Vozes afro-atlânticas: autobiografias de pessoas escravizadas

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Vozes afro-atlânticas: autobiografias de pessoas escravizadas

Historiador Rafael Domingos Oliveira traça paralelos entre a formação de diferentes sociedades baseadas na escravidão, resgata as infâncias escravizadas e reflete sobre a importância da narrativa de si para uma educação antirracista

Por Stephanie Kim Abe

São poucas as pessoas que sabem quem foi Mahommad Baquaqua, apesar de ele ser o único negro escravizado que passou pelo Brasil e que escreveu uma autobiografia. 

O historiador Rafael Domingos Oliveira é uma dessas pessoas. Ele não só conhece a história e a obra de Baquaqua, como a analisa e traz para o público geral no seu livro Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade, publicado pela Editora Elefante. 

Na obra, ele resgata autobiografias de pessoas negras escravizadas publicadas entre os séculos 18 e 19, sobretudo em países do Atlântico Norte, fruto de um trabalho de mestrado em que ele pode vasculhar a vasta documentação dessas obras disponíveis na base de dados online da Universidade da Carolina do Norte (Estados Unidos). Entre essas(es) autores(as) estudadas(os), aparecem o cubano Juan Francisco Manzano, Sojourner Truth e Olaudah Equiano.

Apesar de as autobiografias serem textos de pessoas escravizadas principalmente dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, elas trazem importantes visões e perspectivas para analisar não só o sistema escravista como um todo, mas também a própria formação da sociedade brasileira:

Entre os séculos 16 e 19, a escravidão foi uma instituição que se globalizou e que se deu de diferentes formas, em diferentes lugares, mas conectada a um processo que foi comum a todas essas sociedades. Então essa experiência de olhar a escravidão no Atlântico Norte foi muito interessante não só para compreender como a escravidão se deu em países como os Estados Unidos, mas para entender como que a nossa sociedade se formou diante desse fenômeno, que é global”, explica. 

Rafael Domingos Oliveira

Considerando a importância do seu trabalho e dessa perspectiva histórica, o Portal Cenpec conversou com Rafael sobre a obra e as contribuições que ela traz para uma educação antirracista. A conversa ainda abordou as infâncias de pessoas escravizadas e o significado do 13 e maio. 

O autor, que foi coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e professor da rede pública, atualmente é pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Afro-América (Nepafro) e coordena o Núcleo de Acervo e Pesquisa do Theatro Municipal de São Paulo 

Confira a entrevista completa abaixo.


Portal Cenpec: Quais são os paralelos que podemos fazer da situação das pessoas escravizadas no Atlântico Norte com as do Brasil?

Rafael: A realidade dos Estados Unidos dialoga muito com a nossa, porque também é um país que se constituiu como nação com base em uma profunda formação escravista. Porém, nos Estados Unidos, houve uma disputa territorial entre estados escravistas e não escravistas (os chamados “estados livres”).

Então, a escravidão, embora fosse uma presença fundamental na formação da nação, não era uma atividade difundida em todos os territórios. Ela foi mais presente em uma parte do que em outra. Enquanto que o Brasil foi um país cuja sociedade escravista estava de fato em nossa base. Essa é uma diferença fundamental.

Um paralelo importante de notar é que a colonização dos Estados Unidos foi de confissão protestante, enquanto que, no Brasil, a nossa colonização foi de confissão sobretudo católica.


Portal Cenpec: Considerando que ambas as sociedades tiveram essa base escravista, como essas características distintas ajudam a explicar a presença de tantas autobiografias no Atlântico Norte e não aqui no Brasil?

Rafael: É preciso primeiro compreender a existência de autobiografias como um fenômeno histórico, que se viabilizou nos Estados Unidos no contexto do abolicionismo do Atlântico Norte.

Uma das hipóteses que eu levanto no livro em relação a isso relaciona-se justamente com a questão da confissão religiosa, porque elas são marcadas por uma diferença muito grande no que diz respeito ao mundo da escrita.

Na confissão católica, pressupõe-se uma mediação na figura do padre, no cardeal, e, no limite, no próprio papa, que é o representante de Deus na terra.  Já o protestantismo, em suas manifestações e ramificações, não pressupõe uma mediação entre a pessoa de fé e Deus. Ou seja, a pessoa religiosa se relaciona diretamente com o texto bíblico, propriamente. Assim, não era incomum que no próprio processo de conversão a população escravizada passasse por um processo de alfabetização.

Agora, a não existência – ou, melhor dizendo, o nosso desconhecimento até o momento – de textos autobiográficos no Brasil não quer dizer que não existiram outras formas de “narrativas de si” – que é um termo que eu também uso no livro.

Quer dizer, a população escravizada no Brasil pode não ter escrito e publicado livros autobiográficos, mas isso não quer dizer que essa população aqui não tenha se inscrito na história a partir de outras modalidades de narrativa. Porque é preciso dizer que a autobiografia é um gênero textual. Então a gente pode pensar narrativas de si de uma forma mais ampliada.

Se, no Brasil, não temos autobiografias de escravizados, por outro lado aqui existem cartas e manifestações culturais de outras linguagens em que é possível ouvir as vozes dessas populações que foram escravizadas.


Portal Cenpec: Como a infância aparece nesses textos de pessoas escravizadas? Que infância é retratada nessas condições?

Rafael: Todas as autobiografias, ou pelo menos a maior parte delas, têm a infância como tema central.

Há casos da infância do próprio autor, em que ele descreve, já na sua infância, uma experiência da violência da escravidão. O Manzano, único cubano que escreve uma autobiografia, descreve que a maior parte das violências marcantes da sua formação foi vivenciada na infância, o que eu chamo de “pedagogia da violência” ou “pedagogia senhorial”.

Na autobiografia de Baquaqua também: ele descreve a situação da captura, do sequestro que sofre quando ele ainda estava na África, e isso acontece durante a sua infância. Vemos a descrição da infância como um momento da vida de extrema fragilidade e de grande vulnerabilidade, em uma época de efervescência das redes do tráfico, quase o seu ápice.

Em outro sentido, a infância também aparece principalmente na autobiografia de mulheres, que escrevem sobre a maternidade, o sequestro de crianças, a separação das crianças de suas mães, a enorme preocupação da mulher escravizada para com seus filhos. Aí, vemos como as próprias estratégias de resistência e fuga pensadas por essas mães tinham que levar em consideração as suas crias.

Do ponto de vista mais geral, é importante aqui evidenciar um tema que durante muito tempo, na própria historiografia da educação, foi pouco debatido: a infância de sujeitos escravizados. Isso acabou reforçando uma perspectiva do escravizado apenas como força de trabalho, com aquela imagem do homem adulto forte que trabalha na lavoura. Quando a gente se aprofunda, a gente percebe que as crianças estavam trabalhando desde cedo. Elas já estão vivenciando o mundo do tráfico de pessoas, o mundo do comércio, e já estão desenvolvendo ofícios especializados (barbeiros, carpinteiros, ferreiros, principalmente pensando a escravidão urbana) desde muito cedo.

Então, durante muito tempo, a criança foi um sujeito oculto da história do tráfico de escravizados. Alguns historiadores chegaram a dizer que as crianças não eram traficadas – e essas autobiografias mostram o contrário.


Portal Cenpec: Quais as contribuições que a sua obra e a temática que ela traz, das autobiografias e das narrativas de si, podem trazer para uma educação antirracista e para o trabalho que é realizado nas escolas com as crianças?

Rafael: O meu livro faz parte de um movimento historiográfico de olhar para o sujeito em primeira pessoa, para a voz dos escravizados. Ou seja, ele não começou agora e nem comigo, mas é um esforço que a historiografia brasileira vem fazendo há muito tempo.

Dito isso, a minha obra acaba divulgando textos que, por várias razões, não fazem parte do nosso repertório historiográfico. E, embora seja um trabalho acadêmico, fizemos um grande esforço de edição e linguagem para que o livro pudesse ser lido por um público mais amplo, não apenas o especializado. Assim, acredito que os professores e as professoras podem encontrar nele muitas ideias e propostas para levar para a sala de aula.

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Mas a maior contribuição vem das próprias autobiografias, porque, antes de tudo, elas criam um outro imaginário desse sujeito que é escravizado, restituindo a essa população escravizada duas coisas que a própria escravidão negou a ela: a dignidade e a humanidade.

De fato, são textos que revelam grandes violências, das mais variadas ordens, sofridas por essas pessoas ao longo de suas vidas. Mas também revelam, o tempo inteiro, os projetos de liberdade, as estratégias e o pensamento ativo constante de seres criativos, que buscavam conseguir superar a condição da escravidão não apenas nessa chave da superação, mas de alterar a própria realidade social em que viviam.

São pessoas que foram escravizadas e que escreveram sobre a sua experiência na escravidão, mas são, sobretudo, pessoas que interpretaram a nação em que viviam e contribuíram para o debate público com interpretações a respeito do seu país, da política, do mundo, da economia, da moral, da religião. Essas pessoas, ao escreverem essas obras, tiveram – e tem ainda, porque elas atravessaram o tempo até chegar hoje – o poder de mostrar, por exemplo, que não há uma dissociação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual – uma invenção da própria ideologia escravista para justificar a exploração dessas pessoas.

São textos que têm uma enorme contribuição de alterar de forma muito positiva o imaginário que nós temos a respeito da população negra, mostrando que são pessoas que lutaram pela liberdade, que criaram diferentes estratégias para resistir à instituição mais terrível que talvez já tenha existido na história humana.

Na educação, a representação é muito importante. É a partir da representação que a gente constrói o passado e a nossa consciência histórica compartilhada, enquanto sociedade, e é por ela que a gente consegue projetar o futuro.

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Portal Cenpec: A partir dessa perspectiva histórica, qual foi e qual é hoje o significado do 13 de maio? O que essa data representa e como ela tem sido ressignificada?

Rafael: O 13 de maio representa o acordo da elite brasileira em dar fim à escravidão, que era uma instituição que já não operava mais, que já tinha se esgotado. E ela decide fazer isso impedindo, pela forma como se deu, que a população egressa da escravidão e aquela população que dependia de pessoas escravizadas tivessem acesso à cidadania plena. Tanto que a chamada Lei Áurea, a lei do dia 13 de maio de 1888, é uma lei absolutamente curta, de meio parágrafo, que não diz nada. Ela só diz que a escravidão acabou, mas não assegura nenhum direito ou nenhum tipo de política pública a esse público.

Vale lembrar que existiram muitos projetos de abolição da escravidão anteriores ao 13 de maio. Eu posso citar pelo menos dois deles. Um seria apresentado pelo José Bonifácio, figura importante no processo da Independência, em que se previa, no projeto de lei para a Constituinte de 1824, a abolição gradual do tráfico e da escravidão, pensando, inclusive, na inserção dessa população na condição de cidadãos. Esse projeto de lei foi redigido, mas sequer foi debatido.

Um outro projeto foi do abolicionista André Rebouças, um engenheiro negro importante da segunda metade do século 19. Esse projeto previa não só o fim da escravidão, mas a reforma agrária. Então, alguns historiadores, como Luiz Felipe de Alencastro, vão dizer que o 13 de maio foi uma estratégia da elite de fazer a abolição sem fazer a reforma agrária.

Por isso, ao longo do século 20, o movimento negro organizado pautou esse debate de rememorar essa data e institui o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), no sentido de reforçar a ideia de que o fim da escravidão de fato foi decorrente da resistência e da luta da população negra escravizada por liberdade.

Desde o início do século 16, temos diferentes exemplos de resistência, seja por meio de revoltas, rebeliões, fugas, dessa população. Sem dúvida, o fim da escravidão foi fruto dessa luta incessante.

Então, um aspecto importante todo mês de maio é lembrarmos como, no Brasil e nas diferentes sociedades escravistas, as elites pactuam entre si para manter sempre a população negra numa condição de subalternidade, de marginalização. Nesse sentido, as narrativas em primeira pessoa são fundamentais para reforçar o papel da população negra como sujeitos históricos e de atuação política.

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