Letramento inovador e premiado

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Letramento inovador e premiado

Professores de diversas regiões do país relatam experiências de letramento inovadoras. Publicada originalmente em outubro de 2014 na Plataforma do Letramento

Reportagem de Lilian Romão

Por todo o Brasil, em sua prática diária, eles se mostram verdadeiros artistas da educação, capazes de superar condições adversas para promover uma aprendizagem ativa e criativa, desenvolvendo o gosto pela leitura e escrita.

Produção de cinema, histórias de vida, classificados, viagem pelo mundo dos livros: iniciativas que desenvolvem outros formatos, maneiras, propostas de letramento.

Nesta reportagem, apresentamos quatro experiências de realidades e regiões distintas, que buscam responder, no dia a dia da educação, ao desafio de ensinar crianças e adolescentes a ler e escrever de forma lúdica e criativa. 

Viagem pelo admirável mundo dos livros

Edjane de Oliveira Gusmão Alves ama o que faz. Nasceu em Campina Grande (PB). Filha de agricultores, foi no pequeno povoado de Jenipapo que percorreu toda a sua vida acadêmica, ainda nos moldes antigos: o primário, de 1ª a 4ª série, o ginásio, de 5ª a 8ª, o magistério, a Pedagogia, a licenciatura em Geografia e a especialização em Inclusão Social.

Morando na região do semiárido brasileiro, foram muitas as dificuldades para levar adiante o desejo de aprender. E é olhando para sua própria realidade que Edjane cria possibilidades de favorecer o aprendizado da leitura e da escrita a seus alunos, muitos deles também do campo. 

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Professora Edjane de Oliveira Gusmão Alves. Foto: reprodução

Foi nesse contexto que surgiu o projeto Viajando no mundo dos livros, motivado pelo desejo de contribuir para o letramento e para a construção da própria história de vida por meio da leitura.

O projeto foi desenvolvido na Escola Municipal de Ensino Fundamental I José André da Rocha, localizada em Lagoa Seca (PB), e envolveu alunos do 2º ano do Ensino Fundamental.
 
Em sua descrição formal, o projeto propõe-se a desenvolver competências de leitura e escrita, superando as dificuldades de construir e interpretar textos, preparando o aluno para o mundo letrado e formando-o como agente transformador. De maneira mais informal, Edjane conta que, ao elaborar o projeto, fez um levantamento dos livros da escola. Depois, divulgou a ideia aos pais, pedindo doações de livros novos ou usados. 

Foram praticamente seis meses de contação de histórias, leituras em grupos, até a construção das histórias de vida. Para isso, os pais também foram convidados a ouvir as leituras e as histórias contadas pelos filhos. A parceria com a família é um componente fundamental nesse trabalho. Ter sua leitura ouvida pelos pais, irmãos, tios e tias é uma forma de motivação incentivo para mergulhar no mundo dos livros.

Projeto Viajando no mundo dos livros

Edjane não esconde nem reduz seu papel como educadora. Para ela, é a prática do educador, seu compromisso, formação e vontade de desenvolver outros formatos educativos mais atraentes, o que faz a diferença na educação.

Acredito que o primeiro impulsionador foi a minha disposição em contribuir para a aprendizagem dos meus alunos, em atraí-los de forma prazerosa com a leitura e posteriormente com a produção de seus escritos. Então hoje posso afirmar que minha prática tem contribuído e falo com propriedade em qualquer instância sobre o papel do educador na formação das crianças.”

Edjane de Oliveira Gusmão

A educadora conta como se dedicou integralmente ao projeto, investindo os recursos pedagógicos, financeiros, psicológicos, de apoio. “A carência é absurda e acabamos suprindo aquilo que não cabe a nossa função”, afirma.

Com o projeto, foi possível perceber o quanto é urgente proporcionar aos alunos novas experiências, novas formas de construir conhecimento, de aprofundar conceitos, bem como expressar sua compreensão. 

É necessário querer fazer diferente é parte integrante de nosso ‘eu’, por menores que sejam as condições. Temos um papel importante a cumprir na aprendizagem dos educandos. Ajudar o próximo a desenvolver a reflexão e o senso crítico é de grande valia na educação. Finalizo: fiz e faço o que posso! Se me perguntar qual é minha virtude, respondo: tenacidade. Tudo o que aço, faço com ânimo e vou até o fim.”

Edjane de Oliveira Gusmão

O trabalho continua, buscando envolver toda a comunidade escolar. Como resultados, a pedagoga destaca uma aprendizagem mais lúdica e o progresso de seus estudantes.

Costurando lembranças

A professora Juliana Polidoro da Silva também criou um projeto para contar, ouvir e escrever histórias. Apenas algumas diferenças e mais de 3 mil km separam as duas experiências.

Somos um pouco de todas as nossas lembranças juntas… é um projeto desenvolvido no município de Valinhos, interior do estado de São Paulo, com alunos do 3º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal de Educação Básica Carlos de Carvalho Vieira Braga, em Valinhos (SP).

Somos um pouco de todas as nossas lembranças juntas… Foto: reprodução

Juliana está envolvida na educação há 17 anos. É formada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas e é pós-graduada em Psicopedagogia.

Para a educadora, uma questão decisiva na elaboração do projeto, além do próprio processo de letramento, foi o distanciamento das famílias em relação à escola e, em alguns casos, da própria criança. “Assim tentei buscar um fator histórico, por meio de leituras dinâmicas, fotos e autobiografia de cada aluno com sua árvore genealógica, para resgatar a importância da família em todos os seus aspectos”, conta Juliana.

Existem muitos pontos em comum entre as educadoras paraibana e paulista quanto aos modos de pensar, praticar e avaliar a educação. Assim como Edjane, Juliana acredita no seu papel como um diferencial no projeto.

A cada dia eu me caracterizava de uma personagem diferente, ou melhor, eu era a personagem real, a dona da quitanda, a vovó que ensinava a receita, a Maria Bonita que contava as literaturas de cordel, a poeta que amava as rimas, a Chapeuzinho que levava livros para a vovozinha… Fazia com que o visual pudesse se tornar algo mais concreto e vivenciado por todos.”

Juliana Polidoro da Silva

Ela conta que todo ano realiza uma ação contínua de contar histórias de maneiras diferenciadas, para que possa sensibilizar os alunos. “Muitas professoras relatam que gostariam de fazer essas dinâmicas em sala de aula, porém dizem que não têm talento ou tempo disponível para a realização de projetos. Acredito que não é questão de talento nem de tempo”, afirma.

Os resultados que a professora enfatiza não são numéricos nem facilmente mensuráveis. “Sensações como: surpresa, excitação, curiosidade, alegria, tristeza, resgate de memórias, diálogos fizeram com que o educando se interessasse por ler e escrever sua história. Há que se considerar, também, que este trabalho foi além da sala de aula, pois houve um envolvimento das famílias resgatando muitos acontecimentos, fatos que fazem parte da história dos alunos e que por depoimentos se faziam despercebidos”.

As coincidências entre os projetos do Nordeste e do Sudeste não param por aí. Juliana também acredita que a mudança no processo educativo está na postura, atitude, formação, atualização e valorização do professor. Para ela, é necessário avançar numa concepção na qual “letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz uso formal da escrita”. É necessário um trabalho árduo por parte dos professores e de toda a equipe escolar, para que haja compreensão da prática da leitura e escrita, dentro e fora da sala de aula. 
Segundo a professora, num mundo em transformação, de uma cultura produzida por meio das novas tecnologias, é de fundamental importância que educadores alterem suas metodologias em sala de aula.

Juliana Polidoro e estudante. Foto: reprodução

Eu tinha muitos obstáculos a serem superados… Muitas crianças que não sabiam ler e se encontravam no 3º ano na hipótese pré-silábica, sem ao menos conhecer o sistema de escrita. Uma criança de inclusão que precisava de metodologia atraente por apresentar hidrocefalia e, como consequência, baixa visão e problemas motores. Eu queria criar algo que pudesse resgatar valores, memórias, saudades e, ao mesmo tempo, trazer para nossa rotina um projeto que contemplasse, principalmente de forma lúdica, esses aspectos tão importantes.”

Juliana Polidoro da Silva

A educadora fala da busca por um caminho no qual as crianças não tenham medo de seguir, que não seja desinteressante a ponto de a criança desacreditar de si mesma. Fazendo de cada instante um momento em que a magia e o sonhar se concretizem nas vivências reais.

Conexões entre educação, celular e cinema

A educadora potiguar Irene Maria de Medeiros, natural de Serra Negra do Norte (RN), mora em Currais Novos, a pouco mais de 170 km de Natal, região conhecida como Sertão do Seridó. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pós-graduada na área de Tecnologia em Educação e apaixonada pela educação, acredita que é possível aprender a aprender na sala de aula. “Na minha opinião, o surpreendente foi o fato de um simples celular fazer uma diferença enorme na produção de um filme. O que às vezes é o vilão na aula pode ser um instrumento de grande valor para o processo educacional.”

O prazer de educar na arte do fazer cinema, desenvolvido com uma turma do 3º ano do Ensino Médio noturno na Escola Estadual Capitão Mor Galvão, em Currais Novos (RN), resultou, inesperadamente, de outro projeto desenvolvido no primeiro semestre de 2012.

Os trabalhos de seminário sempre são apresentados na sala em que atuo. Então sugeri aos alunos que não fizessem só slides e sim vídeos. Para a minha surpresa, um grupo produziu um curta-metragem com o celular na disciplina de Sociologia sobre o tema ‘meu voto consciente’.”

Irene Maria de Medeiros

O prazer de educar na arte do fazer cinema. Foto: reprodução

O vídeo ficou tão interessante que Irene inscreveu os alunos num concurso do Tribunal de Justiça estadual (TJRN) e eles conseguiram o 1º lugar. “Como estes alunos gostavam de filmar e o celular era um problema de disciplina na escola, resolvi sugerir a este grupo de alunos fazer um filme. Então, montou-se o projeto”, conta a professora. 

Realizar um projeto cujo resultado final é um filme não é fácil, principalmente quando não há recursos financeiros. Para o sucesso da iniciativa, foi necessário conquistar aliados. O primeiro parceiro foi a escola, aprovando as ideias e colocando, na medida do possível, materiais disponíveis para a execução das filmagens, fornecendo alimentação para os alunos, material para confecção das roupas, entre outros. Foram selecionados mais alunos para fazer parte da equipe. As filmagens aconteciam nos fins de semana, numa fazenda próxima à cidade, cujos proprietários também se tornaram parceiros. Assim nasceu o filme A revolta de Lampião.

Trailer do filme A revolta de Lampião

Mas o projeto não se limitou à produção do vídeo. A turma também produziu um DVD, convites, camisetas e banners para o lançamento do filme. Irene destaca como aspectos importantes da iniciativa a possibilidade de trabalhar com muitas linguagens, temas e conceitos em um único projeto, pois é desenvolvido o roteiro, há a interpretação, a filmagem, edição.

Como fatores impulsionadores de projetos criativos na escola, a educadora ressalta o papel do professor, mas valoriza também a humanização da escola e o desenvolvimento de uma consciência educativa, técnica e gestora.

Desenvolver um trabalho em linguagem cinematográfica, utilizando um simples celular como ferramenta, serve de alerta para nós, professores, aprendermos a gerenciar vários espaços integrados de forma aberta, equilibrada e inovadora. Só assim avançaremos de verdade e poderemos falar de qualidade na educação, tendo a tecnologia como aliada da aprendizagem humanizadora.”

Irene Maria de Medeiros

Vende-se! Vende-se! 

É muito inusitado o surgimento do projeto Sequência didática classificados. O professor Wanderley Ricardo Campos, de Vilhena (RO), já há algum tempo trabalhava, na Escola Abílio Juliano Nicolielo Neto, com um projeto intitulado Coleção, no qual colecionava as tampinhas de garrafa PET com seus alunos e ao final debatiam o que fazer com elas.

Surgiu a ideia de confeccionar um quadro, que ficou exposto para a apreciação da comunidade. Após um tempo, ninguém sabia o que fazer com o quadro”. Foi quando surgiu a ideia de vendê-lo, mas para isso era necessário ofertar o objeto. Assim surgiu a proposta de trabalhar com textos de classificados, dando origem ao projeto.”

Wanderley Ricardo Campos

Texto produzido pelos estudantes na sequência didática

Foram muitas oficinas estudando a linguagem dos classificados até chegar ao produto final (texto ao lado). O classificado foi publicado “de verdade”, com a ajuda de uma jornalista local, na Folha de Vilhena. Isso já foi uma grande emoção. Mas nada comparado à compra do quadro pelo Secretário Municipal da Educação.

Hoje, para o pedagogo formado pela Universidade Federal de Rondônia (Unir) e pós-graduado em Metodologia do Ensino Superior, o maior diferencial do projeto é o fato de que os alunos participaram o tempo todo nas decisões, o que o tornou tão interessante e inovador.

Entre os resultados do aprendizado, o professor destaca a consciência ecológica no que se refere à reciclagem, a alfabetização matemática com o uso das tampinhas e a alfabetização e o letramento gerados pelo processo de pesquisa e criação do anúncio classificado.

Para um trabalho educativo ter sucesso, acredito que o primeiro passo é o professor acreditar em si mesmo, depois ter boas ideias e ter a convicção de que tudo na escola gira em torno do aluno e que este precisa ter prazer em ir à escola.”

Wanderley Ricardo Campos

Experiências instituintes na escola

Iniciativas como essas são capazes de auxiliar na tarefa de desenvolver o prazer pelo estudo e pela aprendizagem. É o que defende Célia Linhares, professora emérita da Universidade Federal Fluminense (UFF). A educadora pesquisa a formação de professores e experiências instituintes na escola, aquelas que inventam outra cultura escolar, articulada a uma sociedade que valoriza a cooperação e a inclusão.

Ao tratar da formação de professores, Célia critica a lógica padronizada e reprodutora do conhecimento, defendendo o papel criativo do professor e a importância de propostas que colaborem para uma educação mais participativa.

Por que a escola, em muitos casos, frustra esta esperança do aprender? Porque ela carrega em si problemas que vão desde as desigualdades sociais até formas de impedir a participação de professores e alunos. Se o aluno entra em sala só para receber informações, adota uma atitude passiva. Na medida em que ele é mero reprodutor, isso diminui, em muito, o que chamo de saber com sabor. […]

A escola, além de ser inclusiva para todo tipo de raça, de cultura, e para os deficientes, deve incluir os próprios professores e estudantes – suas histórias de vida, com suas relações de poder que se articulam com sua classe social, preferências pessoais, entre tantas marcas. A inclusão de estudantes inteiros supõe atendê-los como um todo, com sentimentos e valores que estão sempre relacionados e são inseparáveis da história social de cada povo. É tão bom visitar escolas e encontrar aulas de dança, canto, desenho, pintura!”

Celia Linhares


Prêmio Professores do Brasil
Os projetos apresentados nesta matéria foram vencedores do Prêmio Professores do Brasil, edição 2013. Trata-se de uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC) junto com parceiros.

Criado em 2005, o Prêmio busca reconhecer, premiar e divulgar a contribuição de professores da redes públicas de ensino à melhoria da educação básica.

Para se inscrever, basta ter uma prática pedagógica criativa e bem-sucedida, em andamento ou já concluída.


Para conhecer mais sobre os projetos relatados, acesse os materiais disponibilizados pelo MEC:

O prazer de educar na arte do fazer cinema

Somos um pouco de todas as nossas lembranças juntas…

Viajando no mundo dos livros

Sequência Didática Classificados