Direitos das juventudes e socioeducação

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Direitos das juventudes e socioeducação

Avanços e desafios no caminho dos direitos de crianças e jovens. Na terceira matéria em celebração ao Dia internacional da juventude (12.8), o foco é a socioeducação

A redemocratização no Brasil, que teve como marco a promulgação da Constituição federal de 1988, trouxe grande força para a causa da educação como caminho para a formação cidadã da população. Fruto desse processo, a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n. 8.069), em 1990, representou uma virada profunda na legislação acerca da infância e adolescência.

A lei em vigor define como dever do Estado e da sociedade a proteção integral das crianças e adolescentes, que passam a ser considerados sujeitos de direitos, entre os quais o direito à educação e à cultura, conforme dispõem os artigos a seguir:

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho […]
Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.”

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente

Um aspecto central no Estatuto é o reconhecimento do direito à cidadania de todas as crianças e adolescentes, independentemente da classe social. A legislação anterior (Código de Menores, Lei n. 6.697/79), ao empregar o termo “menor”, tinha como pressuposto a ideia de incapacidade e a consequente falta de direitos relacionada à faixa etária. Além disso, enquanto o Código de Menores se aplicava somente àqueles em “situação irregular” ou em conflito com a lei, o ECA se aplica a todos os meninos e meninas até 18 anos. É o que destaca o professor Angel Pino no artigo “Direitos e realidade social da criança no Brasil: a propósito do Estatuto da Criança e do Adolescente”, publicado no ano em que a nova legislação entrou em vigor.

Uma mudança importante é o paradigma educativo em contraponto ao punitivo ou a práticas baseadas na ideia de caridade e filantropia. Na lei anterior, os “menores inadaptados” ficavam sob tutela do Estado, justificando a ação repressiva. De forma diversa, o ECA traz instrumentos jurídicos para garantir o respeito aos direitos de crianças e adolescentes que se encontram em estado de vulnerabilidade. Consideram-se incluídos entre estes as crianças que cometeram atos ilícitos.

A esse propósito, a legislação em vigor faz distinção entre medidas protetivas e medidas socioeducativas: as primeiras se aplicam  a crianças e adolescentes em situação de abandono ou violação de direitos, ou a crianças (de até 12 anos) que tenham cometido ato infracional, por considerar que estas se encontram em grave situação de risco ou violação de direitos. Já as medidas socioeducativas são aplicadas apenas a adolescentes (de 12 a 17 anos incompletos) que cometeram ato infracional.


Cenário atual: avanços e desafios

Ao longo de quase 30 anos de ECA, são inegáveis os avanços, mas há muitos desafios a enfrentar para a efetiva proteção dos direitos da infância e adolescência. A maioria dos meninos e das meninas em conflito com a lei é vítima de um contexto social que nega direitos sociais básicos, como educação, saúde, cultura, moradia e convívio familiar. 

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda há 1,3 milhão de adolescentes entre 15 e 17 anos fora da escola. O Atlas da Violência de 2019, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 35.783 pessoas entre 15 e 29 anos tiveram mortes provocadas por homicídios. Entre 2011 a 2017, foram notificados 184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes, segundo o Boletim Epidemiológico divulgado em junho de 2018 pelo Ministério da Saúde.

Especificamente em relação a adolescentes em conflito com a lei, levantamento realizado pelo CNJ em 2011 aponta que, dos 17,5 mil adolescentes infratores que cumpriam medidas socioeducativas no Brasil, mais da metade deles já não frequentava mais a escola, sendo que a maioria parou de estudar aos 14 anos, entre a 5a e a 6asérie. 

Socioeducação e arte na construção de projetos de vida

Há várias iniciativas governamentais em parceria com organizações da sociedade civil que procuram combater esse cenário de desigualdades em relação aos direitos desse segmento da população. O objetivo é garantir que as medidas socioeducativas, aplicadas aos adolescentes infratores, em liberdade assistida ou em internação, tenham de fato caráter pedagógico e colaborem para sua ressocialização.

Uma dessas iniciativas é o Educação com Arte: Oficinas Culturais, parceria entre o CENPEC Educação e Fundação CASA. As oficinas de arte e cultura oferecidas, desde 2008, pelo projeto em unidades de internação no estado de São Paulo são fruto dos avanços proporcionados pelo ECA na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes.

O projeto parte do pressuposto de que educação e cultura são fundamentais na formação destes meninos e meninas, para a construção de sua autoestima e o reconhecimento de sua potência como autores de seus projetos de vida e de seu papel na sociedade.

Como se afirma na publicação A voz dos meninos (CENPEC, 2014), resultante de pesquisa desenvolvida com base nesse projeto:

Quadro de HQ da publicação A voz dos meninos. Menino sem traços de rosto entrando em uma sala, com duas cadeiras vazias à sua frente, e um portão com grade semiaberta às costas
Quadro de HQ da publicação A voz dos meninos

O Cenpec aposta nessa articulação entre educação e cultura como estratégia de superação das desigualdades. […] No caso do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais, a cultura abre canais de interlocução com esses jovens; através de referências a práticas e saberes que se conectam às suas realidades, é possível estabelecer um diálogo com esses adolescentes, que apresentam muitas vezes um histórico de experiências educacionais negativas.”

CENPEC, A voz dos meninos

SAIBA MAIS SOBRE O EDUCAÇÃO COM ARTE


29 anos do ECA: balanços e perspectivas

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é considerado uma das legislações mais avançadas do mundo no que diz respeito à infância e adolescência. Quase três décadas depois, que balanço podemos fazer? Quanto do Estatuto já foi implementado e quais os desafios para a efetiva garantia dos direitos de crianças e adolescentes no País, em especial os que estão em medida socioeducativa? Esses foram os temas da terceira edição do Socioeducação em Debate, que aconteceu no dia 25 de julho na sede do CENPEC, em São Paulo.

Em contraponto à legislação anterior, o ECA traz um grande avanço, ao considerar a criança, e não mais “o menor”, como sujeito de direitos plenos, a quem o Estado e a sociedade devem garantir o respeito à dignidade. No entanto, como alerta Marília Rovaron, coordenadora do projeto Educação com Arte, o ECA não ainda não foi totalmente implementado, apesar de quase três décadas em vigor. “Permanece uma cultura ‘neomenorista’, que interpreta o ECA à luz dos preceitos do Código de Menores, fazendo surgir uma jurisprudência que procura deslegitimar o Estatuto”, comentou o defensor Flávio Frasseto, um dos participantes do debate.

Entre as questões de grande preocupação, destacam-se os dados revelados no Atlas da Violência (IPEA, 2019), que apontam a terrível tendência ao genocídio de jovens e adolescentes – principalmente negros. Como observa a psicanalista Lurdinha Trassi, também presente no evento:

Em 2017, 35.783 adolescentes e jovens assassinados: taxa de 130 por 100 mil. A ONU diz que já é alarmante a partir da taxa de 10 por 100 mil. Os adolescentes em medida socioeducativa são os que sobreviveram e ainda não foram assassinados.”

Lurdinha Trassi

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Letramento e socioeducação com arte

Como as oficinas de arte e cultura desenvolvidas com adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa podem colaborar com a inserção destes no mundo letrado? Que ações de letramento acontecem nessas atividades? Como as linguagens artísticas se articulam ao trabalho de leitura, escrita e oralidade? Essas foram as questões que levaram o CENPEC à produção do audiovisual Meninos de Palavra (2017).

Cena do documentário Meninos de palavra. Na imagem, vemos um violão sobre uma folha de papel com a letra da canção "Não chores mais", de Gilberto Gil, e parte do pé de um menino interno
Cena do documentário Meninos de palavra. Foto: reprodução

Explorando diversas linguagens e manifestações artísticas, como capoeira, cultura popular, teatro, artes da palavra, artes visuais e musicalização, as oficinas trabalham aspectos de autoria, identidade, valorização do potencial criativo e elevação da autoestima dos adolescentes, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica, a incorporação de novos valores e o rompimento da cultura da violência.

Maria Amabile Mansutti, diretora de tecnologias educacionais do CENPEC, destaca a importância das oficinas para a formação cultural dos jovens.

Esse programa de oficinas culturais tem uma intencionalidade que fomenta o trabalho com o potencial desses jovens, que na maioria das vezes não encontraram esse espaço na escola.”

Maria Amabile Mansutti

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Coleção Parâmetros das Ações Socioeducativas

A coleção Parâmetros das Ações Socioeducativas (CENPEC, 2007), composta por três volumes, apresenta práticas socioeducativas que buscam garantir a proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

O primeiro volume, O trabalho socioeducativo com crianças e adolescentes, foca o trabalho dos Centros para criança, adolescente e jovens, trazendo informações como objetivo, horário de funcionamento, regras de admissão, logística, entre outras. Traz também orientações para as ações socioeducativas em diálogo com a escola e propostas de jogos, brincadeiras e oficinas organizadas por faixa etária.

O estímulo e o apoio à melhoria da aprendizagem escolar de todas as crianças devem perpassar a proposta sociopedagógica, reconhecendo as aprendizagens escolares como fundamentais,s e associando-as às aprendizagens socioeducativas. Vale lembrar que esta valorização não significa repetição ou adoção da mesma lógica (homogeneização dos grupos, seqüência didática orientada pelo objeto de conhecimento, etc.).”

CENPEC, Parâmetros das Ações Socioeducativas, v. 1, p. 11

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Doarte, exercício de empatia

Tecer uma ponte entre os meninos da Fundação Casa e os educadores do CENPEC: essa foi a ideia que inspirou o projeto piloto Doarte oferecido aos adolescentes que participam de oficina de pintura em tela do projeto Educação com Arte. 

Montagem sobre tela de participante do projeto Doarte
Montagem sobre tela de participante do projeto Doarte. Foto: acervo CENPEC

A equipe do projeto organizou uma miniexposição, no auditório do CENPEC, com 11 telas de autoria dos adolescentes do centro de internação da Fundação Casa Pirituba. Participaram da visitação educadores e gestores da Oscip, que puderam escolher uma obra e, em troca, escrever uma carta para o autor da obra.

A carta trazia as impressões que a obra causou e uma mensagem, para que o autor tenha dimensão do alcance do que fez e do que ele é capaz de fazer, para além do cumprimento da medida socioeducativa.”

Marília Rovaron, coordenadora do projeto Educação com Arte

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Referências

Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) 2016

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA (IPEA). Atlas da violência, 2019.

Acessos em: 16 ago. 2019

PINO, A. Direitos e realidade social da criança no Brasil. A propósito do “Estatuto da Criança e do Adolescente”. Revista Educação & Sociedade, ano XI, n.36, p.61-79, ago., 1990.

Veja também:

12 de agosto: Dia Internacional da Juventude

Com a palavra, as juventudes

Os desafios de educar jovens que cometem atos infracionais

Oficina: Viajar pelo mundo do faroeste com a turma

O adolescente em privação de liberdade e a arte-educação

Como são as políticas socioeducativas a adolescentes em conflito com a lei em outros países? Em entrevista ao CENPEC, o sociólogo Arturo Alvarado Mendoza, diretor do Centro de Estudios Sociológicos de El Colegio de México, discorre sobre o tema. Leia a entrevista.