Educação na pandemia e o ensino de ciências biológicas
Apesar do momento difícil e das incertezas, a pandemia causada pelo novo coronavírus possibilita que professores trabalhem conteúdos curriculares de biologia
Por João Marinho
A pandemia da Covid-19, doença respiratória causada pelo Sars-CoV-2, o novo coronavírus, mudou completamente a rotina de escolas, famílias e profissionais da educação. Se, em algumas escolas – notadamente da rede particular –, professores tiveram de aderir rapidamente a plataformas de educação a distância (EaD), em parte considerável da rede pública, as aulas foram suspensas ou as férias foram antecipadas.
O cenário de incertezas, porém, traz também potencialidades
para educadores de diferentes disciplinas, especialmente aquelas relacionadas
às áreas de matemática
e ciências da natureza, como a biologia.
A fim de entender os inúmeros gráficos que têm saído em reportagens da imprensa quanto ao número de casos, compreender o que é um vírus e formas de evitar o contágio, como ocorre a replicação no organismo e até mesmo conceitos típicos da epidemiologia – como os de pandemia, taxas de letalidade e de mortalidade etc. –, estudantes precisam recorrer a conteúdos curriculares das aulas de ciências biológicas.
Quarentena ou distanciamento?
O Brasil não está em quarentena, você sabia? Segundo o professor Gabriel Henrique Duarte e Silva, o que fazemos agora é o distanciamento social. “As pessoas ficam em casa, as escolas são fechadas, e há apenas os serviços essenciais funcionando”, explica.
Segundo Silva, “a quarentena se aplica quando, por exemplo, uma pessoa vem de um lugar com altos níveis de contágio e precisa ficar em isolamento, à espera de verificar se os sintomas se manifestam ou não e, se sim, evitar transmitir a doença caso ela venha a aparecer”.
Isso torna a pandemia uma oportunidade única, apesar do
momento extremamente difícil, para professores trabalharem o currículo a partir
de exemplos do dia a dia, com foco nas competências trazidas pela Base
Nacional Comum Curricular (BNCC).
Trabalhando com desigualdades
“Os próprios alunos trazem as dúvidas”, diz o professor Felipe de Araújo e Silva, que dá aulas no Centro Educacional Anísio Teixeira (CEAT), da rede particular; e no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp UFRJ), escola pública federal mantida pela instituição.
Silva conta que, no CAp UFRJ, a decisão da escola e dos
docentes foi de suspender temporariamente as aulas e não aderir à EaD, seguindo
um padrão visto em outras unidades das redes públicas. No CEAT, no entanto,
onde o ensino a distância é realidade, os alunos têm recorrido aos professores de
biológicas para sanar uma série de dúvidas em relação à Covid-19 e ao distanciamento
social. “A principal dúvida é sobre quando tudo isso vai acabar e quando
voltaremos à normalidade – e esse acaba sendo um ponto para trabalhar os
conteúdos da disciplina”.
O professor conta que assuntos importantes, como saúde pública e desigualdades sociais, estão entre aqueles que podem ser abordados junto aos conceitos típicos das ciências biológicas.
Fica muito claro que não podemos falar de distanciamento social, higiene, prevenção ao coronavírus e saneamento básico sem discutir as desigualdades tão gritantes no Brasil, que fazem com que, em certas regiões, não haja acesso suficiente à água e o atendimento de saúde seja tão precário”.
Felipe de Araújo e Silva
O canal Biologia Total, do YouTube, é uma das dicas de bons conteúdos na internet para professores trabalharem com seus alunos, além do canal do professor Atila Imarino. Veja mais ao final da reportagem.
Professora com experiência de cerca de 20 anos em sala de aula, Nathanielly Rocha Casado de Lima dá aulas nas redes estadual e municipal do Rio de Janeiro: na Escola Municipal Berlim, onde dá aula de ciências do 6° ao 9° ano do ensino fundamental; e no Colégio Estadual Mato Grosso, onde é professora do ensino médio.
Com mestrado e doutorado na área de entomologia (estudo de insetos) e experiência como diretora de escola, Casado Lima dedicou-se à pesquisa do barbeiro, vetor da doença de Chagas, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e destaca uma série de potencialidades da escola pública, como o fato de haver um bom espaço para autonomia e professores com excelente formação e/ou experiência.
Por vezes, porém, questões sociais, como as próprias
desigualdades, a violência e a falta de investimento, batem à porta. A professora,
que também dá aula à educação de jovens e adultos (EJA) – para os quais tem
disponibilizado textos pela internet –, dá uma dimensão das desigualdades: em
uma turma de 45 alunos, apenas 18 têm conseguido acessar consistentemente o
conteúdo: “Os demais não têm todos os recursos disponíveis. Às vezes, há apenas
um celular para a família inteira, ou há um irmão que compartilha o smartphone
e que também precisa acessar os textos dele”.
Já em relação às outras questões, Lima comenta que “a maior dificuldade que enfrentamos hoje, para mim, é a segurança… do aluno, do professor, do diretor. Eu mesma, como professora, já fui ameaçada várias vezes. Em muitas escolas, hoje em dia, não há porteiro, porque não tem concurso. Quando eu estava na direção em São Gonçalo (RJ), eu era, então, porteira, coordenadora, professora, tudo – e, infelizmente, tem havido uma falta de parceria das famílias com a escola pública”, conta.
É importante que os pais ou responsáveis acompanhem a vida escolar e a aprendizagem dos alunos. Ver se há dever, checar as notas, ouvir os professores. Em muitos casos, hoje, isso não existe.”
Nathanielly Rocha Casado de Lima
Currículo e pandemia
Para Gabriel Henrique Duarte e Silva, do Colégio CEL, escola particular também do Rio de Janeiro, o professor de biologia precisa ser realista ao responder às dúvidas dos alunos, tanto em relação à pandemia em si quanto aos impactos para os diferentes grupos na sociedade.
“O cenário é nebuloso. Ainda não sabemos quando as coisas devem normalizar – e, para escolas e alunos com poucos recursos, é mais complicado ainda. Temos, então, de ser realistas, ainda que com cuidado, porque os alunos são jovens, gostam de sair e estão em uma situação complicada”, comenta.
Como professores, temos de tomar cuidado para não descrever um ambiente catastrófico. Não é o apocalipse. No entanto, é realmente uma situação delicada, sobre a qual temos de falar apenas com base em boas pesquisas.”
Gabriel Henrique Duarte e Silva
Abordagem STEM
Uma das possibilidades de trabalhar a pandemia no retorno às aulas, ou mesmo a distância, é a abordagem STEM (do inglês science, technology, engineering, and mathematics), foco do Prêmio Respostas para o Amanhã.
O STEM dialoga diretamente com a competência específica 2 da BNCC para a área de ciências da natureza e suas tecnologias para o ensino médio: “Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar decisões éticas e responsáveis”.
“O STEM como abordagem para o ensino de ciências, ao propor a observação do contexto para identificar problemas reais, permite desenvolver o olhar crítico e atento sobre a realidade para interpretar os fatos e fenômenos relacionados a diversas questões da vida, do planeta e, até mesmo do universo”, explica a professora e bióloga Mariana Lorenzin, especialista na abordagem.
Quais os conteúdos de biologia, no entanto, que os professores podem efetivamente trabalhar, na EaD ou no retorno às aulas presenciais? Gabriel Duarte, que dá aulas aos anos finais do ensino fundamental e ao ensino médio, dá algumas dicas, que já tem trabalhado nas suas, a distância.
“O básico e principal é trabalhar o vírus: características gerais, como é a estrutura de um vírus. Existe sempre aquele debate se o vírus é um ser vivo ou não é, algo que ainda não tem uma definição exata no meio científico – e podemos retomar justamente essa discussão”, exemplifica.
“Os vírus não têm células, o que é um conflito com o princípio de que todo ser vivo tem célula(s), mas, ao mesmo tempo, o vírus tem seu material genético, é capaz de multiplicar-se e está sujeito a processos evolutivos: ele sofre mutação e vai ser selecionado pelo ambiente, sofre seleção natural”, esclarece o professor.
Nathanielly Lima complementa: “Podemos ainda trabalhar o conceito de membrana plasmática em si, porque há a permeabilidade seletiva: como o vírus consegue penetrar na célula e acessar o ambiente intracelular. Há também os conceitos de DNA e RNA – o novo coronavírus é um vírus do tipo RNA – e de como funciona o sistema imunológico, explicando parcialmente por que o vírus afeta mais algumas pessoas que outras, que tem sido uma dúvida recorrente dos alunos”.
Felipe Silva destaca, ainda, a síntese de proteínas, uma vez que o vírus “escraviza” as células para produzir suas próprias proteínas e, assim, seguir replicando-se no organismo.
Gabriel concorda: “Fora de um organismo, como não tem célula, o vírus não tem metabolismo próprio: é como se estivesse dormente. Dizemos que é uma forma cristalizada. No entanto, ao entrar em contato com uma célula, ele passa a ficar ativo e vai usar todo o mecanismo de produção de proteínas dessa célula para produzir partículas virais, e é isso que vai produzir a doença, porque vai provocar a morte de várias células”.
Fora de um corpo, você não ‘mata’ um vírus. Numa superfície qualquer, o que você tem de fazer é utilizar coisas para desfazer a estrutura do vírus que está ali, dormente, porque ele tem uma camada de gordura externa. Com sabão ou desinfetantes, por exemplo, essa camada se desfaz, e ele não será capaz de infectar uma pessoa. É diferente de uma bactéria, que efetivamente morre, porque ela continua com seu metabolismo fora do corpo, por mais que seja reduzido.”
Gabriel Henrique Duarte e Silva
A interpretação de gráficos e tabelas também pode ser trabalhada com os alunos. “Uma das principais dificuldades que os alunos tinham era interpretar um gráfico, ou uma tabela. Com o que tem saído sobre o coronavírus, eles têm visto coisas como a curva de infectados, se aumenta ou diminui, e agora conseguem entender melhor essa parte do conteúdo, além da dinâmica do contágio e transmissão”, diz Nathanielly Lima.
Ajuda on-line
Os professores também podem lançar mão de ferramentas como canais do YouTube e recorrer a sites confiáveis – mas também é importante reconhecerem suas limitações. “Uma coisa que levarei quando voltarmos às aulas nas escolas públicas é que precisaremos não focar excessivamente o conteúdo, ou vamos enlouquecer”, comenta Nathanielly.
Segundo ela, “infelizmente, não conseguiremos, de fato, dar
tudo que estava previsto para o ano, até porque ainda não sabemos quando as
coisas voltarão à normalidade, e a previsão é que as escolas sejam os últimos
dos equipamentos a retornarem à ativa”.
Uma possibilidade é trabalhar com os alunos essa questão do coronavírus e do distanciamento social, de como isso os afetou: trazer a experiência deles, do que eles viveram, para a sala de aula.”
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