Por que devemos garantir os direitos dos jovens em conflito com a lei

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Por que devemos garantir os direitos dos jovens em conflito com a lei

A terceira reportagem da série especial de 30 anos do ECA traz um olhar para os jovens em medidas socioeducativas, que estão na escola ou em unidades de internação, e a garantia (ou não) de seus direitos

Por Stephanie Kim Abe

Imagine a situação: já estamos no segundo semestre e um grupo de 12 meninos está trazendo drogas para dentro da escola. Alguns deles chegaram a ser pegos em uma tentativa de roubo de carro e foram parar na delegacia. Grande parte entrou na escola este ano, então você pouco conhece as suas trajetórias, famílias ou histórias de vida. Como a sua escola só atende Ensino Fundamental, e a maioria deles está no 9º ano, no ano seguinte eles não estarão mais na instituição de ensino. Como você procederia?

Para além de não respeitar as regras internas, há aqui uma questão de infração que extrapola o muro da escola, e também de uma situação provável de vulnerabilidade e risco dos jovens envolvidos. Na realidade brasileira, esse tipo de caso é encaminhado de diferentes formas pelos professores e/ou gestores das escolas.

Olhar para essa questão considerando que a instituição de ensino faz parte de uma rede de proteção das crianças e dos adolescentes pode ser determinante para entendermos quem são os jovens que cumprem medidas socioeducativas, as relações entre as diferentes instituições envolvidas nesse sistema e o que é feito para assegurar que eles tenham os seus direitos garantidos – seja dentro de uma unidade de internação ou em liberdade assistida.

Especial CENPEC Explica: 30 anos do ECA

I. Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente

II. Entenda o papel da escola na rede de proteção e crianças e adolescentes

IV. Como assegurar o direito à participação e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes

V. As ameaças aos direitos de crianças e adolescentes hoje – e como enfrentá-las


O que são medidas socioeducativas

Esses jovens que cometem alguma infração também estão protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), importante legislação que completou 30 anos no dia 13 de julho.

O ECA traz consigo o paradigma da Situação de Proteção Integral da Criança e do Adolescente, reconhecendo-os como sujeitos de direitos e de proteção e como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento físico, psíquico e social. Por isso mesmo, ela também traz a perspectiva das medidas socioeducativas, em seu cap. IV, para os jovens que cometem infrações.

Fotografia de Joana D'Arc Teixeira, professora universitária e autora do livro Do perigo ao risco: A gestão e o controle da juventude no sistema socioeducativo de São Paulo.

O objetivo da socioeducação é apontar possibilidades desses jovens virem a se desenvolver, a trilhar outros caminhos que não sejam ligados à perspectiva anterior do ato infracional que ele tenha realizado, por meio de uma mediação e uma série de propostas educativas

Joana D’Arc Teixeira, professora universitária e autora do livro Do perigo ao risco: A gestão e o controle da juventude no sistema socioeducativo de São Paulo (Foto: Arquivo pessoal)

São definidas seis medidas, que podem ser reunidas em dois grupos: não-privativas de liberdade e privativas de liberdade.

Art. 112 – Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I – advertência;
II – obrigação de reparar o dano;
III – prestação de serviços à comunidade;
IV – liberdade assistida;
V – inserção em regime de semi-liberdade;
VI – internação em estabelecimento educacional;
VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

Berenice Maria Gianella, secretária de Assistência Social da cidade de São Paulo, destaca a importância que o Estatuto trouxe para o direito de defesa das crianças e dos adolescentes.

“Em relação à prática do ato infracional, a grande novidade do ECA foi que a apuração do ato infracional passou a obedecer a todos os princípios de um processo penal. Então o adolescente tem o direito de defesa, tem o direito da paridade de armas dentro do processo, e só pode ser processado e ter uma medida que lhe seja aplicada diante de um processo justo, depois de cumprida toda essa trajetória do devido processo legal”, diz Berenice, que foi presidente da Fundação CASA por 12 anos.


Os direitos dos jovens em medidas socioeducativas

Apesar do Estatuto prever que a medida de internação deve ser considerada como o último recurso, sendo evitada ao máximo, ela é bastante aplicada pelos juízes.

“Ao longo da década de 2000, e depois de 2010, houve um incremento muito grande na aplicação de medidas socioeducativas em meio fechado, especialmente em São Paulo. Primeiro, por causa de crimes mais graves que foram praticados por adolescentes, o que criou na mídia a ideia de que eles são mais perigosos que o adulto. Segundo, pela nova lei de entorpecentes [Lei 11.343/06], que deixou para o delegado a decisão do enquadramento por tráfico ou consumo da pessoa detida com drogas, e isso acabou elevando muito o número de adolescentes envolvidos com o tráfico – e portanto, em medidas socioeducativas”, diz Berenice.

Art. 122 – A medida de internação só poderá ser aplicada quando:

I – tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II – por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III – por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
(…)
§ 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.

Segundo dados do último Levantamento Anual dos/as Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa, produzido pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) em 2017 com informações de 2015, existem mais de 26 mil adolescentes em unidades de restrição e privação de liberdade em todo o país.

No estado de São Paulo, os jovens cumprem medidas de internação nos centros socioeducativos da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA). Ainda que eles estejam privados de liberdade, eles têm os seus direitos garantidos – o que se traduz nos diversos serviços que são oferecidos dentro desses centros.

“Na Fundação CASA, a maioria dos adolescentes são do sexo masculino, têm entre 16 e 18 anos, são pardos e negros, e estão em defasagem escolar. Muitos deles não têm uma referência familiar masculina”, revela Berenice, que deixou a presidência da Fundação CASA em 2017.

Entre os seus direitos, está contemplado o oferecimento de oficinas culturais e de arte, como as do projeto Educação com Arte, realizado pelo CENPEC Educação e outras instituições em parceria com a Fundação CASA desde 2008. O projeto acontece em 23 centros, de diferentes regiões do estado, e tem como objetivo fazer com que os jovens internados tenham garantido o direito à arte e cultura.


Documentário Meninos de Palavra (Parte 01), realizado pela Plataforma do Letramento, um projeto do CENPEC Educação

Documentário Meninos de Palavra (Parte 02), realizado pela Plataforma do Letramento, um projeto do CENPEC Educação

Os educadores envolvidos têm como premissa aproximar os adolescentes da criação artística, possibilitando a ampliação do repertório e do conhecimento que já possuem, além de novas vivências e experimentações daquilo que não conhecem.

Além do CENPEC Educação, outras três organizações da sociedade civil realizam oficinas com os jovens em conflito com a lei. Esse compromisso está de acordo com o princípio da “incompletude institucional’ na política de atendimento socioeducativo, que estabelece que a socioeducação não deve ser fechada, mas sim se dar para além da instituição, por meio da parceria com outras organizações.

Fotografia de Marília Rovaron, cientista social e coordenadora técnica do projeto Educação com Arte pelo CENPEC Educação

O que a gente percebe é que a maioria dos adolescentes relata não ter um contato com a cultura anterior à medida socioeducativa. Ou que é dentro desse espaço que eles têm acesso pela primeira vez a um dentista, um médico, ou a cinco refeições diárias. Ou seja, eles passam a ter alguns direitos garantidos justamente quando infracionam – e isso é perverso

Marília Rovaron, cientista social e coordenadora técnica do projeto Educação com Arte pelo CENPEC Educação (Foto: Arquivo pessoal)

Saiba mais sobre o projeto Educação com Arte


Diferentes atores para garantir todos os direitos

A psicóloga e professora Juliana Cavicchioli de Souza, especializada em adolescentes em conflito com a lei, também percebeu essa contradição, durante a sua atuação no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), em Rio Claro, interior de São Paulo.

É o Creas que presta o serviço de proteção social a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em liberdade assistida (LA) e de prestação de serviço à comunidade (PSC).

O acompanhamento oferecido pelo órgão busca proporcionar ao jovem autor de ato infracional o que deveriam ser condições concretas de vida, como inserção em benefícios sociais, cadastro no Sistema Único de Saúde e em programas de transferência de renda. Essas ações somam-se ao trabalho realizado com os técnicos do Creas, de reflexão sobre o próprio ato infracional.

“Mesmo que o adolescente repense sobre o que fez, ele volta para casa e continua não tendo os seus direitos fundamentais básicos garantidos. Ou seja, continua nessa situação de pobreza, de desemprego na família, muitas vezes de violência (sexual, psicológica, verbal, doméstica). Então, em geral, ele não tem essa percepção de direitos, justamente porque isso não está próximo do seu cotidiano e da sua vida”, explica.


O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)

A assistência social é uma das áreas envolvidas no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) – (Lei nº 12.594 de 2012), que traz as regras gerais de como as medidas socioeducativas são executadas.

Esse sistema já estava previsto na resolução 119 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em 2006, e é regido pelo Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo (Resolução 160/2013 do Conanda).

Artigo 3° – O Sinase é um conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medidas socioeducativas.

Resolução 119, de 11 de dezembro de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)

Os estados são responsáveis pelas medidas em regime fechado e em semiliberdade, e os municípios pelas medidas em regime aberto. O governo federal dá o apoio, em termos de projetos e recursos, por meio do Ministério da Cidadania.

Fotografia de Berenice Maria Gianella, secretária de Assistência Social da cidade de São Paulo.

O Sinase é um sistema de garantias. Ele vem como uma lei de execução da medida socioeducativa e de racionalização do sistema. Baseado em uma série de princípios, o Sinase tenta tornar mais justa a execução da medida socioeducativa

Berenice Maria Gianella, secretária de Assistência Social da cidade de São Paulo (Foto: Arquivo pessoal)

A secretária destaca alguns importantes princípios, como o da “proporcionalidade na aplicação da medida” (art. 35 da Lei do Sinase), que garante que o adolescente não pode ser mais gravemente punido do que um adulto, e a impossibilidade de ser aplicada uma nova medida de internação por um ato infracional cometido anteriormente ao cumprimento da atual medida socioeducativa (art. 45, § 2º). “Entende-se que ele já passou pelo processo reeducativo, então esse adolescente não deve ser novamente punido”, diz.

Art. 19 § 3º – Os programas de execução de medidas socioeducativas devem oferecer condições que garantam o acesso dos adolescentes socioeducandos às oportunidades de superação de sua situação de conflito com a lei.

Resolução 113, de 19 de abril de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), sobre o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA)

O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) é constituído dos sistemas de saúde (SUS), de educação (SE), de assistência social (Suas), de segurança pública (SSP) e de justiça (SJ).


Conversas e orientações, no lugar da punição

Lembra-se da situação do primeiro parágrafo da reportagem, aquela do grupo de alunos usuários de drogas na escola? Pois bem, ela existiu de fato. E a atitude da escola frente a esse contexto foi de muita escuta, trabalho e articulação.

A situação aconteceu, em 2019, na EMEF Prof. Enzo Antonio Silvestrin, na região de Taipas, em Pirituba, zona norte da cidade de São Paulo. Não houve advertência ou suspensão. Tampouco foi chamada a polícia.

Fotografia de Simone Oliveira, coordenadora da EMEF Prof. Enzo Antonio Silvestrin, em São Paulo.

Deixamos muito claro para todo mundo que não existia possibilidade alguma do uso de nenhum tipo de droga dentro da escola e chamamos as famílias para que assumissem essa responsabilidade conosco. A partir daí, fomos construindo o nosso trabalho. Muita conversa, muito diálogo e uma certeza: que a punição não era um caminho que a gente seguiria, pois não iria resolver o problema

Simone Oliveira, coordenadora da EMEF Prof. Enzo Antonio Silvestrin, em São Paulo (Foto: Arquivo pessoal)

Alguns pais dos estudantes envolvidos quiseram tirá-los da escola, mas a direção insistiu na sua permanência. E também manteve a postura firme diante de familiares dos demais alunos que vinham cobrar uma punição para esses estudantes. “Os meninos estão fazendo um monte de coisas erradas e ninguém vai fazer nada? Chegam aqui no outro dia e não têm uma suspensão, uma advertência?”, eram alguns dos questionamentos.

Pelo contrário. Nas conversas mensais, que envolviam alunos, familiares, professores e direção da escola, eles buscavam estabelecer combinados, entender um pouco esses jovens, e ajudá-los a se conhecer melhor. Dessas conversas, foram descobertas as situações familiares difíceis em que muitos se encontravam, como pais desempregados, violência doméstica e relações conflituosas com o pai.

“Para quem mora na periferia, como eu, essas situações não são novas. Sabemos que a vida não é fácil para quem é periférico. Mas esse episódio foi importante para ratificar algo que já acreditava e que a escola pratica: a punição não é a solução para o adolescente”, diz Simone Oliveira.


Escola como um lugar de não-pertencimento

Os processos gerados na EMEF Prof. Enzo Antonio Silvestrin também incluíram encaminhamentos para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), quando viram que era necessária uma ajuda profissional e que a escola não podia dar conta sozinha dessa situação.

Ainda foram organizadas conversas com os demais estudantes da escola, para lidar com a estigmatização dos alunos envolvidos no episódio. E houve a criação de projetos específicos pensando nos interesses desses alunos, como jiu-jitsu, e formações com todos os(as) professores(as) da escola, para refletir e alinhar as estratégias e pensamentos em relação às medidas tomadas.

“Nas nossas reuniões, existe uma discussão da nossa atitude enquanto educador na educação pública. Muitos de nós somos do bairro e sabemos o que é ser estudante adolescente em uma escola pública e ter tantos direitos negados. Nosso trabalho só foi possível porque entendemos a nossa escola como um projeto de sociedade nesse território”, diz Simone Oliveira.

Saiba mais sobre a experiência de transformação e gestão democrática da EMEF Prof. Enzo Antonio Silvestrin nesta matéria do Centro de Referência em Educação Integral

A atuação dessa instituição é diferente da vivenciada na maioria das escolas com as quais a psicóloga Juliana Cavicchioli teve que lidar nos seus anos de atuação no Creas. O que ela mais percebeu foi que, apesar de serem obrigados a continuar frequentando a escola (ou seja, terem garantido o seu direito à educação), os jovens em medidas socioeducativas não têm interesse nela.

“A educação é entendida como um espaço sem sentido, porque o que está colocado lá não ecoa na vida desse jovem. Não existe a percepção de se transformar enquanto sujeito nesse espaço. A escola vai se tornando um lugar de assujeitamento”, diz Juliana Cavicchioli.


Um olhar preventivo

Fazer esse trabalho de entender os jovens e escutá-los é uma forma de assegurar que haja espaços e instituições no território que eles se identifiquem e se apropriem, de forma que os direitos sejam garantidos antes de que seja cometida uma infração. Essa responsabilidade deve ser compartilhada pelos diferentes órgãos que fazem parte da rede de proteção.

Fotografia de Juliana Cavicchioli de Souza, psicopedagoga especializada em adolescentes em conflito com a lei

O Sinase precisa ter uma perspectiva muito mais socioeducativa, de fato, do que punitiva. Ele ainda está muito focado em levar o adolescente da delegacia para o Creas e dizer que ele é um infrator, em vez de olhar pra esse jovem e questionar: Por que e para que o jovem infraciona? Onde podemos interromper esse ciclo – como sistema, como governo, como Estado, como sociedade civil?

Juliana Cavicchioli de Souza, psicóloga especializada em adolescentes em conflito com a lei (Foto: Arquivo pessoal)

Ela também questiona o costume de se manter os jovens em medidas socioeducativas após eles saírem da privação de liberdade.

Para Joana D’Arc, outro problema para a efetivação do Sinase é a questão da representatividade que esses jovens em conflito com a lei têm na sociedade, que ainda os veem como criminosos. Ela também alerta para as mudanças que precisam ocorrer em relação ao tratamento que é dado a eles dentro da Fundação CASA.

“A Fundação CASA ainda tem questões entre o punitivo e o educativo. É algo que entra em conflito constante, porque ao mesmo tempo que você quer garantir medidas socioeducativas, você ainda tem do outro lado algo relacionado aos processos de controle social”, diz Joana D’Arc .


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