Educação domiciliar avaliada por educadores(as)

-

Educação domiciliar avaliada por educadores(as)

Evento realizado pela OAB SP contou com a participação de Anna Helena Altenfelder, do CENPEC Educação

Por João Marinho

Aconteceu na última quarta-feira (26), às 18h, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional São Paulo (OAB SP), a palestra “Educação domiciliar avaliada por educadores“,

O evento, que contou com a presença de cerca de 30 pessoas, teve como palestrantes Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do CENPEC Educação; Cesar Callegari, consultor educacional e presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada (IBSA); e Selma Rocha, diretora responsável pelo núcleo de formação da Fundação Perseu Abramo e membro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo. Assista à íntegra do encontro.


A educação domiciliar e a legislação nacional

Depois das apresentações de Ana Amélia Mascarenhas Camargos, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB SP; e de Gabriela Garcia, coordenadora do Núcleo de Promoção de Direitos Humanos da mesma comissão, a palavra foi entregue a Cesar Callegari.

Em sua participação, o sociólogo demonstrou que os dispositivos da Constituição de 1988, em especial os artigos 205 e 227, e da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) ressaltam que a educação é uma responsabilidade compartilhada e tríplice.

A educação deve resultar da atuação do Estado, da família e da sociedade.”

Cesar Callegari

No entanto, ainda segundo o especialista, a LDB deixa claro que família, sociedade e organizações culturais têm o papel de cooperadoras na educação, sendo a escola a “agência responsável na conjugação desses esforços [educativos]”.

Referindo-se ao Parecer CNE/CEB nº 034/2000, assinado pelo então relator Ulysses de Oliveira Panisset, do Conselho Nacional de Educação (CNE), à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018 e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Callegari afirma que a educação domiciliar, ou homeschooling, não é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro nem com suas diretrizes educacionais.

Callegari ressalta que o artigo 206 da Constituição também traz a obrigação de igualdade de condições de acesso e permanência na escola, enquanto o artigo 208 coloca a garantia do ensino como direito público subjetivo.

Salvo melhor juízo, não encontro na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nem na Constituição da República Federativa do Brasil, abertura para que se permita a uma família não cumprir a exigência da matrícula obrigatória na escola de ensino fundamental. ‘Matricular’ em escola, pública ou privada, para o exclusivo fim de ‘avaliação do aprendizado’ não tem amparo legal, in casu do art. 24, inciso II, alínea ‘c’ visa à avaliação, ‘pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato’, para ‘sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema’.”

Ulysses de Oliveira Panisset, no Conselho Nacional de Educação

Baixe o Parecer CNE/CEB nº 034/2000

Da esquerda para a direita: Anna Helena Altenfelder, César Callegari, Gabriela Garcia, Selma Rocha e Ana Amélia Mascarenhas Camargos. Foto: João Marinho.
Da esq. para a dir.: Anna Helena Altenfelder, Cesar Callegari, Gabriela Garcia, Selma Rocha e Ana Amélia Mascarenhas Camargos. Foto: João Marinho.

Dessa forma, a não ser que a legislação seja alterada, a educação domiciliar não pode ser permitida. No entanto, mesmo a possibilidade de mudar a legislação deve ser recusada, segundo o especialista, pois o papel da escola vai além do ensino de conteúdos das disciplinas: a presença de crianças e jovens na escola, convivendo com pessoas de diferentes origens, condições socioeconômicas, identidades e valores, é essencial para preparar o aluno para viver em sociedade.

“A escola é o território dos afetos, e nesse território dos afetos é que muitas competências são desenvolvidas”, diz Callegari, que traz também o aspecto histórico por trás da legislação hoje existente – histórico que passa pela defesa da escola pública, da educação de qualidade para todos e dos direitos educacionais de crianças, adolescentes e jovens.

O arcabouço legal de uma nação, de um país, é uma construção permanente que tem história. Não é uma coisa de ocasião, que rejeite (…) todo o consenso de direitos fixados na legislação (…). A educação domiciliar afronta os direitos educacionais, mesmo que ocorra mudança de legislação.”

Cesar Callegari

O papel da escola numa sociedade complexa

Anna Helena Altenfelder, do CENPEC Educação, foi a segunda a falar – e ressaltou a especificidade da escola enquanto instituição.

Segundo Altenfelder, a escola é um primeiro espaço de socialização, de construção de uma esfera pública com um diferente, de reconhecer e se diferenciar do outro, o que a torna fundamental para o desenvolvimento social e integral das crianças.

A escola traz a possibilidade de acesso a um conhecimento que não está no cotidiano (…). Quanto mais complexas as sociedades, mais fundamental é o papel da escola.”

Anna Helena Altenfelder

Nesse sentido, ainda segundo a presidente do Conselho de Administração do CENPEC Educação, “a escola domiciliar ameaça o direito subjetivo ao pleno desenvolvimento e também a uma sociedade mais justa e igualitária”.

A especialista criticou a inversão de prioridades do atual governo, que, diante de um universo com quase 49 milhões de novos matriculados, segundo o último Censo Escolar, mais de 2 milhões de professores e com problemas como desigualdades sociais e educacionais, distorção idade-série e cerca de 1,5 milhão de crianças e adolescentes fora da escola, prioriza a educação domiciliar, demanda que atende apenas cerca de 7,5 mil famílias.

Finalmente, diz Anna Helena, a desvalorização da escola enquanto instituição com funções próprias para a formação de crianças, adolescentes e jovens passa pela desvalorização dos professores como profissionais que detêm um saber pedagógico específico.

Somente existe educação de qualidade quando é para todos (…). Num momento em que, na educação pública, as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) não estão sendo cumpridas, vem um tema que não é relevante para o País.”

Anna Helena Altenfelder

Ataques à escola e à educação pública

A palestra contou com perguntas da plateia, ao final. Foto: João Marinho.
A palestra contou com perguntas da plateia, ao final. Foto: João Marinho.

Selma Rocha também destacou a história da escola como instituição, trazendo um apanhado desde o século XVIII até os dias atuais, vinculando-a ao contexto do iluminismo.

Segundo Rocha, a importância da escola e da educação reside na formação do campo de conhecimentos racionais e laicos, tanto para sistematizar esses conhecimentos como para propiciar a abolição de privilégios e a conquista da cidadania como condições de transformação dos valores como liberdade. Nesse sentido, a escola se insere na garantia de direito a esse conhecimento organizado e sistematizado.

No Brasil, ainda que com diferentes enfrentamentos, ecoou-se essa conquista, definida tanto na Constituição quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): a educação como um direito da criança e do adolescente – e não da família, do Estado ou de qualquer outro ator.

A especialista destaca que, ao longo dos debates em torno da educação no Brasil, sempre houve o dissenso de pôr a família em prevalência ao Estado, que, nessa acepção, deveria assumir apenas o papel de destinar os recursos para que a família fizesse a escolha educacional para seus filhos – e, por trás dessa discussão, o embate de como utilizar os fundos públicos.

Histórico dos diferentes olhares sobre o papel da escola na história recente do Brasil. 
Fonte: CENPEC Educação/apresentação.
Histórico dos diferentes olhares sobre o papel da escola na história recente do Brasil.
Fonte: CENPEC Educação/apresentação.

A perspectiva de considerar crianças, adolescentes e jovens como sujeitos de direitos, no entanto, traz a necessidade de defender esses direitos inclusive quando desrespeitados pela família e até mesmo de garantir o acesso a condições básicas, como a alimentação, papéis esses que têm sido desempenhados pela escola.

É preciso entender essa proposta [do homeschooling] no contexto da vida brasileira: da desigualdade educacional e dos problemas de violência que nossa sociedade enfrenta, dos mais variados tipos.”

Selma Rocha

Os palestrantes diagnosticaram que, na realidade, a educação domiciliar se insere em um conjunto de ataques à escola e à educação pública, visando a deslocar esta última para o setor privado. “Há pessoas muito preparadas [para essa demanda], com tudo pronto para que a família apenas assine o planejamento pedagógico”, comenta Cesar Callegari.

Selma Rocha analisa que, por trás dessas iniciativas, existe também uma disputa pelo futuro de crianças, adolescentes e jovens, que passa inclusive por grupos religiosos e conservadores que se opõem à oferta de uma educação laica e diversa – e, concordam os palestrantes, do objetivo fundamental de uma sociedade livre, justa e solidária.

Saiba mais

  • Em abril, o CENPEC Educação lançou uma nota técnica contra o Projeto de Lei (PL) 2.401/2019, que propõe autorizar o homeschooling (educação domiciliar) no Brasil. Confira: