O que a ocupação das escolas tem a ver com a Base Nacional Comum Curricular?

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O que a ocupação das escolas tem a ver com a Base Nacional Comum Curricular?

Por Maria Alice Setubal*

Maria Alice Setubal é socióloga.

O atual debate sobre a Base é uma importante oportunidade para que a sociedade brasileira discuta que educação e qual escola quer para o século XXI.

A globalização e as constantes mudanças no mundo contemporâneo têm levado à discussão do futuro da educação. Muito se fala sobre a precariedade da qualidade do ensino público brasileiro, refletida nos baixos índices de avaliação, tanto nacionais, quanto internacionais. Apesar do muito que já avançamos em relação à inclusão das crianças e jovens na escola, um verdadeiro abismo separa o slogan “Pátria Educadora” do que efetivamente conseguimos alcançar na educação básica.

Sair da retórica significa desenvolver políticas que enfrentem as mazelas das desigualdades educacionais entre as diferentes regiões brasileiras, entre o campo e a cidade, entre o centro e a periferia, entre brancos e negros, entre ricos e pobres. Passa ainda pela atualização da educação, para que responda aos desafios do século XXI, de modo a construirmos uma escola aberta à comunidade e aos temas contemporâneos e de interesse da juventude. Essa escola deve assegurar a aprendizagem do conhecimento construído ao longo da história da humanidade e, ao mesmo tempo, estar aberta ao contexto contemporâneo e promover inovação.

O Brasil já tem hoje metade da população conectada à internet, especialmente os jovens, conforme dados do Comitê Gestor de Internet. Tal conjuntura exige outra postura e atuação da escola pública para formar cidadãos críticos e autônomos, capazes de acessar e distinguir as informações de boa e má qualidade, de forma a empoderá-los para participarem do debate público e serem inseridos no mercado de trabalho. Exige ainda que a escola tenha um importante papel de mediadora do conhecimento, e não mais o de uma mera transmissora.

Nesse contexto, o atual debate sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é uma importante oportunidade para que a sociedade brasileira discuta que educação e qual escola ela quer para o país neste século XXI. Elaborado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, em cooperação com o Conselho Nacional dos Secretários da Educação e a União dos Dirigentes Municipais de Educação, o documento da BNCC pretende definir quais conhecimentos e habilidades os estudantes brasileiros terão como direito de aprendizagem. O processo de desenvolvimento do texto da base também foi algo inovador, pois envolveu ampla consulta pública, aberta até 15 de março e que já recebeu mais de 10 milhões de contribuições.

Hoje, a definição do que é direito de cada estudante segue na contramão do processo, pois é ditado pelas avaliações e pelos livros didáticos. A demarcação sobre o que é necessário aprender em cada etapa de ensino permitirá a formatação de currículos mais alinhados às expectativas e interesse dos alunos.

Um dos pontos chave para que esse seja um passo exitoso na história da educação é incluir os professores como parte essencial do processo, desde seu planejamento, execução, monitoramento e avaliação. Além do mais, a Base precisa estar em consonância com a formação inicial, continuada e em serviço dos profissionais da educação, levar em conta as questões salariais, as condições de trabalho e a valorização da formação docente. Para o seu êxito, a proposta também deve considerar as diferentes características territoriais, sociais, econômicas e culturais do Estado brasileiro e deixar claro para os nossos estudantes, professores, pais e a sociedade como um todo qual é o objetivo de determinado aprendizado, bem como qual cidadão queremos formar.

A flexibilização dos currículos é um tema fundamental nesse debate da BNCC, levando-se em conta a distância das escolas com o dia a dia dos jovens. São várias as possibilidades que se abrem para a superação desse modelo, tais como a atualização do currículo, a sua diversificação em uma parte comum e em outra que permita escolhas pessoais, assim como a ampliação da oferta do ensino superior em universidades públicas e do ensino profissionalizante, que propicie a qualificação para o mercado de trabalho tanto local como relativo às novas funções e para profissões que surgem no mundo moderno, dentre outros aspectos e dimensões.

Hoje, a definição do que é direito de cada estudante segue na contramão do processo, pois é ditado pelas avaliações e pelos livros didáticos.”

Mesmo com os problemas encontrados na educação básica, as recentes ocupações de escolas por centenas de jovens, tanto em São Paulo, como em Goiás, revelaram que os adolescentes dão muito mais importância à escola do que as pesquisas captaram ou que os gestores públicos pudessem constatar.

A despeito da tentativa do governo paulista de desqualificar o movimento, as ocupações demonstraram que existe, sim, vínculo e relação de pertencimento entre os alunos e as escolas públicas. A escola ainda é considerada como a principal oportunidade para o desenvolvimento da cidadania, e, por conta disso, não poderiam aceitar as imposições políticas que foram definidas sem o consentimento dos principais interessados. Eles estão fartos de serem apenas receptores de conteúdos e normas disciplinares e querem participar das decisões que envolvem seus sonhos, desejos e o futuro do País.

Em uma roda de conversa organizada pelo CENPEC com estudantes que lideravam o movimento nas escolas paulistas, pudemos constatar que a luta dos alunos não se restringia à reorganização escolar e ao fechamento das escolas públicas, mas incluía sua participação nas políticas educacionais e nas decisões nas unidades de ensino:

“Estamos tendo aulas que estão nos empoderando, porque nas aulas normais os professores não dão voz para a gente. Estamos aprendendo a ter voz nas escolas. Não é simplesmente chegar lá e só ficar vendo e ouvindo. Temos que fazer nossa aula, nos enturmar com os professores”, comentou uma estudante presente no debate.

Os alunos também se manifestaram sobre a falta de inovação nas aulas, que são reduzidas a giz e lousa. Jovens que estão acostumados à tecnologia e ao acesso rápido às informações não podem se contentar com material didático usado pelos seus antepassados.

“A escola que nós queremos é uma escola onde nós possamos aprender de outras formas que não são só na lousa e no caderno”, disse outra aluna participante.

A importância da escola para os jovens também aparece de forma muito consistente nos primeiros achados de pesquisa realizada pelo CENPEC com escolas de Ensino Médio, localizadas em territórios de alta vulnerabilidade social, em quatro estados brasileiros, a ser lançada em meados de março de 2016.

A ocupação foi uma lição democrática para o Brasil, e o estigma de que a escola pública não faz sentido para os alunos tornou-se uma visão a ser superada. Ela nos remete também a junho de 2013, uma vez que a realidade parece mostrar que nenhum governo entendeu que houve uma real mudança de perspectiva no cenário político brasileiro.

As pessoas foram às ruas sem as palavras de ordem de partidos ou movimentos sociais, mas com a voz do protagonismo e a autoria da autonomia cidadã. As manifestações de 2013 são emblemáticas no modo de agir da juventude: ação direta com o uso das tecnologias e ocupação dos espaços públicos. Assim, foi a ocupação das escolas, com protagonismo, autonomia e voz dos estudantes, que querem uma escola mais aberta e conectada às questões contemporâneas e uma gestão democrática.

Criar uma narrativa articulada entre autonomia e participação dos jovens na construção do espaço público, no caso da escola, é o grande desafio para se pensar o papel da educação na formação da cidadania no mundo atual. Não se trata de uma visão apenas de mercado, de empreendedorismo, ainda que essa também seja importante, mas de respeito às subjetividades, de modo que o professor enxergue o aluno como sujeito produtor de conhecimento.

O professor tem um papel fundamental nessa construção, não só na garantia da aprendizagem de todos os alunos, como também como mediador da miríade de questões trazidas pelos estudantes, de maneira a aprofundar esse conhecimento usando estratégias diversas e tendo em conta as condições socioculturais do corpo discente. A escola deve ser o foco da formação desses educadores, de modo que todos os profissionais possam desenvolver um trabalho coletivo em que se rompa uma cultura tradicionalmente instalada do isolamento do professor em sala de aula.

Manter a escola aberta à comunidade, às questões contemporâneas e às novas tecnologias, que também priorize um pensamento complexo e a construção do conhecimento, redefinindo-se como espaço do encontro e do diálogo, pode ser considerado o maior desafio da educação contemporânea.

Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, é formada em Ciências Sociais pela USP, com mestrado em Ciências Políticas pela mesma instituição e com doutorado em Psicologia da Educação pela PUC-SP. Preside os conselhos do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e da Fundação Tide Setubal. É autora, entre outros, do livro Educação e Sustentabilidade – Princípios e valores para a formação de educadores (Editora Peirópolis, 2015). Foi assessora de Marina Silva na campanha presidencial de 2014.


* Replicado do portal Nexo.