Educação para o patrimônio: identidade, memória e território

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Educação para o patrimônio: identidade, memória e território

Entenda o que é educação para o patrimônio e como ela é trabalhada pelo Programa Conexão Comunidade

Por Stephanie Kim Abe

Caso tenham algum parente de Minas Gerais, já perguntaram quando foi que ele(a) descobriu que nem todo mundo falava “uai”? Ou tiveram que explicar para alguém o que são os congados – festas religiosas afro-brasileiras de celebração à Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em que se canta e dança ao som de chocalhos, tambores e outros instrumentos? 

Raissa Fernandes Faria, coordenadora do Programa Conexão Comunidade na Agência de Iniciativa Cidadã (AIC), explica:

mulher educadora Raissa Fernandes Faria
Foto: arquivo pessoal

Muitas vezes não nos damos conta que o território diz muito sobre nós. É quando descobrimos o diferente que passamos a descobrir mais sobre nós mesmos – como quando me deparo com alguém que não fala ‘uai’ ou uma pessoa que nunca viu o mar. É por isso que quando falamos sobre identidade, a nossa investigação nunca é somente sobre nós mesmos.”

Raissa Fernandes Faria

O Programa Conexão Comunidade trabalha o tema da educação para o patrimônio com estudantes, educadores(as), agentes culturais e comunidades de nove cidades de todo o país. É conduzido pela AIC e viabilizado pela empresa de soluções logísticas VLI. 

Como define Maria Clara Fernandes de Oliveira, gerente de Sustentabilidade da VLI:

mulher Maria Clara Fernandes Oliveira
Foto: reprodução

O Conexão Comunidade possibilita que estudantes e professores tenham o olhar ampliado para o local onde vivem, conhecendo os seus patrimônios materiais e imateriais, valorizando-os e, consequentemente, contribuindo para a preservação. Além disso, todo conhecimento produzido durante o projeto é compartilhado com outros(as) estudantes, famílias e comunidade, além de promover o intercâmbio entre escolas da mesma cidade e de outras localidades.”

Maria Clara Fernandes de Oliveira

O que é educação para o patrimônio

pessoas na festa do Rosário
ppeFesta em homenagem a Nossa Senhora do Rosário em Conceição do Mato Dentro (MG). Foto: Centaurokiron/Wikipédia

De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), patrimônio cultural é um conjunto de
“manifestações, realizações e representações de um povo”.

Integram o patrimônio cultural as referências e manifestações culturais, sejam elas canções, brincadeiras, saberes, ofícios, modo de fazer etc. Legalmente, os patrimônios imateriais devem ser registrados e os patrimônios materiais tombados, sinalizando o reconhecimento e a valorização desses bens culturais para a sociedade como um todo.

Antigamente, quem definia o que era valioso culturalmente para um povo não era necessariamente quem vivia na comunidade e praticava essas manifestações. Para Raissa, pontuar essa diferença é essencial para entender o que é a Educação patrimonial hoje:

Esse tema é recente, da década de 1980, e começou com uma ideia elitista, que não buscava entender de fato o que aqueles patrimônios tinham a ver com as pessoas do território. Também trazia muito a ideia de contar a história da perspectiva do vencedor, dos dominadores, o que significa também o apagamento de muitas histórias e manifestações culturais.”

Raissa Fernandes Faria

A educação patrimonial proposta pela AIC faz o movimento contrário: estimula que educadores(as) e estudantes olhem para os seus territórios, costumes, valores, ancestralidade e crenças para resgatar e reconhecer, de forma colaborativa, quais são valiosos e fazem parte de suas identidades. 

mulher Eveline Souza Xavier
Foto: arquivo pessoal

Eveline Souza Xavier, educadora da AIC, conta:

Queremos ampliar a visibilidade para esse lado da história dos herdeiros dos fazeres, dos saberes, que construíram de fato essas manifestações. A educação patrimonial precisa ser, antes de tudo, emancipatória e colaborativa, chamando as pessoas para sentar, conversar e fazer leituras sobre essas outras verdades.”

Eveline Souza Xavier

Metodologia de trabalho

O Programa Conexão Comunidade trabalha a educação patrimonial em quatro etapas, sempre com base na arte-educação. Primeiro, os(as) estudantes realizam o mapeamento das referências culturais do território – seja por mapas afetivos, caminhada fotográfica, entrevistas -, com uma perspectiva de investigar as preciosidades que existem por ali.

Entender por que eu tomo suco de acerola no almoço, por que eu como determinada comida, por que falo da forma como falo etc. É uma investigação sobre si mesmo e sobre o entorno.” 

Raissa Fernandes Faria
Estudante desenhando e escrevendo o mapa de seu território
Estudante desenhando e escrevendo o mapa de seu território. Foto: Conexão Comunidade

A partir daí, realizam o registro dessas descobertas, por meio de pequenos produtos, como cartazes ou vídeos. O grupo estimula o uso de técnicas e materiais acessíveis e populares, como serigrafia, estêncil, carimbo etc. 

A etapa seguinte, chamada de “extrapolação”, requer uma discussão entre toda a classe para decidir em qual dos temas investigados a turma pretende se aprofundar, de forma a conhecer mais sobre essa referência ou patrimônio cultural e produzir materiais mais robustos. 

Por fim, há um momento de apropriação, em que as descobertas e os trabalhos finais são compartilhados com as famílias e a comunidade escolar em geral.

Produções dos(das) estudantes sobre patrimônio cultural.
Produções dos(das) estudantes sobre patrimônio cultural. Foto: Conexão Comunidade

Todas as produções artísticas realizadas no ano passado estão disponíveis no site oficial do Programa Conexão Comunidade. O acervo é muito rico e interessante: há podcasts, publicações, vídeos, quiz, mapeamentos e jogos que podem ser trabalhados em sala de aula em qualquer lugar do país.

Araguari, Arcos, Belo Horizonte, Patrocínio e Santa Luzia, em Minas Gerais; Alagoinha e Brumado, na Bahia; Barra dos Coqueiros, em Sergipe; e Cubatão, em São Paulo, foram as cidades que participaram do Conexão Comunidade em 2020.

O Programa também disponibiliza em seu site um material de apoio pedagógico para educadores(as) e instruções para a utilização da cartilha “Diário do Explorador”, material desenvolvido para conversar sobre Educação patrimonial com estudantes do Ensino Fundamental I e II que pode ser utilizado mesmo durante o ensino remoto. 

Clique aqui para acessar o site Conexão Comunidade


Potencialidade

O tema patrimônio cultural está previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), principalmente como conteúdo de Artes. Mas a equipe acredita que a questão pode ser trabalhada transversalmente nas escolas e depende muito do olhar do corpo docente para as potencialidades da temática.

Estudantes expõe fotos de seu território. Foto: Conexão Comunidade
Estudantes expõe fotos de seu território. Foto: Conexão Comunidade

Via de regra, a maior parte dos(das) estudantes em sala nunca acessaram o conceito de patrimônio cultural. Entretanto, trabalhei com algumas comunidades rurais ou remanescentes quilombolas em que o território estavam o tempo todo na escola. Os(as) alunos(as) sabiam citar o que havia na cidade, como a dança das mangabeiras, em Barra dos Coqueiros, ou as moças do acarajé, no centro de Alagoinhas. As escolas mais afastadas, com poucos recursos, precisam contar com essa articulação comunitária – e aí vemos a potência dos territórios educativos.” 

Eveline Souza Xavier

Por focar a questão da identidade, do olhar subjetivo e do resgate da ancestralidade, a equipe aponta como um tema interessante também para trazer a história afro-brasileira e ameríndia, como estabelece a Lei 11.645/08, para o currículo escolar. 

mulher Camila Bicalho
Foto: arquivo pessoal

Para Camila Barone dos Santos Bicalho, arte educadora da AIC, a educação patrimonial permite que os(as) educadores(as) explorem as diferenças e discuta valores que são necessários para a convivência em sociedade:

Acredito que são momentos bons para conversar sobre religiões, preconceitos, diversidades. Presenciamos muitos professores abertos a essas discussões, trazendo não apenas as suas próprias crenças e elementos da sua identidade. Há muita potência nessa temática.”

Camila Bicalho

Curso Se esse patrimônio fosse meu: educação patrimonial e pertencimento

Curso Se esse patrimônio fosse meu: educação patrimonial e pertencimento
Imagem: Conexão Comunidade

Para docentes que tenham interesse na temática, a Agência de Iniciativas Cidadãs organizou um curso remoto e gratuito, que está com inscrições abertas até o dia 5/7.

Com carga horária total de 40h, o curso é dividido em três módulos, com aulas síncronas e assíncronas, artigos, textos de apoio, sugestões de atividades pedagógicas e proposta de execução de projeto final em colaboração com os(as) estudantes mobilizados(as). 

A formação ocorre por meio da plataforma Udemy, tem 100 vagas e inicia-se no dia 19/7. Podem se inscrever docentes da rede pública de ensino, mediadores(as), facilitadores(as) e arte-educadores(as) de qualquer lugar do Brasil.

Os participantes serão certificados pela articulação AIC – Universidade Federal de Minas Gerais, e os melhores projetos executados concorrerão a uma premiação em equipamentos eletrônicos para aulas digitais ou aulas presenciais com propostas multimídias.

O curso tem patrocínio da VLI e é realizado com recursos da Lei de Incentivo à Cultura da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.    

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