Especial Ortografia reflexiva: Caminhos entre letras e sons

Parte 3: O Ensino-aprendizagem − Mediação do Professor


O Ensino-aprendizagem −
Mediação do Professor

Diagnóstico inicial
Em uma proposta de ensino que busca promover aprendizagem significativa, a avaliação inicial tem papel fundamental no planejamento, já que a identificação dos saberes dos alunos pautará a seleção das expectativas de aprendizagem, bem como a elaboração das atividades em sala de aula. Essa conduta não é diferente em relação ao ensino reflexivo de ortografia, orientado pelo planejamento de situações didáticas que permitam a descoberta das regularidades ortográficas, a assimilação dessas regras, bem como seu uso em atividades de produção textual adequadas à proposta de letramento.

Alfabetização e letramento são, pois, processos distintos, de natureza essencialmente diferente; entretanto, são interdependentes e mesmo indissociáveis. A alfabetização - a aquisição da tecnologia da escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento, isto é, para a participação em práticas sociais de escrita, tanto assim que analfabetos podem ter um certo nível de letramento: não tendo adquirido a tecnologia da escrita, além disso, na concepção psicogenética de alfabetização que vigora atualmente, a tecnologia da escrita é aprendida não, como em concepções anteriores, com textos artificialmente para a aquisição das “técnicas” de leitura e de escrita, mas através de atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e de escrita.” (SOARES, [s.d].)

Para o diagnóstico, sugerimos que os alunos transcrevam textos que saibam de cor (como uma parlenda, um poema, a letra de uma canção) ou recontem, com suas palavras, um texto conhecido (uma fábula, um conto, uma lenda) sem que tenham tido acesso à versão escrita do texto-fonte para evitar dúvidas em relação ao registro: o que foi escrito corresponde efetivamente aos saberes do aluno.


Para um diagnóstico eficaz, recomendamos os seguintes cuidados:

  • a. A seleção do texto a ser transcrito ou recontado deve ser feita de modo cuidadoso para assegurar que as palavras que o compõem favoreçam a emergência do que se quer investigar: interferência da fala na escrita, regularidades contextuais, regularidades morfológicas, contextos irregulares envolvendo palavras de alta frequência.
  • b. Caso o texto selecionado não permita diagnosticar satisfatoriamente algum conteúdo ortográfico, sempre é possível organizar uma lista complementar de palavras. O uso de imagens a serem nomeadas, por exemplo, pode substituir o ditado. Nessa situação convém solicitar, oralmente, que os alunos identifiquem o que as ilustrações representam antes de eles escreverem os nomes.
  • c. Se a opção for a transcrição de textos que as crianças sabem de cor, é preciso criar condições para que possam memorizá-los antes do diagnóstico. Essa preparação pode ser feita de modo lúdico, envolvendo cantorias, brincadeiras etc. Antes de solicitar a produção escrita, é importante certificar-se de que efetivamente todos memorizaram o texto escolhido.

    Veja algumas sugestões de brincadeiras orais no vídeo produzido pela Plataforma do Letramento.
  • d. Caso sua escolha seja o reconto de um texto conhecido, converse com os alunos sobre o tema da história a fim de sensibilizá-los para a escuta do reconto oral. Conte a história para, quando realizar a leitura da versão escrita, os alunos tenham mais recursos para inferir o sentido das palavras ou expressões pouco conhecidas. Em seguida, leia o texto selecionado e converse sobre ele para que as crianças se familiarizem com o enredo. Solicite a alguns alunos que contem a história oralmente para que você esteja seguro de que se apropriaram da trama.

    Assista ao programa Conto e reconto - Projetos de leitura Quem conta um conto, aumenta um ponto, desenvolvido pela TV Escola.
  • e. Quer sua opção seja a transcrição, quer o reconto, não se esqueça de que os alunos não devem ter acesso ao texto escrito em nenhum momento, assim você estará seguro de que o que escrevem corresponde de fato às suas hipóteses.
  • f. Finalmente, solicite que transcrevam ou recontem o texto selecionado.

  • Como interpretar e avaliar os desvios ortográficos cometidos pelos alunos?

    Em um primeiro momento, é importante assinalar, no próprio texto do aluno, as palavras em que houver erros. Esse procedimento facilitará a análise e posterior tabulação. Para reconhecer o tipo de erro, é interessante identificar a operação realizada pelo aluno: houve omissão, acréscimo, substituição ou inversão de algum grafema? O erro envolve segmentação? Essa informação será o ponto de partida para buscar interpretar os desvios ortográficos verificados.

    A fim de informar o que sabem e o que precisam aprender sobre ortografia, os indicadores de avaliação não podem apenas permitir a identificação da categoria geral que expressa a natureza do erro (interferência da fala, regularidades contextuais, oposição surda / sonora, representação de sílabas não canônicas, irregularidades, segmentação). Sem um detalhamento dos possíveis desvios que se enquadram em cada uma dessas categorias, não há como o professor descrever com objetividade o que cada um de seus alunos sabe, a fim de intervir de modo eficiente.



    Sugerimos uma tipologia de erros com indicadores precisos organizados em uma planilha de Excel que permite identificar, nas colunas, o que cada estudante precisa aprender; e, nas linhas, mapear a situação da classe em relação a um tópico específico. Para isso, deve-se marcar com o número 1 a ocorrência de determinado erro verificada nos textos individuais. Por exemplo: ao verificar, no texto de André, a troca de E por I (ele escreveu “denti”e “classi”), o professor deve marcar a ocorrência com 1 na coluna referente a esse tipo e erro e na linha correspondente ao aluno. Já no texto de Guilherme não verificou esse tipo de erro, por isso essa coluna na linha do aluno deve ficar em branco.

    A notação nessa planilha permite ainda a produção de um gráfico do desempenho da turma em relação a cada indicador. Essa organização simplifica a realização do diagnóstico e o planejamento do trabalho. Clique aqui para baixar um modelo com exemplos de gráficos.


    Proposta curricular: progressão dos conteúdos de ortografia ao longo dos anos iniciais do Ensino Fundamental

    A elaboração de uma proposta curricular, ainda que se refira apenas ao ensino de um tópico do eixo de Análise Linguística — que juntamente com Oralidade, Leitura e Produção de Texto compõem a área da Língua Portuguesa —, requer a mobilização da equipe escolar, já que as decisões afetarão a todos. Vejamos alguns princípios orientadores de uma proposta curricular para o ensino da ortografia ao longo dos três primeiros anos do Ensino Fundamental.

    • AVALIAÇÃO PRÉVIA

      A realização de um diagnóstico nos moldes do descrito no item “O ensino-aprendizagem − mediação do professor”, deste Especial, envolvendo todas as turmas e todos os educadores, possibilitará que a negociação se sustente nos dados obtidos por meio das produções textuais dos próprios alunos e não apenas nas crenças dos educadores.

      GESTÃO PROGRESSIVA DOS CONTEÚDOS
      Após a identificação e categorização dos erros, haverá muitas decisões a tomar. Já que é impossível resolver todos os problemas ortográficos de uma vez, será necessário organizar a gestão progressiva dos conteúdos, estabelecendo o que cabe a cada ano para garantir a aprendizagem das regularidades ortográficas e sua aplicação na produção de textos.
      Além dos dados sobre o desempenho das turmas, sugere-se que sejam considerados os parâmetros para a seleção dos conteúdos ortográficos, ou seja, antecipar o que é regular e mais frequente.

    • PROJEÇÃO E AJUSTES

      Convém não esquecer que a elaboração de uma proposta curricular opera também com certa dose de projeção. À medida que se selecionam os conteúdos a serem trabalhados em determinado ano, instaura-se um percurso narrativo: o que foi ensinado antes e o que será tratado depois. Colocar a proposta em prática implica encarar alguns anos de ajustes, já que os alunos reais para os quais se ensina não terão vivenciado todo esse enredo no momento em que a proposta for ao ar.

    • AVALIAÇÃO PERIÓDICA DA PROPOSTA

      Os ajustes serão necessários ainda porque se sabe que a formulação de metas claras para cada ano produz uma intencionalidade por parte do educador, que acaba promovendo intervenções mais precisas, o que impacta positivamente a resposta das crianças. Um ensino que estimula a investigação, a classificação de dados com base em hipóteses promove muito mais do que a descoberta de regularidades ortográficas; gera um aluno curioso, que elabora boas perguntas, que está atento a indícios, a padrões: a cada ano, as novas turmas parecerão mais sabidas! Por essa razão é que se sugere a avaliação periódica da proposta, ao menos até que a primeira turma tenha completado o ciclo.

    Proposta de progressão dos conteúdos ortográficos
    A proposta que se apresenta a título de começo de conversa parte do princípio de que as crianças tenham se alfabetizado no 1º ano, estando aptas a refletir a respeito das convenções ortográficas já a partir do 2º ano.

    Em linhas gerais, o 2º e o 3º anos enfatizariam os aspectos regulares do sistema ortográfico, desenvolvendo um trabalho intenso com as regularidades contextuais; a redução dos erros por interferência da fala na escrita, sempre que houver regularidades morfológicas (principalmente com os morfemas flexionais); e a segmentação das palavras funcionais.

    Os dois últimos anos do Ensino Fundamental I seriam dedicados à memorização de palavras de alta frequência, associando a esse estudo as regularidades morfológicas referentes à uniformização ortográfica das palavras cognatas, dos prefixos e sufixos, principalmente os que envolverem contextos arbitrários. Cabe também a esses últimos anos tratar da acentuação gráfica.

    Reitera-se que a indicação dos conteúdos a seguir deve ser compreendida apenas como uma provocação para aquecer o debate da equipe escolar que produzirá a sua versão.


    Proposta de progressão dos conteúdos de ortografia

    (Este Especial tem como foco o ensino-aprendizagem da Ortografia nos anos iniciais
    do EF. A fim de aprofundar o estudo dos conteúdos propostos para os anos
    posteriores, sugerimos a leitura da obra Ortografia, de Maria José Nóbrega,
    que fundamenta este material.)



    Ortografia e avaliação
    A análise das produções infantis sugere que os erros cometidos pelas crianças não são aleatórios nem resultam de atitudes de descaso ou desatenção, mas expressam suas hipóteses em relação à ortografia. O ensino reflexivo da ortografia reserva ao aluno um papel ativo na aprendizagem, o que exige dele maior autonomia. Isso porque as atividades que promovem a descoberta e a assimilação das regularidades ortográficas buscam fazer a criança confrontar as estratégias empregadas para grafar as palavras com os dados que se contrapõem às suas hipóteses. Essa dinâmica implica desenvolver as capacidades autoavaliativas necessárias não só para aprender as regularidades ortográficas, mas também para aplicá-las em situações mais complexas.

    Algumas perguntas sobre avaliação em Ortografia:

    • AVALIAÇÃO PRÉVIA

      Apesar de parecer óbvio, convém lembrar que as propostas de autocorreção ou de correção devem incidir apenas nos conteúdos ensinados. Logo, como não é possível ensinar tudo ao mesmo tempo, porque os alunos não podem aprender tudo de uma vez, a escola precisa aceitar que textos imperfeitos fazem parte do processo de aprender a escrever corretamente.

    • COMO CORRIGIR OS TEXTOS?

      Revisões exaustivas, que pretendam exterminar até o último erro, são pouco produtivas, além de desestimulantes. O excesso de registros por parte do professor acaba pulverizando a atenção até mesmo do estudante mais bem intencionado, impedindo que a revisão se converta em uma experiência de aprendizagem. Resultado: na produção seguinte, o professor reencontrará os problemas de sempre e os alunos acabarão naturalizando os erros, convencidos de que esse negócio de ortografia é algo impossível de aprender. Propostas de autocorreção ou de correção, portanto, devem ter foco exatamente porque se deseja que os alunos aprendam.

    • QUAIS AS MELHORES ESTRATÉGIAS PARA AUTOAVALIAÇÃO?

      A autoavaliação assume enorme relevância em um ensino reflexivo de ortografia, principalmente porque o que se almeja é converter o conhecimento das regularidades ortográficas em estratégia internalizada a ser ativada sempre que necessário. Como olhar para o próprio texto com distanciamento não é tarefa simples nem mesmo para escritores experientes, insiste-se no trabalho em duplas. Esse tipo de atividade permite aprender a revisar revisando o texto do outro ou escutando as observações do outro em relação ao próprio texto.
      A seguir, alguns procedimentos didáticos que o professor pode adotar com o propósito de estimular a reflexão metacognitiva e favorecer práticas autoavaliativas.




    Procedimentos didáticos para
    estimular a reflexão metacognitiva



    Palavras finais

    Para finalizar, algumas observações. A proposta que apresentamos para o ensino reflexivo de ortografia efetua um movimento de deslocamento e de aproximação das práticas de linguagem escrita mais complexas que distinguem a leitura e a produção de textos. Os deslocamentos permitem a descoberta e a sistematização das regularidades ortográficas; as aproximações asseguram a aplicação dessas regularidades em operações de produção de textos.

    Em função de seus objetivos, o professor pode planejar o tempo didático reservado à focalização dos conteúdos ortográficos operando com durações que podem ser regulares ou não. Desenvolvendo-os como atividades permanentes, reservará em sua agenda um momento específico em sua rotina semanal para esse propósito. Se optar por desenvolvê-los como situação independente de sistematização, destinará algumas aulas contínuas para realizar o ciclo de atividades, para que possa fazer o estudo com certa regularidade.

    Em ambos os casos, será necessário, em algum momento, articular os conteúdos de ortografia aos das outras práticas de linguagem escrita – a leitura e produção de textos –, criando as condições para que os alunos se apropriem progressivamente do que aprenderam em situações de maior complexidade. Esse cuidado evita a fragmentação dos conteúdos porque articula ortografia ao trabalho didático com a linguagem escrita.