outros 5% afirmaram que, ao longo de suas vidas, só tiveram essa experiência durante o período em que estiveram em instituições de medidas socioeducativas, seja em liberdade semiaberta ou em regime fechado. Esses dados revelam uma triste realidade. Quase a metade deles nunca teve a oportunidade de acessar bens culturais antes de cumprir medidas socioeducativas. Esta é uma clara violação dos direitos dos adolescentes. Por isso, assegurar uma educação de qualidade, que estimula o desenvolvimento integral dos sujeitos com base na ampliação de suas oportunidades educativas e na garantia plena de seus direitos, é a alternativa para que esses jovens possam ter oportunidades de conhecimento e de se tornem protagonistas com opções de escolha para seus projetos de vida.

Com base na experiência do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais, foi possível identificar como o contato com a arte e a cultura contribui para o desenvolvimento dos adolescentes. Apesar do objetivo de a iniciativa ter a arte como experimentação e fruição, os resultados foram além: observou-se o desenvolvimento do letramento por meio de composição de letras de música, leitura de poemas, cantos e rodas de capoeira, textos teatrais, etc. Durante o monitoramento e avaliação do projeto em 2013, os participantes relataram que essas experiências contribuíram para ampliar entre os jovens o desejo de buscar novos conhecimentos e voltar a estudar, ajudaram a compreender o sentido de alguns conteúdos escolares, como geografia, história e português (redação e leitura). Ao ampliar as possibilidades de acesso ao conhecimento artístico e estético e ao pensamento crítico, o sujeito reorienta e internaliza valores, fortalece sua autoconfiança e amplia a probabilidade de novas perspectivas. Ressaltamos, entretanto, que qualquer aplicação de medida socioeducativa se dá dentro de um contexto real sobre o qual as possibilidades de intervenção são limitadas, principalmente pelo contexto institucional de contenção. Por meio do A Voz dos Meninos, observou-se que os adolescentes se identificaram com as atividades propostas nas oficinas de arte e cultura. “As oficinas é bom para a nossa aprendizagem maior que é a aprendizagem da arte, coisas que a gente não teve lá fora (a gente estava sempre na rua, longe de escola, longe de trabalhos como esses). Serve pra você aprender e adquirir mais pique, pra ter interesses. Se você não quiser você não é obrigado a fazer, mas eu procuro fazer porque eu gosto, se eu não gostasse eu não estava fazendo.”

O levantamento indica ainda a relação que o adolescente possui com o trabalho, questão primordial que não deve ser desconsiderada na reflexão da criação de sentidos nos processos de aprendizagem, tanto no ensino formal quanto informal. Grande parte deles projetam ter um bom emprego e voltar a estudar quando estiverem em liberdade. Querem conciliar as aulas com a atividade profissional, ou seja, estudar a noite para poder trabalhar ou mesmo “fazer bicos” durante o dia. Essas falas refletem a de muitos outros moradores das periferias que pensam desde muito cedo na sua inserção no mercado de trabalho e no seu retorno financeiro.


Eu estou estudando, me esforçando muito nas matérias. Estou fazendo uns bicos, ainda não tenho como trabalhar por causa da escola, estou fazendo uns bicos e tentando fazer coisas que vão me trazer mais ensinamentos, tentando praticar o bem, fazendo curso de cozinha, porque já fiz outros há tempos atrás, mas não aperfeiçoei direito e estou aprendendo mais… É o único jeito, tem que estudar pra ter um trabalho (…) Se eu não estudar, eu não vou ter como trabalhar. Então estou procurando um emprego pra futuramente estar dando uma vida diferente para a minha família.”

Atrás dos muros, esses adolescentes tornam-se ainda mais invisíveis para sociedade e para as políticas que visam o enfrentamento das desigualdades. Olhar através dos muros é imprescindível para trazê-los de volta ao mundo ao qual pertencem. Investir num processo educativo é reconhecer que o adolescente tem direito não apenas à vida, mas também o de construir sua própria narrativa. 


Daniela Schoeps

Graduada em Ciências Sociais, mestre e doutora em Saúde Pública. Foi coordenadora de projetos do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).