Bernardo Toro: educação e paradigma do cuidado

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Bernardo Toro: educação e paradigma do cuidado

Em entrevista ao Portal CENPEC Educação, filósofo colombiano trata de temas que vão da educação e economia e passam pela crise climática e homeschooling

Por João Marinho e Suzana Camargo

Selo da campanha #ProfessorEmPauta

Filósofo e educador nascido na Colômbia, Bernardo Toro tem sido um dos mais importantes pensadores na área da educação na América Latina.

Toro já foi consultor de reformas educativas no Chile e no estado de Minas Gerais e é autor de livros como A construção do público: cidadania, democracia e participação; Educação, conhecimento e mobilização; e Fala mestre: precisamos de cidadãos do mundo.

Presente no 5º SIEI – Seminário Internacional de Educação Integral, em setembro/2019, o filósofo tem proposto um novo modelo norteador para a economia, as relações sociais e a educação, denominado paradigma do cuidado.

Bernardo Toro em conferência magna no 5º SIEI.
Bernardo Toro em conferência magna no 5º SIEI. Foto: Thiago Luis de Jesus.

A crise climática, para Toro, é que traz a necessidade de mudarmos do paradigma atual, caracterizado por um sistema produtivo que privilegia a acumulação, para o novo paradigma.

“Com a crise climática, precisaremos mudar a maneira como produzimos (…). Temos de aprender a fazer uma economia circular, se realmente queremos sobreviver no planeta. Precisaremos entender que a garrafa comprada hoje deverá voltar às fábricas que a produziram, para evitar o desperdício”, diz o filósofo, para quem a crise vai ensinar a humanidade, por bem ou por mal, a produzir bens úteis, em vez de bens inúteis.

“É isso que o paradigma do cuidado traz”, esclarece Toro. “A primeira grande tarefa da humanidade é lidar com o aquecimento global, com o CO2 – mas isso não é suficiente, porque temos de responder às perguntas de como produzir, como consumir e seguir vivendo uns com os outros”.

O Brasil, por exemplo, é um país que tem água – mas de onde vem a água do Brasil? Da Colômbia, do Peru, do Equador, dos rios que vêm dos Andes. Então, o Brasil não pode resolver o problema da água por si só, assim como não é possível, na América Latina, um país resolver os problemas da educação sozinho.”

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Competências para a modernidade

Portal CENPEC Educação: Por que não seria possível a cada país resolver seus problemas educacionais independentemente?

Bernardo Toro: Porque é necessário pensar no sistema educativo como um todo, com a função de proteger e desenvolver.

Vejam: é possível um só país cuidar da Amazônia? O bioma amazônico se estende por nove diferentes países – mas é apenas um. Se não tratarmos do bioma amazônico como um único bioma, ele não será cuidável, não poderá ser protegido.

A proposta de uma economia circular, da mesma forma, não é possível se a economia não for pensada como um todo. A maneira que escolhemos produzir, por exemplo, já contaminou 60% da água no planeta. Será preciso recuperá-la e, para isso, também será preciso que a água deixe de ser um bem privado para se tornar um bem coletivo.

Tudo isso requer uma mudança de pensamento, que trará muitas discussões, grandes migrações e até guerras – e essas questões que nos obrigarão a mudar a forma de pensar se refletirão na educação.

Portal CENPEC Educação: Seu trabalho ficou conhecido pelos Códigos da Modernidade: as principais competências que a escola deve estimular para que seus alunos vivam na sociedade contemporânea. Entre esses Códigos, está, por exemplo, a capacidade de analisar e interpretar dados. Diante da crise climática e de tantos que a renegam, a educação estaria falhando na tarefa de estimular essas competências?

Bernardo Toro: Acredito que os Códigos da Modernidade precisam de uma reformulação. Quando escritos, eles foram, de alguma maneira, formulados sob o paradigma da acumulação.

Códigos da Modernidade

  • Competência I: domínio da leitura e da escrita
  • Competência II: capacidade de fazer cálculos e resolver problemas
  • Competência III: capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações
  • Competência IV: capacidade de compreender e atuar em seu entorno social
  • Competência V: receber criticamente os meios de comunicação
  • Competência VI: capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação
  • Competência VII: capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo

Se olharmos para os mesmos códigos do ponto de vista do paradigma do cuidado, temos de chegar a outras conclusões. Alguns deles permanecem, mas outros precisam ser reformulados.

Por exemplo, parece-me óbvio que a primeira coisa que uma pessoa tem de aprender é saber cuidar. Cuidar de si, do próximo, do distante, dos que não conhece. Saber cuidar das transações, dos planos.

Isso se faz sabendo conversar, sabendo respeitar a todos sob uma perspectiva ética. Nessa concepção, há algumas coisas que são básicas e que se mantêm. O mundo do paradigma do cuidado, por exemplo, vai requerer pessoas com alta capacidade de comunicação.

Nesse sentido, a comunicação será fundamental em qualquer modelo educacional nesse mundo em transformação. Dentro disso, a leitura e a escrita desempenham um papel fundamental.

Ter um alto nível de leitura e escrita e saber conversar, saber comunicar-se, se converterá na competência mais importante na educação do futuro, porque, com a conversa, com a comunicação, com a palavra, nós criamos realidades.”

Uma pessoa que está na universidade e a conclui, por exemplo, tem seu futuro alterado em uma única palavra: sua nova profissão. Em um segundo, por uma única palavra, seu papel na vida e na sociedade foi alterado.

Há outros exemplos: “eu vos declaro marido e mulher”. “Culpado”. “Vamos assinar um contrato”. São palavras que mudam vidas. Com as palavras, criamos as diferenças entre as nações, criamos a exclusão, a seleção de pessoas, o poder da acumulação e do sucesso. Crianças e jovens precisam entender isso, para que decidam que nova realidade vão querer criar no futuro.

Aprender a conversar também cria novas categorias de cuidado, a partir dessa noção de que a realidade é construída – e construída por meio de transações. O que aconteceria com São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, se os paulistas todos saíssem dela, por exemplo? Nada restaria.

Uma cidade não são seus prédios, mas as transações, os intercâmbios que as pessoas realizam entre si. Sem consciência, não há nada.”

As pesquisas sobre linguagem mostram que uma boa educação, com professores qualificados, aumenta exponencialmente a quantidade de palavras que uma criança é capaz de manejar.

Vê-se aí a importância e a relação que o paradigma do cuidado tem com a educação, que, além de tudo, precisa ser orientada por uma ética, já que, por meio do simples aumento do número de palavras, as pessoas poderiam também continuar fazendo o que já fazem atualmente, em vez de seguir para um novo paradigma.

Portal CENPEC Educação: Falando um pouco mais detalhadamente das transações, em que níveis a comunicação e o cuidado as afetariam?

Bernardo Toro: Temos as transações sociais, as econômicas (que envolvem bens e serviços), as emocionais (por meio das quais trocamos sentimentos e sentires) e as espirituais. Na composição desta última, entra a questão da empatia, da compaixão para com o outro.

A espiritualidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de evitar ou diminuir a dor nos outros.”

Nesse sentido, considero que um biólogo que se concentra, dia e noite, na busca por uma vacina ou cura de uma doença é uma pessoa muito espiritual: por meio de sua pesquisa, busca reduzir a dor que a enfermidade causa nas demais pessoas.

De igual forma, um educador que passa horas preparando materiais para ensinar frações a uma criança é uma pessoa espiritual, compassiva. Por meio de seu trabalho, busca evitar a dor que a ignorância pode causar naquela criança, quando precisar, por exemplo, adentrar o mundo do trabalho.

Portal CENPEC Educação: O ato de cuidar não seria, então, mais uma competência do século XXI?

Bernardo Toro: O desenvolvimento de uma ética do cuidado é uma forma de ver o mundo, de ordenar a realidade. É uma cosmovisão. Nesse sentido, ele não seria uma competência propriamente dita, mas um paradigma – daí esse nome.

Aliás, é preciso dizer que essa visão de mundo também não vai resolver os problemas da educação em si mesma. No entanto, é uma condição para a sobrevivência diante do contexto de crise em que estamos.

Direito à educação e democracia

Portal CENPEC Educação: Que relação podemos fazer entre o paradigma do cuidado e a educação para a democracia, que você defende em sua obra?

Bernardo Toro: Vejam, nós temos um problema na América Latina em geral, que é confundir democracia com liberalismo econômico… Algo muito perigoso.

Se perguntarmos às pessoas o que é democracia, muitas dirão que é cada um fazer o que quiser. Isso, porém, é liberalismo. A característica fundamental da democracia, na verdade, é uma autofundação da ordem.”

Se alguém, por exemplo, for obrigado por seu chefe a levantar-se todos os dias às 4h da manhã, certamente odiará esse chefe. A situação é diferente se a pessoa decidir por si mesma para, por exemplo, tornar-se corredora profissional.

No primeiro caso, a ordem vem de fora, é imposta. No segundo, a ordem vem de dentro, é autofundada. Essa percepção, por sinal, guiou o conceito de democracia quando criado pelos gregos há mais de 2,5 mil anos.

A democracia, portanto, é uma ordem que se caracteriza por leis e normas que são construídas pelas mesmas pessoas que vão vivê-las, cumpri-las e protegê-las.”

Jovens na gestão democrática.

Jovens em reunião do Conselho Municipal de Jovens e Adolescentes do Meio Rural de Diamantina, o COMJAMRD, em Minas Gerais, um dos exemplos de gestão democrática na educação. Foto: Reprodução.

Portal CENPEC Educação: A democracia teria, então, uma relação com a ideia de liberdade, no sentido de as sociedades serem livres para decidirem por si mesmas?

Bernardo Toro: Sim, porque somente a autorregulação produz liberdade. A liberdade não é algo que alguém pode “nos dar”. Ninguém pode “dar” a liberdade a alguma sociedade: é a sociedade que decide ser ou não ser livre. Quando a sociedade decide mudar um regime e diz “não quero mais isso”, ela é efetivamente capaz de mudá-lo.

É também a sociedade que decide como desenvolve as crianças, e aí chegamos ao ponto de que a autorregulação, o autoconhecimento e a autoestima são algumas das principais competências para o futuro.

Se não formamos crianças que se autorregulem, não formamos pessoas capazes de autofundar uma ordem social e política. A autorregulação, por sua vez, somente é possível quando a pessoa tem autoconhecimento suficiente para poder controlar-se por si mesma – e, para chegar a se autoconhecer, é preciso que tenha autoestima. Apenas assim chegaremos a indivíduos com autonomia.”

Nesse sentido, o grande desafio da educação é que não temos metodologias e pedagogias sistematizadas que realmente ensinem crianças a ter autoestima, autoconhecimento, autorregulação – e sem esses três elementos, é muito difícil se obter uma verdadeira personalidade. É o nosso grande desafio.

Portal CENPEC Educação: Mas ele não estaria sendo enfrentado por metodologias mais atuais?

Bernardo Toro: Acredito que o Ocidente, na verdade, desenvolveu muito a capacidade de ensinar ciências. Há uns 200 anos, por exemplo, a física, enquanto disciplina, essencialmente não existia. Há cerca de 100, não existia a relatividade geral, e hoje crianças e jovens conhecem e manejam esses conceitos.

Desenvolvemos, sim, muitas habilidades e metodologias para as crianças aprenderem conteúdos, mas não para que aprendam a conhecer a si mesmas, o que é necessário para autorregular-se e, assim, tomar decisões verdadeiramente autônomas.

Isso nos leva a um outro tópico, que são as escolhas que fazemos na área da educação. Um país não tem mais educação do que a sociedade é capaz de definir. A educação que o Brasil tem – boa, ruim ou regular –, por exemplo, é uma escolha que o Brasil fez enquanto sociedade.

A Finlândia, por exemplo, considerada modelo em todo o mundo na área de educação, carece de riquezas naturais. Como se efetivou a qualidade da educação que existe ali? Porque eles decidiram que seria assim.”

Na verdade, os problemas na educação não são resolvidos de forma mágica, não são de origem genética, não são “má sorte”. Nós decidimos que o sistema educacional seria assim.

Os povos indígenas, por exemplo, desenvolveram sistemas educacionais próprios, nos quais a educação está ligada à vida e à atividade diária. Nós outros tomamos outras decisões.

Por isso mesmo, é também um erro acreditar que o trabalho de organizações da sociedade civil (OSCs) ou de empresas mudará toda a educação. Eles podem auxiliar, pontualmente, mas num universo de mais de 50 milhões de estudantes, como tem o Brasil, é necessário que a sociedade decida sobre que educação quer ter.

Portal CENPEC Educação: O que dizer da educação domiciliar, então, enquanto uma proposta de política pública, como tem ocorrido no Brasil?

Bernardo Toro: Isso também passa por uma questão de escolha da sociedade. Uma família que opta pelo homeschooling está dizendo que, além de ter condições para bancá-lo – porque é uma opção bastante cara –, não confia no sistema que o país escolheu.

Isso evidencia a realidade de que países da América Latina, como o Brasil, se habituaram a ter dois sistemas educacionais: um frequentado por elites, normalmente privado; e outro destinado às camadas mais pobres.

Quando um país toma a decisão de que a educação de qualidade é um direito de todos e que o filho de um engenheiro, do presidente de uma empresa, deve frequentar a mesma escola pública do bairro que o filho do porteiro do prédio onde trabalham porque é a melhor escola que há, esse sistema de exclusão não faz mais sentido, muito menos a educação domiciliar.”

O modelo do homeschooling somente faz sentido quando há uma família com abundância de estímulos sociais e oportunidades de aprendizagem; e uma outra família, que convive com a exclusão.

Se o filho da primeira, por exemplo, quer aprender inglês, ela simplesmente o envia para Londres – porque a família, na realidade, não substitui a função da escola. Enquanto isso, admitimos que o filho da segunda seja educado em instituições com uma qualidade menor. Isso que precisa mudar.

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