O leitor certamente conhece a fábula “A tartaruga e a lebre”. Veja como Alex, aluno do 4º ano do Ensino Fundamental da rede pública de São Paulo (correspondendo ao 5º ano do Fundamental de 9 anos), a reconta.
Embora a narração seja feita de modo esquemático, o leitor reconhece os principais elementos da trama: o primeiro parágrafo corresponde à situação inicial; o segundo ao desenvolvimento da ação e ao seu desfecho. Ao observar o modo como as palavras foram grafadas, identificará muitos erros.
Trata-se de um estudante relapso, displicente? Não parece. Ao longo do texto é possível encontrar sinais de intensa atividade de reformulação, como as frases apagadas com borracha nas três primeiras linhas:
Ou indícios de acréscimo da letra I após a escrita da palavra saída, ou ainda rasuras nas palavras corrida e tartaruga:
Não é preciso ser professor de Língua Portuguesa para localizar as palavras em que há desvio ortográfico: “convido”, “a postar”, “corida”, “guiza”, “conpetisa”, “comesou”, “saio”, “pasou”, “fernte” / “ferte”, “durmiu”, “a cordou”. Mas, por que essas palavras estão erradas? Também não é preciso ser professor de Língua Portuguesa para responder, como normalmente se faz, por que houve omissões, acréscimos, substituições ou inversões de letras na palavra:
OMISSÃO | SUBSTITUIÇÃO | INVERSÃO |
---|---|---|
“convido” | “guiza” | “fernte / ferte” |
“corida” | “conpetisa” | |
“pasou” | “comesou” | |
"saio" | ||
"durmiu" |
Do ponto de vista de quem errou, isto é, do aluno que precisa aprender ortografia, saber que falta a letra U na palavra “convido”, ou que se deve trocar o G pelo J em “guiza” não ajuda a evitar o erro em outras situações de escrita. Como, então, responder de modo produtivo à pergunta: por que está errado?
Olhemos mais de perto apenas as três palavras do texto em que faltam letras.
“convido” | /o/ > o → ou | Em praticamente todas as regiões do Brasil, o ditongo -OU é pronunciado como [o]: há uma redução de ditongo. Exemplos: • Bolsa de “coro”; • Anel de “oro”; • Ele “encontrô” o amigo; • A lebre “convidô” a tartaruga. |
O erro em “convido” ocorre por interferência da variedade linguística falada pelo aluno que precisa aprender que se fala de um jeito e se escreve de outro, que precisa ser capaz de identificar em quais contextos isso ocorre e precaver-se, monitorando sua escrita, já que a maneira que falamos reflete nossa identidade como pertencentes a uma comunidade linguística.
Uma das características diferenciadoras da pronúncia é a melodia da língua. Para saber mais sobre essa melodia, assista ao vídeo abaixo, com o professor Carlos Alberto Faraco, linguista e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR):
“corida” | /R/ > r → rr | O grafema R pode representar o fonema /R/ (o erre forte), como em rolo ou em enrolar, mas em corrida é preciso usar dois erres, pois, entre duas vogais, o /R/ é representado pelo dígrafo RR; caso contrário, o fonema representado é o de /r/ (o erre fraco) o que pode alterar o sentido de palavras em contextos idênticos, como caro (preço elevado) e carro (veículo). |
“pasou” | /s/ > s → ss | O grafema S pode representar o /s/ como em sabão e em ensaboar, mas em passou é preciso usar dois esses, pois, entre duas vogais, usa-se o dígrafo SS para representar o fonema /s/; caso contrário, o fonema representado é o /z/, o que pode alterar o sentido de palavras em contextos idênticos, como asa (parte do corpo de aves, insetos etc.) e assa (forma do verbo assar, que se refere ao modo de preparar um alimento no fogo ou forno, irritação na pele etc.). |
Nos dois casos – “corida” e “pasou” – os erros não têm nenhuma relação com a fala, tanto é assim que os grafemas empregados, em outros contextos, podem representar esses mesmos fonemas. O erro revela desconhecimento das restrições contextuais impostas aos grafemas S e R, quando empregados entre duas vogais no interior de uma palavra. (Veja mais em “O sistema ortográfico”)
Essa compreensão do erro permite ao professor planejar situações didáticas que possibilitem aos alunos descobrir as regularidades ortográficas, fixar essas descobertas e, principalmente,
transformá-las em ferramentas para revisar textos. Obter sucesso nesse trabalho, como na fábula, exigirá mais a persistência da tartaruga do que a rapidez da lebre.
Algumas dicas para entender o erro:
Esse é outro princípio didático de um ensino reflexivo de ortografia: é preciso investir pesadamente no que é regular e frequente, pois, agindo assim, reduziremos significativamente o número de erros.
O trabalho proposto apoia-se em grandes listas que permitem identificar a regularidade no ensino-aprendizagem da ortografia.
Interferência da fala
Ao longo da alfabetização, é comum as crianças compararem a expressão oral à escrita, o que implicará muitos erros ortográficos. Alguns exemplos: troca do L por R em encontros consonantais (problema > “probrema”); troca do E por I (mentira > “mintira”); omissão do R em final de palavras (pescador > “pescado”) etc.
Apontar os contextos em que há diferenças entre a língua que se fala e a língua que se escreve permite que as crianças possam evitar cometer erros ortográficos desse tipo.
Veja dicas na Atividade “A canoa virou"
Regularidades contextuais
Uma das fontes de erros, principalmente entre alfabetizandos, é o desconhecimento das regras sobre o uso dos grafemas em razão do contexto em que eles aparecem, ou seja, de acordo com sua posição dentro da palavra e de algumas restrições impostas pelos grafemas que vêm antes ou depois daquele que se quer grafar. Por exemplo, o fonema /s/ pode ser representado por vários grafemas: C (cerâmica); Ç (diferença); S (subterrâneo); SS (interesse); SC (piscina); SÇ (desça); X (exportar); XC (excesso); Z (veloz); XS (exsudar). Em início de palavra, apenas C ou S podem ser usados para representar esse fonema. No entanto, há ainda mais uma restrição contextual: se o grafema seguinte é A, O ou U, apenas se pode usar o S para representar esse fonema em posição inicial. Assim, muitos problemas ortográficos podem ser resolvidos, ou pelo menos reduzidos, apenas analisando a posição do grafema na palavra, isto é, se ele ocorre no início, no interior ou no fim.
Veja dicas na Atividade “O uso da letra R"
Irregularidades
A história das mudanças que as palavras foram sofrendo ao longo do tempo permitiria explicar porque uma palavra é grafada de um jeito e não de outro. Por essa razão, quando alguém escreve “traveça”, dizemos que cometeu um erro por desconhecer a origem da palavra.
Mas quais são os contextos em que corremos maiores riscos de cometer erros desse tipo? Conhecer as armadilhas ortográficas, em que uma letra ou um dígrafo podem representar um mesmo fonema, evita erros ao escrever. (Veja o item “Contextos irregulares”, em O sistema ortográfico).
Veja dicas na Atividade “Léxicon, o Superdicionário, versus as Palavras do Mal"
Regularidades morfológicas
Muitos erros ortográficos podem ser evitados observando-se as regularidades ortográficas dos morfemas, os menores constituintes significativos que compõem a palavra. Os morfemas assumem um conjunto de propriedades gramaticais recorrentes, como: a formação de novas palavras com o acréscimo de prefixos e/ou sufixos ao radical; a flexão dos substantivos e adjetivos em gênero e número ou dos verbos em modo e tempo, com o acréscimo de desinências. A segmentação da palavra em unidades menores pode ser uma estratégia para homogeneizar a escrita de palavras derivadas ou flexionadas que compartilham os mesmos morfemas. Por exemplo: saber que a palavra extrovertido é formada pelo prefixo extra, o mesmo que forma extraordinário, ajuda a criança a descobrir que se grafa com X.
Veja dicas na Atividade “'L' ou 'U'... eis a questão"
Segmentação de palavras
Os espaços em branco entre as palavras que caracterizam a escrita não correspondem à segmentação da modalidade oral. A fala não é dividida em palavras. Quem fala organiza o discurso em blocos maiores. Como a criança se apoia na oralidade quando aprende a escrever, é inevitável que se encontrem ocorrências envolvendo segmentações não convencionais: quer unindo palavras que deveriam ser escritas com um espaço em branco entre elas, quer desunindo elementos da palavra (sílabas ou morfemas) que deveriam ser escritos sem espaço. Chama-se de hipossegmentação os casos de junção indevida e de hipersegmentação os casos de separação indevida.
Em geral, esses equívocos envolvem as palavras gramaticais (pronomes e artigos – que localizam o ser no discurso –, e conjunções e preposições – que ligam palavras ou articulam frases e segmentos do texto).
Por não se referirem a seres ou processos existentes no mundo (como os substantivos, adjetivos, verbos), as crianças relutam em considerá-las palavras. Por serem pequenas, a maioria constituída por monossílabos átonos, agregando-se à palavra seguinte como uma sílaba adicional, as palavras gramaticais criam muitas dificuldades para leitores e escritores recém-alfabetizados.
Veja dicas na Atividade “Segmentação de palavras"