CENPEC Cotas no ensino médio

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Cotas no ensino médio

À luz dos 10 anos da Lei de Cotas, a discussão sobre os impactos dessa política no ensino médio se faz necessária para pensarmos como aperfeiçoar ações afirmativas na educação básica. Confira entrevista com Marcos Abraão Ribeiro (IFF).

Por Stephanie Kim Abe

A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/12) surgiu há 10 anos envolta por muita polêmica. Ela faz parte de uma série de políticas públicas criadas a partir do começo dos anos 2000 no sentido de combater a discriminação racial e reconhecer a responsabilidade histórica do Estado brasileiro com a manutenção das desigualdades econômicas e raciais fruto da escravidão.

Promulgada em 29 de agosto de 2012, a Lei 12.711 instituiu a reserva de, no mínimo, 50% das vagas em instituições federais de educação para estudantes provenientes de escolas públicas e autodeclaradas(os) pretas(os), pardas(os) e indígenas. De acordo com o seu texto, ela deve passar por uma revisão este ano – daí as discussões estarem a todo vapor no Congresso Nacional.

O QUE DIZ A LEI DE COTAS COM RELAÇÃO AO ENSINO MÉDIO

“Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas.

Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.

Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o art. 4º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)”

Lei de Cotas (Lei nº 12.711/12)

Apesar de valer também para cursos de ensino médio técnico oferecidos nas instituições federais, o alvo de grande parte das pesquisas e debates que envolvem essa legislação tem sido a aplicação e as consequências dessa política pública no acesso ao ensino superior.

Foto: acervo pessoal

Marcos Abraão Ribeiro é um dos (ainda poucos) pesquisadores que estudam essa temática. Professor e pesquisador do Instituto Federal Fluminense (IFF) campus Campos Centro, em Campos dos Goytacazes (RJ), ele é um dos autores do artigo Avanços, Contradições e Desafios da Política de Cotas na Educação Básica: o caso do ensino médio profissionalizante do IFF campus Campos Centro (2016-2018), publicado na edição de jul./dez. de 2021 da Revista  TOMO, do  Programa  de  Pós-Graduação  em  Sociologia  da  Universidade  Federal  de  Sergipe.

No artigo, ele analisa a aplicação da política de cotas no Ensino Médio Integrado (EMI) – aqueles em que o ensino médio regular é realizado junto com a um ensino profissionalizante – nos cursos oferecidos pelo seu campus da IFF entre 2016 e 2018. 

Clique aqui para acessar o estudo completo

O Portal Cenpec conversou com o professor, para entender um pouco mais sobre os resultados da pesquisa e a sua visão sobre o impacto da política de cotas no ensino médio. O pesquisador fala sobre o estado da arte nas pesquisas acadêmicas, os principais resultados de seu estudo e por que trazer o tema para a pauta é importante para pensarmos diferentes maneiras de avançar e aperfeiçoar as ações afirmativas para essa etapa de ensino. 

Confira abaixo:

Portal Cenpec: Como surgiu a ideia de estudar a questão das cotas no ensino médio integrado em institutos federais de ensino?

Marcos Abraão Ribeiro: Comecei a pesquisar o tema em 2016 em parceria com o professor Sérgio Risso e a professora Luciana Machado (que assinam o artigo comigo), porque começamos a observar que, a partir de 2013 – quando a Lei de Cotas entra em vigor -, o perfil das(os) estudantes do Ensino Médio Integrado (EMI) começou a mudar. 

No Campos Centro do Instituto Federal Fluminence (IFF), onde realizamos a pesquisa e sou professor, existem cinco cursos de EMI: Automação Industrial, Edificações, Eletrotécnica, Informática e Mecânica. Nos cursos de Eletroténica, em especial, começamos a observar que havia um número muito grande de estudantes repetentes e também de evasão. Isso nos chamou atenção: “tem alguma coisa acontecendo aqui”.

Decidimos então montar um projeto de pesquisa, que existe desde 2016, para construir uma série histórica com os dados de entrada e desempenho dessas(es) estudantes. Tentamos não só pensar nos motivos que faziam com que essas(es) alunas(os) evadissem, mas sim pensar quais eram os fatores que faziam com que as(os) cotistas permanecessem no estudo e tivessem, ao final do período dos 3 anos do EMI, sucesso escolar


Portal Cenpec: Apesar de a Lei de Cotas (Lei nº 12.711 de 2012) também instituir as cotas para o ensino médio em institutos federais de ensino técnico, esse não tem sido o foco das pesquisas sobre as ações afirmativas, que têm se concentrado no ensino superior. Na sua visão, por que isso acontece?

Marcos Ribeiro: De fato, a gente não tem uma agenda de pesquisa tão ampla sobre as cotas no ensino médio integrado como ocorre no ensino superior. Quando começamos a nossa pesquisa, isso foi algo que nos chamou muita atenção. Existe, no Brasil, uma ampla bibliografia sobre cotas no ensino superior, desde a década de 2000 ainda, quando as primeiras experiências surgiram na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Há uma série de trabalhos importantes. 

A Lei de Cotas foi instituída em 2012, então ela é tanto um resultado como um reforço dessa agenda de se pensar ações afirmativas no ensino superior que estava, e ainda está, na moda, a grosso modo. 

Acho que por isso os estudos sobre o ensino médio profissionalizantes acabaram ficando com menos apelo, sendo poucos os trabalhos sobre a temática, ainda que eles existam – sendo a maior parte deles dissertações de mestrado ou teses de doutorado. Considerando a última vez que tivemos contato, acho que não conseguimos identificar mais de 20 trabalhos a respeito. 


Portal Cenpec: O que você destaca dos resultados encontrados na pesquisa de vocês?

Marcos Ribeiro: Nossa pesquisa só abrangeu uma geração, a que ingressou em 2016 e se formou em 2018, nos cinco cursos de EMI oferecidos no campus Campos Centro do IFF. Ainda estamos analisando outros dados para formar a série histórica e ver se eles consolidam o que já descobrimos até agora.

Nós tínhamos um olhar muito intuitivo, e os dados não são muito distantes do que a gente estava observando no dia a dia – que era a existência de uma desigualdade de resultados grandes

O ponto central da pesquisa, e o dado fundamental, é que, de fato, as cotas, no caso do IFF, permitiram a democratização do acesso. Ou seja, a maior parte das(os) cotistas não conseguiria entrar não fosse a reserva de vagas. 

Algumas coisas ficaram evidentes pra gente e conseguimos observar onde estão os problemas maiores. Por exemplo, que a prova de ingresso é um momento de dificuldade grande para os cotistas, e que há muita dificuldade com Matemática e Português, matérias básicas. Além disso, os dados mostram que, para estudantes que conseguem passar do 1º para o 2º ano, a tendência é que eles consigam chegar até o ano final do ensino médio. 

Outro ponto importantíssimo é que os dados também evidenciam que temos menos de 40% de concluintes no final dos três anos. Ou seja, ainda temos um desafio grande de se pensar a permanência e o sucesso escolar desses alunos do ensino médio integrado.

Então tivemos uma democratização do acesso, mas uma desigualdade de resultados ainda bastante acentuada, o que demonstra o desafio que se tem ainda para aperfeiçoar a política pública.



Portal Cenpec: Na conclusão, vocês reforçam a importância de se “(…) ampliar as pesquisas com foco na permanência e na política de cotas no Ensino Médio profissionalizante”. Por que focar nos motivos da permanência e não tanto na evasão?

Marcos Ribeiro: Quando olhamos a evasão como tema de pesquisa, acabamos colocando a culpa, mesmo que implicitamente, na própria vítima que larga a escola. Ao fazer essa abordagem, deixamos de observar dois pontos que eu acho muito importantes. 

Primeiro, a permanência não é o oposto da evasão. “Se eu entender a evasão, entendo porque o estudante permanece”. Não. São explicações distintas e não simplesmente contrárias. 

Segundo, quando analisamos e focamos na permanência, nós podemos pensar mecanismos, em termos de política pública, para que essa(e) estudante se mantenha na escola e, assim, possam aperfeiçoar a aplicação da Lei de Cotas. Esse ponto é fundamental. Quando pensamos nos motivos que fazem o aluno permanecer, conseguimos construir uma análise plural, pensando a relação das(os) estudantes com a instituição e também a relação com seu local de moradia, o serviço de transporte, sua condição socioeconômica. Conseguimos construir um retrato mais complexo. 

É importantíssimo trazer esse retrato mais complexo e plural das(os) alunas(os) e não jogar nesses indivíduos a responsabilidade por ter evadido da escola – ponto que costuma ser muito colocado no mundo contemporâneo, dada a ideologia meritocrática que impera atualmente. 


Portal Cenpec: Como, então, aperfeiçoar essa política pública? Como podemos avançar nas ações afirmativas, no âmbito do ensino médio, à luz desse cenário complexo do que faz a(o) estudante permanecer na escola?

Marcos Ribeiro: Acabamos de escrever um texto, fruto dos grupos focais que temos feito com estudantes, que mostram um pouco dessa realidade. 

Temos alunas(os) que acordam às 4h da manhã porque moram em cidades vizinhas ou zonas rurais e têm que chegar no Instituto às 7h. Eles ficam na escola o dia inteiro, porque tem estudantes de alguns cursos que chegam a ter 21 matérias por semestre. É muita coisa! Eles acabam chegando em casa às 23h, pra depois voltar no dia seguinte. Você percebe, então, uma série de obstáculos para essas(es) alunas(os).

E existe uma cobrança bastante grande em um curso de EMI de um instituto federal, que é muito diferente daquela que essas(es) estudantes estavam acostumadas(os) no ensino fundamental – que cursou, provavelmente, em uma escola pública cheia de todas as carências (de tempos e espaços) que sabemos existir nelas. 

Frente a isso, é claro que elas(es) precisam, logo na sua entrada, de um acompanhamento maior, em termos institucionais, tanto do ponto de vista pedagógico como socioeconômico. Deve-se pensar políticas de reforço estudantil de matemática ou português, e bolsas de estudos, que ajudam muito. 

Essa política de cuidado mais direto com esses estudantes é muito necessária. Em uma sociedade como a nossa – como já dizia Florestan Fernandes -, onde existe uma resistência muito grande para superarmos e mesmo enfrentarmos as nossas circulares desigualdades, políticas públicas como essas têm uma importância central de chamar atenção para a nossa profunda desigualdade.

Os dados demonstram que existe uma desigualdade grande entre estudantes provenientes de escolas públicas e de escolas privadas, e a necessidade de defender políticas públicas como a Lei de Cotas, que tem o papel de colocar, em uma instituição pública de qualidade reconhecida, alunas(os) que, infelizmente, por conta de questões étnico-raciais ou socioeconômicas, não teriam as condições de competir. 


Portal Cenpec: Considerando agora os debates sobre os 10 anos da Lei de Cotas, quais as suas expectativas sobre as discussões referentes às ações afirmativas na educação básica? Há espaço para que cresçam?

Marcos Ribeiro: Sim, acredito que, com os avanços e a consolidação da agenda no ensino superior, a tendência é que a gente consiga também constituir trabalhos chamando a atenção para a necessidade de ter uma agenda maciça de pesquisa sobre as cotas nos EMI. 

Esse tema perpassa uma série de questões fundamentais relacionadas tanto à transição do ensino fundamental para o ensino médio, como deste para o ensino superior. Do ponto de vista pedagógico, também se relaciona com a quebra de estigmas que, de uma forma ou outra, ainda está colocada sobre estudantes cotistas, e com a discussão nas escolas de outras leis – como a 10.639, que inclui o ensino de história e cultura africanas no currículo da educação básica -, no sentido de entender as nossas origens e o porquê, em um país como o Brasil, as ações afirmativas são instrumentos centrais para lutar contra as nossas desigualdades. 

Aqui, não posso deixar de lembrar do professor Carlos Antonio Costa Ribeiro, que estuda a questão da estratificação social e as desigualdades, e demonstra a importância que a entrada em um instituto federal de ensino tem na mobilidade social das pessoas.

Estudantes negras(os), cotistas, que vêm de uma escola pública com diversos problemas, ao entrar no EMI de uma instituição federal, como no caso de Campos Central do IFF, pode sair com um doutorado na sua área. Ou seja, é aquilo que todo mundo espera de mais sólido quando pensamos em ascender socialmente via educação. Mais do que isso, significa a possibilidade real de que as gerações futuras dessas(es) estudantes cotistas não tenham a necessidade de utilizar esse tipo de ação afirmativa.

Por isso, precisamos continuar debatendo esse tema, mais e mais, na nossa sociedade. De nossa parte, estamos preparando um seminário sobre os 20 anos de ações afirmativas no Brasil, que deve acontecer pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da UENF, em agosto. A nossa ideia é ocupar esses espaços de debate com contribuições que possam demonstrar tanto os problemas, os desafios, as contradições das ações afirmativas, mas também a sua extrema importância.


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